sábado, 30 de julho de 2011

As parcerias inspiradas de Catherine Deneuve & François Truffaut: “A sereia do Mississippi” (1969) e “O último metrô” (1980)

“Potiche”, ao qual recentemente me referi aqui quando falei sobre o Festival Varilux do Cinema Francês, me obrigou a uma visitação na filmografia de Catherine Deneuve. Retorno do passeio extremamente impressionada – besta, para dizer a verdade – com a variedade e a qualidade dos trabalhos por ela realizados e as nuances que ela soube dar às personagens criadas sob as batutas de diretores muito diferentes: o português Manoel de Oliveira, o inglês Roman Polanski, os franceses Luis Buñuel, Jacques Demy, François Truffaut, para citar só alguns poucos. Duas das obras de sua filmografia que mais me impressionaram foram dirigidas por esse último: “Le dernier métro” e “La sirène du Mississippi”. Embora diferentes entre si, ambas conservam um bom humor, delicadeza e frescor análogos, o que as torna tão atraentes.
Falar sobre elas é uma missão algo difícil para esta cinéfila que carece de conhecimento da produção de Truffaut ou do cinema posterior a 1960, e que até dois meses atrás não havia visto de Deneuve mais que os dois clássicos lançados pela Folha em meados de 1990, “A bela da tarde” e “Indochina”. Por esse motivo, o post terá, como o leitor vai perceber, um agudo quê impressionista. Se ele não se salvará enquanto leitura da produção autoral de Truffaut, espero que se salve como propaganda. Ele e Deneuve alimentaram mais que uma ardente histoire de l’amour, como nos comprovam essas duas pérolas.

A primeira é um surpreendente thriller romântico-farsesco com pinceladas certeiras de Hitchcock. Não posso deixar de lê-lo em diálogo com a extensa e maravilhosa (tantas vezes já recomendada aqui) entrevista que o diretor francês fez com um Hitch já maduro, um bate-bola memorável em que ambos discorrem sobre o cinema com clareza e profundidade.
A produção cinematográfica do diretor inglês deixou recordação indelével no francês desde jovem – como o entrevistador deixa claro ao entrevistado inúmeras vezes. Truffaut entrevista Hitchcock em 1962; "Hitchcock/Truffaut: entrevistas" sai pela primeira vez em 67. A emulação bem humorada de Hitchcock feita por Truffaut na “Sereia do Mississippi” parece desdobramento natural daquela admiração. Emulação que ganha contornos próprio, distintos da obra do mestre, bem entendido. Mais que entrevistador, o diretor francês fora um dos críticos responsáveis por elevar a obra de Hitchcock do lugar de “entretenimento banal” que ela ocupava para “obra autoral” de primeira grandeza.

“A Sereia do Mississippi” (La sirène du Mississippi, 1969) deixa patente seu lastro com a fantasia e o mito logo no título, no predicativo que atribui à personagem de Catherine Deneuve: como o ser fantástico (um pássaro ou um peixe, dependendo da origem da mitologia), sua Julie/Marion é uma mulher ambivalente – o que se apercebe a partir de seus nomes, um de conotação maviosa e outro, severa. Ela começa a história como a esposa por encomenda de um plantador de fumo de uma ilha do Oceano Índico; mulher loura, linda e misteriosa que, vestida com tecidos de estampas suavemente florais, surpreende o noivo à espera de uma mulher morena e comum. O charme da jovem enreda o noivo e, por tabela, o público. Depois de crer com facilidade na história pouco verossímil contada pela mulher, o jovem (Jean-Paul Belmondo) se casa com ela e se coloca aos seus pés: Vous êtes adorable, Julie – o mantra que ele repete durante a primeira parte da história sugere a perda de razão gerada pelo fascínio que a literatura ocidental tanto atribuiu às sereias.
A graça da película está na quebra de expectativas que o diretor vai inserindo na história. O idílio amoroso vivido pelo casal em lua de mel é brevemente quebrado por uma saída misteriosa da mocinha. O marido não percebe. Truffaut, a partir daí, começa a brincar de ser Hitchcock. Assim como faz o mestre inglês faz em “Um corpo que cai” (1958), o francês constrói o suspense depois de tornar o público ciente de algo que o protagonista não sabe: no filme americano, o espectador fica sabendo muito antes de Jimmy Stewart que a simplória Judy e a misteriosa Madeleine são a mesma pessoa; na “Sereia do Mississippi”, a escapada da jovem obriga o público a subverter o olhar de encantamento que desde o princípio voltara à Julie. A semelhança dos nomes Marion/Madeleine – Julie/Judy também não parece coincidência, bem como a sua conotação. O “Mad” (louca) de “Madeleine” pode ser lido como alusão à suposta insânia da personagem de Hitchcock. A inversão que Truffaut promove na atribuição de nomes à sua personagem aponta para o caráter de emulação/subversão que o diretor francês imporá à obra o inglês. Caráter que atinge o paroxismo na segunda parte do filme, na multiplicação das referências às obras de Hitchcock: os primeiros planos dos trilhos do trem que levam o jovem apaixonado em busca da amada lembram “Pacto Sinistro” (1951) e “Quando fala o coração” (1945); sua internação num manicômio para se curar do transtorno emocional que sofrera com o abandono da mulher lembram o destino de Johnny em “O corpo que cai”; a corrida louca do casal pelos quatro cantos de Paris, tendo insolitamente no encalço o detetive que o próprio protagonista contratara para achar a mulher, lembra “Intriga Internacional” (1959); a deliciosamente absurda cena do envenenamento do mocinho lembra “Interlúdio” (1946): tanto pelo móvel do crime quanto pela personagem que o intenta.

