domingo, 30 de junho de 2013

Notas sobre a tomada de consciência política no cinema (e além): Mr. Smith goes to Washington, Metrópolis, M...

Brigitte Helm em Metrópolis (1927)
Dois dias depois da escrita do post anterior encontrei-me pela primeira vez com Metrópolis (1927), obra-prima de Fritz Lang. A demora em vê-lo é desculpável, afinal, se a gente só pode ver uma vez um grande filme pela primeira vez, melhor é fazê-lo depois de amadurecer. Melhor ainda é quando ele estabelece um diálogo absurdamente intenso com o contexto histórico contemporâneo – a grandeza de uma obra de arte se mede pelo fato de ela continuar aguda, independente de sua idade. 
Metrópolis é um cabal exemplo cinematográfico da humanidade desperdiçada imaginada por Machado de Assim nas Memórias Póstumas de Brás Cubas, e aí imagino o escritor nonagenário colado à poltrona de um cinema da Cinelândia no Rio de fins dos anos 20, exclamando atônito “É isso, é isso”: porque na minha utopia o escritor que ainda cruzaria lépido o limiar de seu centenário seria com frequência encontrado numa das salas do complexo, a sorver a vida de luzes e sombras que vez por outra atingia a agudeza do seu gênio. 
Planos decupados das engrenagens do maquinário gigantesco sucedem-se na tela: o olhar ubíquo do cinema plasmando a ubiquidade do olhar do narrador delirante de Machado. Ao corpo da máquina sucedem-se planos do corpo social cindido. Em fila, operários sem rostos caminham rumo ao subsolo da máquina, à hora da troca de turnos. No plano superior, os bem-nascidos vivem num Éden artificial: douram seus corpos ao sol, brincam com as donzelas de sua escolha em jardins bem cuidados. 
A metáfora é de claro entendimento: os operários vivem no inferno, os bem-nascidos no céu, e todos são igualmente ludibriados pelos poderes superiores. A máquina-cinema dá ao espectador uma consciência análoga à da máquina que, no filme, domina ricos e pobres. E testemunhará quando esses últimos tomam consciência de sua eterna espoliação e assumem o poder. A ironia é quando isso acontece: os discursos de tintas cristãs da angelical Brigitte Helm (uma das cenas mais geniais do cinema é, para mim, aquela em que ela sobe ao plano superior com crianças maltrapilhas e, apontando-lhes os bem-nascidos, diz cheia de ira “Olhem, são seus irmãos.”) podem muito menos que a fala inflamada de sua clone má, feita dos mesmos fios que alimentam a exploração na Metrópolis. 
Metrópolis acaba destruída pela sanha coletiva; as crianças abandonadas em prol de uma revolta movida primeiro (somente?) pela paixão: a faceta má da brilhante Brigitte Helm mostrara-se uma Salomé cenas antes, levando à combustão aqueles que observavam a sua dança. A entrega apaixonada e acrítica que ela induz leva a multidão a transformar a já viciada Metrópolis na Babilônia da qual, não fosse pela Helm feita virgem Maria (mesmo o nome da mocinha é alusiva à mãe da igreja), não se salvariam nem as crianças, o futuro da cidade. 
Impossível não notar o quanto de visionário há nessa obra de Lang, vendo-a nesse momento de intensa conflagração social que vivemos. Fica claro que na megalópole de Lang a religião tem papel preponderante, exercendo controle cujo fim é o bem-estar social. O conservadorismo da conclusão não nos permite, todavia, apagar o percurso, deixar de lado os elementos que põem em contato a sociedade imaginada pelo criador austríaco e a nossa.
Quatro anos após Metrópolis, outro grande Lang dará voz à massa. Em M., o vampiro de Dusseldorf, um grupo de criminosos altamente organizado assume por conta própria o papel da polícia inapta, persegue e apreende o assassino de crianças Peter Lorre. Os mesmos bandidos submetem-no ao julgamento sumário cujo desfecho será o seu extermínio, ali mesmo, no porão feito tribunal/patíbulo. Antes de receber o veredito, o psicopata desesperado desenha aos algozes o terror que é não conseguir controlar suas paixões. Depois de ser considerado culpado, clamará pela polícia e, portanto, pelo amparo do Estado, da democracia, da constituição, dentro de cuja configuração deseja responder pelos seus atos. 
