terça-feira, 24 de dezembro de 2013

Um clássico moderno: Uma linda mulher (Pretty Woman, 1990)

Diz-se que, não importa sobre o que escolhemos escrever, acabamos sempre falando sobre nós mesmos... Prova disso é este último post do ano, saído do caldeirão onde nas últimas horas revolveram-se artigos de uma Folha da semana passada, zelosamente guardada por minha mãe enquanto eu viajava; uma resenha antiga sobre “Charada”, datada do início do blog; o último conto de fadas de Julia Roberts, exibido ontem em TV aberta entre um amontoado de inserções comerciais...: Bárbara Heliodora fez publicar recentemente uma história do teatro cuja única novidade é a informação de que Machado de Assis escreveu uma paródia de “La Traviata”, diz o jornal paulistano. Que Machado desgostava da “Dama das Camélias” eu já sabia. O desdobramento inusitado da tal ojeriza muito me fascina, vindo do escritor que a história literária embalsamou dentro duma aura de santidade. A ópera de Verdi e “Charada” foram apanhadas com a mesma graça por Gary Marshall em “Uma linda mulher”, protagonizada pela ainda hoje belíssima e carismática Julia Roberts, obra que vi faz muito pouco tempo, por conta d’outras “Traviatas”... 
Bem, so much for the autobiography. Vamos ao filme. 

“Uma linda mulher” é fruto da parceria entre o diretor Garry Marshall, o roteirista J. F. Lawton, a até então novata Julia Roberts e o galã Richard Gere, cuja carreira remontava ao início dos anos 70 e contava já com uma obra de sucesso como “O Gigolô Americano” (1980). Aliás, a aproximação das temáticas de ambos os filmes é apenas acidental. A obra de Marshall dá ao assunto árido o talhe dos contos de fadas. Sua protagonista é uma Gata Borralheira moderna, prostituta do baixo meretrício de Hollywood Boulevard transformada em Cinderela pelas mãos de um ricaço de Wall Street. O Happy Ending é tão irreal quanto adorável. Não falamos de realidade, mas de cinema, como o filme deixa claro, ao apropriar-se de um conjunto de produções da dita “Era de Ouro” da cinematografia, especialmente de “Charada” (Stanley Donen, 1963) - obra que, por sua vez, dialoga com o cinema que lhe é anterior (por exemplo, “Interlúdio”, de Hitchcock, 1946 – reflexão mais aprofundada sobre tal produção o leitor obterá neste link). 
A referência artística fundamental do filme é, no entanto, “La Traviata”, cujas sequências principais são encenadas diante de uma protagonista em prantos, espectadora de seu provável – no entanto, não consumado – infortúnio. A Violetta da obra de Verdi ao final sucumbe à doença, à solidão, ao preconceito. A Vivian/Julia Roberts é salva pelo seu errático cavaleiro andante: que galopa uma limusine conduzida por um motorista, usa o guarda-chuva à guisa de espada e galga com dificuldade, pois tem medo de altura, a escadaria de serviço que o leva ao topo do prédio onde jaz sua dama... “Pretty Woman” desce o conto de fadas das alturas do mito até o chão-a-chão da realidade – ainda que edulcorada. 
Suas personagens, ao abdicarem da intrepidez arquetípica das matrizes clássicas, ganham em humanidade. Penso que o viço deste blockbuster – mesmo passados mais de 20 anos de seu lançamento – se deve ao equilíbrio certeiro que ele estabelece entre a fantasia atemporal e o pragmatismo contemporâneo. Para além de debates rasteiros sobre o suposto machismo presente no “resgate” da prostituta da “sarjeta” por meio do casamento, temos ali um par de personagens que igualmente precisam de salvação, e seu duro percurso rumo ao comprometimento afetivo como fuga do capitalismo selvagem. Desnecessário me ater em como isso se dá – quem desconhece “Uma linda mulher”? 
Calha ainda de o filme ser acompanhado por uma das trilhas sonoras mais brilhantes de todos os tempos. Bastam os primeiros acordes de “Pretty Woman”, na voz poderosa de Roy Orbison, para que venha à nossa cabeça a sequência chave do filme: Vivian experimentando os figurinos com que entrará para o jet set. Marshall constrói aí uma perfeita versão moderna da transformação da Gata Borralheira em Cinderela. A “Fada Madrinha” não é só o galante Edward Lewis/Richard Gere mas sobretudo o seu cartão de crédito - o verdadeiro protagonista dos afagos do gerente da loja de luxo. Clímax do filme, a cena mostra que, no palco de aparências da sociedade, cada qual só vale pelo que ostenta. Só o amor atinge a essência dos seres. 
Qualquer pieguice da conclusão é diluída por um roteiro repleto de tiradas luminosas, pela química dos protagonistas (ambos igualmente ótimos), além da música inesquecível. Nossa “Traviata” moderna palmilha as ruas de Hollywood embalada por uma trilha que se revelaria tão popular quanto a de Verdi, como tantas outras palmilharam antes dela, de Alla Nazimova a Greta Garbo e Vivien Leigh, em tantas versões de “damas da noite” em busca da felicidade. Felizmente já estávamos em 1990, e então ela pôde encontrá-la.

quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

Cannes 2013 no Brasil: “Jovem e bela” e “Azul é a cor mais quente”