Truffaut só lembra dos grandes Hitchcocks, daqueles que, durante a entrevista, ele próprio dissera ao diretor inglês que eram seus preferidos. E o uso que faz dos filmes só faz reforçar o tom de homenagem bem humorada: as constantes quebras de expectativas surpreendem e deleitam o público tanto quanto o faz Hitchcock usando expedientes diferentes. Hitch constrói suas personagens ancorado na realidade. Truffaut manda o mundo real às favas e cria uma fábula divertidíssima, como que uma brincadeira de criança. Até a loura elegante e aparentemente frígida ele traz do mestre (tenho pra mim que Deneuve daria uma grande musa de Hitchcock, se ambos tivessem se encontrado a tempo), atribuindo-lhe uma original dose de baratinamento sexual, moral e afetivo. Também a conclusão é subvertida: livre da necessidade de um Happy End – ao qual Hitchcock tantas vezes fora obrigado – Truffaut leva para o ritmo do filme a dinâmica de sua personagem principal, deixando a conclusão em aberto. A mulher-sereia não poderia dar uma existência de constante felicidade ao seu eleito. Mas de modo algum isso o afastava dela. O sentimento ambíguo de medo e paixão que ele nutre pela esposa fazem-no concluir: Vous êtes si belle, Julie, que te regarder c’est une joie et une souffrance. (Você é tão bela, Julie, que te olhar é uma alegria e um sofrimento).


O sensacional é que esta frase volta, quase que ipsis litteris, noutra parceria inspirada de Truffaut & Deneuve, “O último metrô” (Le dernier métro, 1980). Um parênteses necessário é o de que a beleza da musa francesa lhe rendeu, com o passar dos anos, uma legião de fãs/jornalistas/diretores extasiados. Em nenhuma de suas entrevistas ela deixa de ser atingida com perguntas que concernem a sua aparência física. Perguntada recentemente no Brasil sobre se “É um peso ser bela”, ela respondeu de modo inspirado: “Peso maior é ser feia”. Além de não ter pelo na língua (Bravo, Catherine!), a atriz demonstra que esta é, para si, uma questão menor. Tenho para mim, portanto, que ela e seu diretor decidiram de comum acordo transformar o assunto em tema de chiste. Quem pronuncia a sentença no filme de 1980 é a personagem desempenhada pela personagem de Gérard Depardieu na peça de teatro “decadentista” que um grupo francês encena numa Paris invadida pelos alemães durante a 2ª G.M. A frase, pronunciada com agudeza pelo ator, combina com o tom ultra-meloso e escapista da peça que o grupo põe em cena. Pensando-a no diálogo com o contexto, ela me parece uma gozação com o modo romantizado pelo qual público e imprensa veem a atriz – que, não raras vezes, afirma esperar no futuro “ser lembrada pela competência como intérprete e não pela beleza”.