Peter Lorre em M. (1931)
Lang fala a partir de um tempo em que estavam em alta estudos sobre a psicologia das massas. O povo, unido, ganharia uma alma coletiva que apagava as individualidades e o que de controle elas implicitavam. 
A força das multidões está sendo observada nitidamente nas ruas, nestes últimas semanas, no que elas têm de bom e ruim. Compelida por elas, a governança viu-se obrigada não apenas ao assentimento protocolar, mas à tomada objetiva de decisões (e daí a diminuição do valor das passagens de transporte coletivo, a abertura de um canal democrático de comunicação, por meio de um possível plebiscito, a punição exemplar da bandidagem de colarinho branco). 
Cenas de M.
Igualmente, decisões afobadas denunciam intuitos populistas – reescrever a constituição do dia pra noite não pode dar em boa coisa. No que toca aos populares, pessoas exercendo o salutar direito de gritar por mudanças acaba misturada a uma minoria de bandidos; quando não o tal éthos de massa toma o sujeito, e aí vemos, por exemplo, gente formada, empregada e aparentemente encaminhada imiscuída “não sabe como” no grupo que assalta certa joalheria. 
O Lang de Metrópolis e M. vê com descrença a tomada de poder das massas. Tanto que são as instituições estabelecidas que retomam a ordem, a igreja no primeiro, o Estado no segundo. 
Da distância que eu decidi tomar – já que nenhuma vez saí pra rua, coisa que de modo algum me honra –, vejo tudo com curiosidade, esperança, mas também uma ponta de temor. Porque minha atual religião é o cinema, observo nos exemplos vividos ou sonhados pela sétima arte o quanto pode o povo unido. O análogo do poder paralelo de M. descambou, na Alemanha, no nazismo – que depois ascendeu legalmente ao poder, cometendo atrocidades de forma idem. 
James Stewart em Mr. Smith goes to Washington (1939)
Mas quem me conhece bem sabe que estou mais pra mocinha desbirocada do otimista Frank Capra que pra personagem de distopia de Lang. Os heróis de Capra são sempre demasiado americanos, seus filmes de temática política invariavelmente fecham com discursos embandeirados, mas ainda assim eu me identifico mais com eles que com qualquer outra cinematografia. Meu inesquecível herói do diretor é o James Stewart de Mr. Smith goes to Washington (A mulher faz o homem, 1939), porque de todos os seus otimistas ele é o que mais me parece verossímil. 
Stewart e Jean Arthur em Mr. Smith...
Jimmy ascende ao senado estadunidense sem qualquer know-how de política, simples títere de uma corja corrupta. Para calarem sua boca, os membros do partido o incentivam a apresentar um projeto qualquer. Ele escolhe a desapropriação de certa área no meio do nada, no entanto, fundamental para melhorar as condições de vida de certa população do Estado que representa. Acaba que tal lugar é estratégico também para o bando construir uma represa e forrar as burras de dinheiro. E aí, o Zé-ninguém vira inimigo perigoso do sistema imposto. 
Porém, a História mostra que os grandes movimentos são alavancados por acontecimentos banais. No filme de Capra, James Stewart defende desesperadamente seu projeto, recebendo em troca o desdém dos políticos e a violência de seu partido aos seus correligionários. Nas ruas de São Paulo, a polícia mete bala no povo que participa de um protesto pouco numeroso e pacífico. Quando Jimmy não consegue sustentar mais que um fio de voz, caixas e mais caixas de mensagens telegráficas de apoio inundam o Senado. Twittes invadem a web em apoio aos manifestantes paulistanos desbaratados com violência; fotografias do ocorrido são espalhadas via Facebook. Dias depois, milhões saem às ruas.