Parênteses devidamente fechado, vamos agora a esse que é, sem dúvida, um dos melhores filmes de todos os tempos. E isso por tantos motivos... Pela profundidade com que trata das relações sociais estabelecidas em tempos de guerra, pela sutileza com que as personagens são construídas, pela solidíssima construção cinematográfica que torna o filme num só tempo inteligente, comovente, dinâmico, enfim, uma delícia de se ver e rever. Nele, Deneuve é uma ex-atriz de cinema que passa a tocar um teatro junto do marido diretor. Quando estoura a guerra, o homem de ascendência judia é obrigado a se esconder sob o palco do teatro, tornando-se, literalmente, a base sobre a qual se sustenta o edifício da peça ensaiada. Truffaut conduz uma câmera fluida para unir, de modo simbólico, o diretor apaixonado e o elenco alheio à sua presença: nas mais sofisticadas tomadas, a câmera desliza das cadeiras do teatro para o palco, dele para os atores e, em seguida, para a tubulação que levará as palavras ao diretor que, no subsolo, as repete com prazer. Emergem dessas cenas a dedicação pela arte, a luta pela liberdade e a possibilidade de o indivíduo espoliado retomar seu lugar na sociedade utilizando-se para isso da argúcia – expedientes que antes transformaram “Ser ou não ser” (1942), seu irmão de temática, noutro grande filme.
Em paralelo ao drama do diretor corre o drama de cada uma das personagens, as quais, apesar de livres, paradoxalmente sofrem mais revezes que o diretor. Longe dos olhos, mas não dos ouvidos do marido, a personagem de Deneuve protagoniza com a de Depardieu uma das histórias de amor mais surpreendentes da história do cinema. A economia dos gestos da atriz e a delicada robustez do ator presenteiam o público com um par romântico belo e verossímil. Um dos pontos altos do filme é a interferência do marido da jovem para esse desenlace. Tal inferferência mostra que Bernard Shaw estava certo ao dizer - tanto tempo atrás - que preferia a sutileza do Dr. Wangel (de “A dama no Mar”, drama de Ibsen) ao dispensar sua esposa do compromisso de ambos, do que a machadinha que certa personagem de Sardou usava para dar cabo da mulher que o traíra...
Com o filme, Truffaut prova cabalmente que o conceito de “autoria” não é sinônimo de emprego e reemprego incansável da mesma série de procedimentos tendo em vista chegar a um fim já conhecido. No "Último Metrô" está todo o charme de “A Sereia do Mississippi”, porém, numa ancoragem muito mais incisiva na realidade; num tratamento muito mais humano àquelas mulheres e homens que tinham de lidar com duros conflitos – não só externos como também internos.


segunda-feira, 11 de julho de 2011

“Sunset Boulevard”, Gloria Swanson e algumas notas sobre fama e ostracismo

“Crepúsculo dos Deuses” (1950) compõe um dos capítulos mais elucidativos do studio system hollywoodiano. Se, como thriller, ainda enreda o espectador contemporâneo que busca diversão – por sua sólida construção cinematográfica, pelo tratamento psicológico das personagens e pela surpreendente história de amor que acaba por definir o destino do protagonista – a atenção às suas nuances trará ao espectador um entendimento agudo da indústria do cinema. Isso fez com que a obra-prima de Billy Wilder colecionasse, desde seu lançamento, defensores ferrenhos e críticos contumazes. O diretor foi acusado por alguns de cuspir no prato que comeu, já que não economizou nas tintas para pintar a insânia da riquíssima ex-estrela de cinema, a qual, ao invés de conseguir um retorno triunfal ao écran, acaba por ganhar destaque nas páginas policiais das gazetas de Los Angeles.
Norma Desmond – magnificamente criada por Gloria Swanson, sem dúvida no papel de sua carreira – é metáfora dos stars que se deixavam possuir pelo mundo de faz-de-conta criado pela sétima arte. A mulher endinheirada e excêntrica, habitante de uma mansão no bairro que leva a alcunha de Sunset Boulevard – “bulevar do pôr-do-sol”, numa ácida referência à decadência de seu estrelato – faz remissão a tantas rainhas das telas que tiveram fim semelhante: riqueza e solidão. A cutilada na indústria do cinema é ainda mais incisiva porque o diretor escolhe uma grande estrela dos anos 20 para dar corpo à atriz louca – o que só faz ressaltar o lastro que sua história tem com a realidade.
Swanson foi uma das atrizes mais bem pagas, belas e badaladas de meados dos anos 10 até fim dos 20. Como Chaplin e Mary Pickford, começou nos curtas-metragens. Fez primeiramente slapstick comedy, mas cedo se descobriu moldada à comédia elegante com toques dramáticos. Àqueles que desejarem conhecer sua história, recomendo fortemente a Parte 6 do documentário “Hollywood: a celebration of the American silent film” (1980), que soma uma rememoração sucinta da trajetória da atriz ao depoimento dela e de seus contemporâneos sobre os tempos em que multidões jogavam-se aos seus pés.
É impressionante como a rememoração do passado pelos entrevistados no documentário se aproxima da reconstrução desse mundo feita por Wilder na película. Gloria relembra extasiada da recepção grandiosa que ganhou do povo de Los Angeles ao retornar da Europa em meados dos anos 20, casada com um nobre, depois de anos afastada da capital do cinema. Ela constata ter rapidamente percebido que a histeria coletiva devia-se mais ao lugar que a indústria do estrelismo lhe dera que ao seu valor como intérprete. Devemos, no entanto, olhar com cuidado para esse aguçado senso crítico, que parece ser produto da distância temporal. Outras vozes do documentário pintam uma mulher apegada a produtos de luxo e aos rótulos, ao ponto de comprar o mais caro dos automóveis com seu primeiro salário e, depois de casada, ordenar que seus conhecidos a chamassem de "Madame la Baronesse". Não é de se estranhar que, de tanto ser taxada como um ser de exceção, a atriz tenha, naquele momento, passado a se comportar como tal.

Gloria Swanson: bela e exótica na sequência de "Stage Struck" (1925) em que ela sonha ser Salomé

Norma Desmond é uma versão do que Gloria Swanson fora no auge do estrelato. Por certo é uma versão grotesca, porém, é isso o que dá envergadura crítica ao filme de Wilder. A semelhança entre a atriz e sua criação se estende para outros elementos da trama. Na película, Norma ensaia um revival com Cecil B. De Mille, seu diretor predileto. Gloria também voltava às telas depois de um longo período de ostracismo: desde seu malogrado “Queen Kelly” (1932), suas chances de atuar foram escasseando – “Crepúsculo dos Deuses” foi seu primeiro filme rodado em nove anos. De Mille, que desempenha a si mesmo no filme, teve tanta importância na trajetória de Swanson como na de sua personagem de “Crepúsculo dos Deuses”: ele tirara a atriz do slapstick e lhe vestira com figurinos fabulosos, dando-lhe o ar num só tempo de ingênua e de femme fatale que a tornou duradouro objeto de desejo do público – remeto quem estiver curioso para saber mais dessa fase ao post que escrevi sobre ela num passado pregresso...
O símile entre realidade e ficção se estende a outros personagens da trama. O roteirista boa pinta e com poucos escrúpulos Joe Gillis é desempenhado à perfeição por William Holden, que também via esmorecer seus anos dourados de galã. O mesmo se dá com Buster Keaton - já muito distante dos tempos áureos em que era comparado a Chaplin. No filme ele faz ponta como o ex-colega de profissão de Norma: era uma das “figuras de cera” – segundo o cínico Gillis – que jogavam carteado com ela. E, por fim, Max Von Mayeling – o ex-marido, ex-diretor e atual mordomo da atriz – é interpretado de modo igualmente perspicaz por Erich Von Stroheim, ninguém menos que o diretor responsável pela falência de Gloria Swanson e pelo malogro de “Queen Kelly”.

Foto publicitária do filme

O que poderia se resumir a um acerto de contas de stars decadentes com a indústria do cinema torna-se um dos maiores êxitos artísticos da era do star system. Se o conhecimento das referências permite ao espectador compreender mais profundamente a dimensão da crítica, seu desconhecimento em nada interfere na fruição da obra, competente nos mínimos detalhes. Billy Wilder, que além de comandar a batuta co-assina o roteiro, está em sua melhor forma. Dirigia desde 1942, data do sensacional “The major and the minor”, porém, roteirizava desde 1930. Apenas entre 39 e 45 co-escreveu três obras-primas da screwball comedy, “Midnight” e “Ninotchka” (1939) e “Ball of Fire” (1941), e o contundente drama "Farrapo humano" (1945) – o que significa que ele conhecia bastante bem tanto a carpintaria cinematográfica quanto os bastidores de Hollywood. A escalação dos artistas é sensacional não apenas pelo seu valor simbólico, mas porque cada um se encaixa perfeitamente nas exigências do roteiro.
William Holden mescla com competência charme e cinismo, introduzindo na mistura, no decorrer do filme, uma imprevista dose de romantismo que faz com que a gente se apiede do fim que acaba por levar – fim que conhecemos desde o princípio, já que é ele, morto, que nos narrará a história. A novata Nancy Olson se sai bem como a jovem roteirista responsável por fazer aflorar o lado íntegro da personagem de Holden. Stroheim aproveita seu físico robusto e rosto impassível para construir um personagem ambíguo: como um cão de guarda, permanece ao lado da mulher que ama, mesmo que para isso tenha de conviver com a presença do jovem amante dela.