terça-feira, 18 de junho de 2013

Machado de Assis, cineasta “avant la lettre” (?)


Machado morreu quando o cinema havia acabado de engrenar no Brasil, em 1908. Poderíamos dizer que isso o impediu de tratar do assunto nos textos cronísticos que publicou até então em jornais, não tivesse Arthur Azevedo, morto também nesse ano (em 22/10)*, se estendido em considerações sobre o assunto desde fins de 1890. O certo é que o célebre literato, presidente da Academia Brasileira de Letras desde sua fundação, pouco se interessava pelo aparato mecânico que divertia as mais diversas classes sociais. 
Daí a parecer estranho o corte cinematográfico que ele enceta nalgumas de suas produções anteriores ao surgimento do cinema. 
Machado de Assis
Pensei em escrever a respeito depois de o capítulo do delírio de Brás Cubas ressoar em minha mente durante a leitura de um corpus de crítica cinematográfica produzida nos primeiros tempos da arte. Escolhi o título provocador que anuncia essas linhas, mal esperando encontrar na web um artigo ainda mais enfático sobre o tema (“Machado de Assis, inventor do cinema”, de Pascoal Farinaccio). Aparentemente não há mais nada de novo sob o sol, mesmo... 
Uma vista d’olhos neste texto mostra, no entanto, que seu autor dedica-se a pensar sobretudo a metalinguagem (especialmente das Memórias Póstumas de Brás Cubas, saído em livro em 1881, no ano seguinte à sua publicação em folhetim), atrelando-a ao cinema da opacidade (ou seja, ao cinema que discute sobre o fazer fílmico no transcurso da obra). 
Autógrafo de Machado ao exemplar
do livro oferecido à Biblioteca Nacional
Brás Cubas fica toda a obra dando piscadelas ao leitor sobre seu modo de escrever. Ele questiona-se sobre o absurdo de seu papel de escritor d’além túmulo (capítulo “Óbito do autor”), antecipa a opinião do público (“Ao leitor”), chama a atenção para o modo como resolve certa passagem complicada do texto (“Transição”)... A amarração gera uma narrativa cheia de (intencionais) arestas; a forma e o conteúdo concorrendo para o tom cáustico do conjunto. 
Minha preocupação é menos englobante. Concentro-me no capítulo “O delírio”, no qual, como se sabe, o narrador moribundo, depois de se transformar num conjunto heterodoxo de coisas e objetos, vai dar no pico da montanha, de onde observa o acotovelar-se de todas as eras passadas e futuras; o combate universal sem trégua e vão. Um capítulo que o feérico Méliès faria mais a contento do que o fez André Klotzel na mais conhecida versão cinematográfica do romance (de 2001), creio eu. 
Afinal, o que há mais Méliès que a metamorfose sofrida pelo protagonista delirante? 
Primeiramente, tomei a figura de um barbeiro chinês, bojudo, destro, escanhoando um mandarim, que me pagava o trabalho com beliscões e confeitos: caprichos de mandarim. 

Logo depois, senti-me transformado na Suma Teologica de São Tomás, impressa num volume, e encadernada em marroquim, com fechos de prata e estampas; ideia esta que me deu ao corpo a mais completa imobilidade. 
Fotograma de filme de Méliès
Cabeças a saltarem para folhas de música, bondes a transformarem-se em carroças, objetos a ganharem vida marcaram a obra produzida pelo cineasta francês entre as décadas de 1890 e 1910. 
A corrida leva Brás Cubas, no lombo de um hipopótamo, ao mais inóspito dos ambientes: “nada vi, além da imensa brancura da neve, que desta vez invadira o próprio céu, até ali azul.” Aqui e ali, plantas disformes balançavam ao vento no vazio, quando de repente, imensa, surge no quadro Pandora: 
um vulto imenso, uma figura de mulher me apareceu então, fitando-me uns olhos rutilantes como o sol. Tudo nessa figura tinha a vastidão das formas selváticas, e tudo escapava à compreensão do olhar humano, porque os contornos perdiam-se no ambiente, e o que parecia espesso era muita vez diáfano. 
O sarcasmo que perpassa o texto do narrador, coalhado de digressões de cunho crítico/jocoso às pessoas de sua convivência, faz-me aproximar a quase onipresente Pandora do perigosíssimo monstro criado por Méliès para a fita “À la conquête du pôle” (1912). O vídeo todo está online no Youtube, mas me interessa especialmente a parte abaixo, filmada na exposição sobre o cineasta que esteve no MIS no ano passado: 
  

A influência é mais do espírito da época que direta. Méliès foi mágico e dono de teatro antes de se tornar cineasta. Machado de Assis acompanhou de perto o teatro de seu tempo, em que as mágicas tanto sucesso faziam entre o público. Foi igualmente dramaturgo e censor teatral antes de escrever Memórias Póstumas. O tom surreal de sua narrativa do delírio bebeu, portanto, de fontes semelhantes àquelas que influenciaram Méliès na virada do XIX e começo do XX. As mutações das mágicas teatrais ganham melhor acabamento no romance e no cinema que no palco. 
Arthur Azevedo e a atriz Pepa Ruiz; ele, grande teatrólogo, ela, a mais conhecida atriz de mágicas do Rio de Janeiro do fim do séc. XIX e começo do XX
Mas o maior prenúncio do cinema apresenta-se, neste capítulo de Memórias Póstumas, na ubiquidade da cena da passagem das eras, vista por Brás Cubas do alto da montanha. 
O trecho é grande e duvido (ceticismo machadiano) que muitos o leiam até o final, então deixo antes um par de conclusões sobre o cinematógrafo proferidas pelo escritor mexicano Amado Nervo (1898) e pelo cineasta americano D. W. Griffith (1912). Nervo vê o cinema como um potente instrumento de registro da realidade. A certa altura de sua crônica, diz (faço aqui uma tradução livre a partir da versão em francês do texto): 
Oh, se nos fosse dado assim reconstruir todas as épocas; se tivéssemos podido, graças a um aparelho mágico, contemplar, como do alto de uma estrela, o imenso desfile dos séculos; assistir à formidável marcha dos mortais através dos tempos. 

Como compreenderíamos então o vasto plano do universo!** 
Griffith anos depois discorre sobre a linguagem que torna possível tal desfile dentro de uma narrativa ficcional. O cineasta sublinha a grande quantidade de informação que o cinema do momento podia pôr em cena, algo impossível ao teatro. O cinema é “um cenário no qual seis ou sete eventos se desenrolam no mesmo tempo e lugar.”***, diz ele. A possibilidade da narração paralela de duas intrigas (Griffith fala sobre “Intolerância”, de 1916) faz emergir a noção de ubiquidade do cinema. A transição entre os temas é tornada possível pela inserção de um elemento tipicamente cinematográfico, como uma flor tomada em close
Fotogramas de "Intolerância" (Intolerance, 1916) Fonte: http://otroladodelaescena.blogspot.com.br/2010/12/intolerancia-de-david-w-griffith-1916.html
Penso nesse delírio machadiano feito de fúria, temor e delícia – afinal, como se verá, o narrador-personagem diverte-se imenso observando o delírio universal, como tivesse diante de si um espetáculo – e entrevejo o brilho dos olhos de Griffith enquanto ele escrevia esse texto no qual defende o cinema como o mais satisfatório objeto artístico de seu tempo. O estado de loucura de Brás Cubas o faz vislumbrar o futuro. Relendo este capítulo de Memórias Póstumas, fica difícil compreender por que Machado de Assis desdenhou do cinema. 

Abaixo, o trecho prometido do delírio: 
Imagina tu, leitor, uma redução dos séculos, e um desfilar de todos eles, as raças todas, todas as paixões, o tumulto dos impérios, a guerra dos apetites e dos ódios, a destruição recíproca dos seres e das coisas. Tal era o espetáculo, acerbo e curioso espetáculo. A história do homem e da terra tinha assim uma intensidade que lhe não podiam dar nem a imaginação nem a ciência, porque a ciência é mais lenta e a imaginação mais vaga, enquanto que o que eu ali via era a condensação viva de todos os tempos. Para descrevê-la seria preciso fixar o relâmpago. Os séculos desfilavam num turbilhão, e, não obstante, porque os olhos do delírio são outros, eu via tudo o que passava diante de mim, — flagelos e delícias, — desde essa coisa que se chama glória até essa outra que se chama miséria, e via o amor multiplicando a miséria, e via a miséria agravando a debilidade. Aí vinham a cobiça que devora, a cólera que inflama, a inveja que baba, e a enxada e a pena, úmidas de suor, e a ambição, a fome, a vaidade, a melancolia, a riqueza, o amor, e todos agitavam o homem, como um chocalho, até destruí-lo, como um farrapo. Eram as formas várias de um mal, que ora mordia a víscera, ora mordia o pensamento, e passeava eternamente as suas vestes de arlequim, em derredor da espécie humana. A dor cedia alguma vez, mas cedia à indiferença, que era um sono sem sonhos, ou ao prazer, que era uma dor bastarda. Então o homem, flagelado e rebelde, corria diante da fatalidade das coisas, atrás de uma figura nebulosa e esquiva, feita de retalhos, um retalho de impalpável, outro de improvável, outro de invisível, cosidos todos a ponto precário, com a agulha da imaginação; e essa figura, — nada menos que a quimera da felicidade, — ou lhe fugia perpetuamente, ou deixava-se apanhar pela fralda, e o homem a cingia ao peito, e então ela ria, como um escárnio, e sumia-se, como uma ilusão.
(...) 