Todavia, o filme pertence mesmo à Gloria Swanson. A atriz repete a mulher longilínea que envergava a moda exótica de Cecil B. De Mille, injetando na personagem a dose exata de insânia. Ainda bonita, comove como a mulher de meia idade que se submete a intensos tratamentos estéticos para novamente estrelar um feature – e ela quer ser “Salomé”, a jovem filha de Herodíades, o que a torna mais digna de piedade. Seu desejo é vão; Hollywood repudiava a velhice – ao menos no que tocava à sua constelação de estrelas. O ostracismo faz a atriz viver das glórias do passado. Revê os filmes de quando era jovem, junto do mordomo que lhe insufla o ego e do jovem amante roteirista que, em troco de boa casa e comida, pretexta dar corpo ao impossível texto de “Salomé” que ela escrevera.

Uma das grandes cenas do filme nascem de um desses encontros de Norma consigo mesma. Depois de se deleitar com seu rosto tomado em primeiro plano – “ela parecia uma fã”, diz a personagem de Holden -, a atriz ressalta quanto os filmes silenciosos são superiores aos falados: Ainda parece maravilhoso. E sem diálogos. Nós não precisávamos de diálogos, nós tínhamos rostos. Não há mais rostos como esse. Talvez um: Garbo.. Argumentos desse teor foram deveras repetidos até no começo dos anos 30 – quando se formaram hostes bem marcadas contra e a favor do cinema falado.
Retomada no começo dos anos 50, a assertiva da atriz soa anacrônica. Tanto, aliás, quanto sua remissão a Garbo, que se ausentara das telas desde 1941. A ironia final repousa no filme escolhido para deleitar a estrela decadente: não outro que "Queen Kelly", que, na vida real, fomentara a decadência de Gloria Swanson.
Outra cena igualmente notável é aquela em que Norma Desmond e Joe Gillis se conhecem. Você é Norma Desmond. Você fazia filmes silenciosos. Você era grande., diz ele, e ela com altivez lhe responde: Eu sou grande. Os filmes é que ficaram pequenos. Em ambos os momentos a câmera lhe toma em severos planos americanos que lhe dão a aparência de monumento – glosando o modo como a personagem se via.
Cenas como essas poderiam, em mãos pouco hábeis, soar farsescas ou ofensivas. Gloria Swanson afasta o perigo, vestindo com ousadia sua personagem de uma sublime bizarrice. Aqueles que se lançaram em discussões sobre o teor lesivo da obra de Wilder – Greta Garbo e Cecil B. De Mille cortaram relações com ele depois de verem o resultado final da empreitada – se esqueceram de atentar para o tour de force que a atriz executou. Ao invés de compor uma sátira de si mesmo – como supuseram alguns – Swanson deu corpo à sua personagem mais complexa, a uma das personagens mais complexas do cinema de estúdio e, o principal, rompeu com as regras vigentes na indústria ao desempenhar um papel completamente avesso àqueles aos quais estava acostumada. Norma Desmond foi seu primeiro passo para romper com as amarras de Hollywood, e o decisivo para ela se aventurar em paragens estrangeiras: recomendo aos curiosos o insólito “Mio figlio Nerone” (1956), em que ela, divertidíssima como a mãe de Nero, atua ao lado de Brigitte Bardot, uma das amantes do imperador louco.

Agrippina (Gloria) e Nero (Alberto Sordi)

Infelizmente tivemos poucas chances de desfrutar da afiada veia cômica da atriz. Perguntada por Brownlow (aproximadamente em meados de 1960) sobre quanto de “Crepúsculo dos Deuses” se aproximava de sua história, Gloria responde - segundo ele, adotando a prosódia de Norma Desmond:

All of it, dear. I really am the greatest star of them all. But I hide away from people. I live in the past. And if you take a quick look in the bathroom, you’ll find a body floating face downward right now. (The parade’s gone by, 1968).

Nós só saímos perdendo com o fato de a indústria cinematográfica ter reconhecido o valor do filme tão tardiamente. Indicado para todos os Oscars principais, o filme levou para casa o prêmio de Melhor Direção de Arte e Melhor Música. Wilder ainda dividiu com os roteiristas de "A Malvada" a estatueta de Melhor Roteiro (escrito em parceria com Charles Brackett e D.M. Marshman Jr.). "A Malvada" foi, aliás, o grande vencedor da noite. Sem dúvida o longa de Mankiewicz é um ótimo filme. Aliás, curiosamente os temas de ambos os filmes se aproximam. Neste tematiza-se os bastidores do mundo teatral. A grande diferença é que nele o vilão está bem marcado, o que concentra a crítica numa personagem específica ao invés de transferi-la para as bases da indústria do espetáculo, como faz "Crepúsculo dos Deuses". Tivesse o filme e Gloria Swanson sido premiados e talvez teríamos um desdobramento muito diferente na história da sétima arte. Especialmente se Gloria tivesse seu trabalho na película reconhecido, desfrutaríamos com mais frequência de seu talento.