ver os séculos que continuavam a passar, velozes e turbulentos, as gerações que se superpunham às gerações, umas tristes, como os Hebreus do cativeiro, outras alegres, como os devassos de Cômodo, e todas elas pontuais na sepultura. Quis fugir, mas uma força misteriosa me retinha os pés; então disse comigo: — “Bem, os séculos vão passando, chegará o meu, e passará também, até o último, que me dará a decifração da eternidade.” E fixei os olhos, e continuei a ver as idades, que vinham chegando e passando, já então tranqüilo e resoluto, não sei até se alegre. Talvez alegre. Cada século trazia a sua porção de sombra e de luz, de apatia e de combate, de verdade e de erro, e o seu cortejo de sistemas, de idéias novas, de novas ilusões; em cada um deles rebentavam as verduras de uma primavera, e amareleciam depois, para remoçar mais tarde. Ao passo que a vida tinha assim uma regularidade de calendário, fazia-se a história e a civilização, e o homem, nu e desarmado, armava-se e vestia-se, construía o tugúrio e o palácio, a rude aldeia e Tebas de cem portas, criava a ciência, que perscruta, e a arte que enleva, fazia-se orador, mecânico, filósofo, corria a face do globo, descia ao ventre da terra, subia à esfera das nuvens, colaborando assim na obra misteriosa, com que entretinha a necessidade da vida e a melancolia do desamparo. Meu olhar, enfarado e distraído, viu enfim chegar o século presente, e atrás dele os futuros. Aquele vinha ágil, destro, vibrante, cheio de si, um pouco difuso, audaz, sabedor, mas ao cabo tão miserável como os primeiros, e assim passou e assim passaram os outros, com a mesma rapidez e igual monotonia. Redobrei de atenção; fitei a vista; ia enfim ver o último, — o último!; mas então já a rapidez da marcha era tal, que escapava a toda a compreensão; ao pé dela o relâmpago seria um século. Talvez por isso entraram os objetos a trocarem-se; uns cresceram, outros minguaram, outros perderam-se no ambiente; um nevoeiro cobriu tudo, — menos o hipopótamo que ali me trouxera, e que aliás começou a diminuir, a diminuir, a diminuir, até ficar do tamanho de um gato. Era efetivamente um gato. Encarei-o bem; era o meu gato Sultão, que brincava à porta da alcova, com uma bola de papel...
* Data de morte de Arthur Azevedo atualizada em 24/6/13 (cometi um lapso na edição original do texto, ao apontar que o literato morrera em 1907).
** "Le cinéma: naissance d'un art: 1895-1920", Camps Arts, Paris, 2008, p. 60.
*** Idem, p. 393.

domingo, 2 de junho de 2013

Faroeste Caboclo: a trajetória de Santo Cristo em melodrama

O novo longa de René Sampaio foi lançado com pompa e circunstância esta semana, na entrada do feriado prolongado, em 500 salas de cinema do Brasil, em meio a largo anúncio pela imprensa na forma de notícias, artigos de opinião e informes publicitários. 
Na Folha de S. Paulo eu contei, por alto, meia dúzia de matérias desde dez dias atrás, além dos anúncios quase que diários de página inteira e de uma versão-propaganda do extinto “Notícias Populares” – o nostálgico “se torcer sai sangue” cuja capa eu lia diariamente nas bancas da cidade – recheada de notícias fictícias contando todos os detalhes sórdidos que culminaram no assassinato do anti-herói de Renato Russo no lote 14 da Ceilândia. 
A entourage convenceu-me a ver o filme. 
Saindo do cinema, a informação da “Folha” sobre o orçamento do longa – 10 milhões de reais, incluída aí a verba com a divulgação – dava mais voltas em minha cabeça que a história contada. 
Não que “Faroeste Caboclo” seja ruim. Trata-se, na verdade, de um filme praticamente todo o tempo mediano, com uns poucos momentos de brilho. Não é um filme que envergonha, quando arrolado entre as produções nacionais, servindo ainda como mais uma peça para provar a vitalidade (ao menos quantitativa) de nossa safra anual. 
Funciona como peça melodramática: a história do garoto negro e pobre, que presenciou a morte violenta do pai pelas mãos de um soldado e sai pelo mundo buscando justiça é contada de modo satisfatório, apesar de alguns ruídos (a voz off de João de Santo Cristo parece a todo o momento contradizer o que mostra a imagem – apenas para citar um exemplo, sua afirmação de que “Paguei tudo o que devia à Justiça”, após ir preso pelo assassinato de um policial, soa estranha na boca de alguém que se quer justiceiro). 
O elenco está algo desigual. O par romântico está claramente pouco à vontade; falta química entre Isis Valverde e Fabrício Boliveira. 
Boliveira está muito bem, mas Valverde está apagada (ela que é sempre luminosa na TV). Não consegue fazer sua Maria Lúcia alçar voo; e a “menina linda” que vira a cabeça de João, levando-o ao fatídico desfecho, sai da nossa cabeça tão logo a atriz sai de cena. Já o uruguaio César Troncoso está excelente como o traficante Pablo, o parente distante de João que o inicia no negócio. 
Voltando à história: Maria Lúcia, fumadora compulsiva de maconha, conhece um Santo Cristo em fuga da polícia, envolve-se com ele, repudia-o ao descobrir que ele vende drogas (!), dizendo que aquela não era vida para ela, para depois se casar com o traficante rival do rapaz (!?). Para os furos usa-se a desculpa da psicologia densa da personagem da jovem, enquanto que seu casamento com Jeremias é facilmente explicado usando-se como muleta o gênero em que o filme se constrói – a quantas desventuras obriga o amor!... Mas a verdade é que Maria Lúcia não recebe tratamento psicológico nenhum, entra e sai de cena como um comparsa de comédia de costumes, a existir apenas enquanto escada para o herói – para o anti-herói, no caso. 
Pode-se dizer que a presença empírica dela na música também é episódica – do que discordo, já que na música o desejo de vingança de João ocorre quando ele, querendo voltar para se casar com a mocinha, descobre que ela já se casara com o seu rival. Mas o filme tampouco triunfa como adaptação fiel da música (entendendo “fiel” como algo que respeita o “espírito” da canção - entidade que mesmo intangível dispensa maiores explicações). 
A canção “Faroeste Caboclo” lê as relações sociais de Brasília e adjacências – e, por extensão semântica, de todo o Brasil – como um duelo sangrento do qual a “Justiça” se isenta. Faroeste como gênero que fez vicejar o cinema americano tanto como indústria do entretenimento quanto como formação da identidade social do norte – interessado nas discussões sobre o cinema como era, Renato Russo provavelmente conhecia o que o crítico francês André Bazin falou sobre o gênero. 
Na jovem Capital da República brasileira também se travava um duelo, não entre o cowboy colonizador e o índio cujas terras ele desejava no longínquo meio Oeste americano onde ainda não chegava a lei, mas entre os migrantes pobres moradores das cidades-satélites e os podres poderes constituídos. 
Santo Cristo morre filmado e cercado de público: “Se a via-crúcis virou circo, estou aqui”, diz ele ao se observar um novo gladiador, a alimentar a sede de sangue das massas com o seu sofrimento. Panem et circenses – não poucas vezes em sua jovem história o cinema foi considerado o novo circo romano; Russo, conhecedor da sétima arte como era, possivelmente não estava alheio a isso. 
Esta adaptação de “Faroeste Caboclo” resvala para o melodrama digestivo, em que mocinho e mocinha morrem tal e qual Romeu e Julieta para encontrarem um happy end no além (a voz off diz algo como “Não termino aqui”, enquanto ambos jazem iluminados por sorrisos serenos). Noutras palavras, o filme termina ratificando o Panem et circenses ao invés de se bater contra ele, como faz (extensamente) a música. 
E mais: cenas ágeis de perseguição, decupagem que procura higienizar as cenas em que há sexo (inclusive o estupro de Santo Cristo), drogas e violência, para caber na faixa indicativa dos 10 anos; estas estratégias aumentam o público consumidor da fita, mas aniquilam o potencial explosivo da canção, além de reduzir bastante seu viés crítico. 
“Faroeste Caboclo”, a música, teve sua veiculação censurada nas rádios. A distância que o filme estabelece dela pode ser cabalmente medida pelas estratégias que facilitam a sua ampla vendagem. E assim, a via-crúcis de Santo Cristo perpetua-se como circo...