Dois exemplares da cinematografia francesa lançada em Cannes este ano aportaram a pouco nos cinemas de arte brasileiros: “Jeune et jolie” (François Ozon) e “La vie d'Adèle” (Abdellatif Kechiche). Ganham aqui uma nota conjunta porque ambos debruçam-se com análoga sensibilidade no universo feminino à época do desabrochar da sexualidade. 
Ozon segue eminentemente voyerístico, como o fora de modo admirável em “Dentro de Casa”, sua obra anterior. Desta vez, a câmera acompanha as errâncias da adolescente Isabelle (Marine Vacth) entre a Riviera e Paris, do preâmbulo de sua primeira experiência sexual até sua transformação na jovem de vida dupla, aluna de Liceu e prostituta nas horas vagas. “Bela da tarde” (La belle du jour, 1967) surge como modelo ao filme, tanto pela leitura despida de moralismos que faz do assunto quanto pelo cuidado com que deslinda a personalidade da personagem feminina. 
“Jovem e bela” difere-se, no entanto, da obra de Buñuel, porque não ensaia o mergulho na psique de Isabelle. De modo análogo a como fizera no ótimo “Dentro de Casa”, Ozon prefere observar a jovem a partir do que ela deixa transparecer à flor da pele. Metáfora curiosa desta visada voyerística é composta logo ao princípio do filme, quando Isabelle desdobra-se em observadora de seu primeiro ato sexual, juntando-se aos espectadores da película. 
O desgosto ocasionado pela experiência estampa-se em seu rosto. À partida das férias e da cidade ensolarada rumo à Paris outonal segue-se um lapso temporal, e então reencontraremos a jovem já envolvida na vida dupla de estudos e de prostituição. A ruptura funciona narrativamente: “Jovem e bela” não procura apresentar causas e consequências de forma organizada e dialética, no intuito de apontar quais foram os fatores determinantes para a guinada na vida de sua protagonista. Retem-se em fragmentos de atitudes e gestos, reproduzindo no público a exasperação vivida pela família da jovem: Por que ela decide se prostituir? Não pode ser pelo dinheiro, diz a mãe, uma vez que a garota sempre tivera tudo o que queria. Para se sentir a figura ativa na relação, então? Pela aventura? Por tudo e por nada disso, talvez. 
Ozon, sempre elegante e sardônico, toca a amoralidade na tessitura desta obra que estabelece com nossa época um diálogo muito mais vivo do que uma porção de produções recentes, as quais se debruçam chorosamente sobre as famílias cindidas, a pobreza e outras mazelas responsáveis por enveredar o sexo feminino na prostituição. 
Obviamente não é o caso de negarmos problemas tais. É o caso, sim, de trazer à baila um assunto ainda tabu: por extensão de sentido, prostituição continua a significar “aviltamento, desonra, rebaixamento”, diz o Houaiss. Ao mergulhar na psique da personagem de Catherine Deneuve, Buñuel explicita ao público o vulcão que a jovem senhora da sociedade escondia sob a pátina de “respeitabilidade” ostentada. Para aplacá-lo, somam-se ao marido os homens desconhecidos que a visitarão às tardes, no prostítulo reles. Entre o casamento morno e os transes sadomasoquistas, a “bela da tarde” encontra a felicidade. A solução parece estar no entremeio da santidade e da depravação, para Buñuel como para Ozon; daí a vida dupla alimentada com afinco. 

Polêmico é também “Azul é a cor mais quente”, título disparatado para “La vie d'Adèle”, um dos filmes mais notáveis dos últimos tempos. A obra vencedora da Palma de Ouro (também venceram as atrizes protagonistas do longa, fato inédito na história da Palma) levantou celeuma desde que foi exibida em première na Croisette. O motivo: as cenas de sexo explícito protagonizadas por Adèle Exarchopoulos - jovem de admirável domínio do métier, apesar de estreante -, e por Emma (Léa Seydoux). 
A intensidade do desempenho das atrizes, sobretudo da que dá título à obra, pode ser em parte explicada por suas declarações acerca do trabalho do diretor. Após o propalado desconforto do público frente ao realismo das cenas de sexo, raramente igualado no cinema, as atrizes esmiuçaram à imprensa o quão violadas se sentiram pela assertividade da câmera de Kechiche, a persegui-las todo o tempo, captando suas imagens mesmo fora do set de gravação. O mal estar deste quiproquó de primeira hora fez com que qualquer qualidade cinematografia da obra fosse obnubilada. Felizmente, porém, o fato não a impediu de ser justamente agraciada com o prêmio maior em Cannes, ou de a jovem Adèle ser alçada ao posto de atriz de mérito invulgar. 
“La vie d'Adèle” compra a polêmica logo de saída, ao identificar o nome da protagonista ao da atriz, e assim, acenar para um realismo documental – como se as imagens correspondessem fielmente à vida, sem mediação. A escolha estende-se para uma mise-en-scène que paradoxalmente recusa a representação, investindo num jogo pautado pela sutileza. Como no filme de Ozon, a câmera recusa os manejos grandiloquentes para se demorar nos olhares, gestos e sentimentos das personagens. Faz isso com uma liberdade, segurança e delicadeza estonteantes, colocando em questionamento os limites atinentes não só à ficção e à realidade, mas aqueles que se referem aos gêneros cinematográficos (é documentário? é ficção? é drama? é filme erótico?). 
Que é ficção, não há dúvida. Não li, até agora, uma resenha do filme que não tenha aludido às cenas de sexo, preparando o público para o que o aguardava. Tolice, já que a censura claramente realiza a restrição e, uma vez que tenha 18 anos, espera-se que o espectador esteja suficientemente crescido para não se chocar com algo tão prosaico. Cumpre assinalar aqui a atmosfera de intimidade criada nestas cenas, devido não apenas a uma decupagem requintada, que transforma corpos em grandiosas paisagens (materializando a ideia do amor como uma força da natureza); como à química entre as atrizes, raramente alcançada neste nível no cinema. 
Tais cenas são uma das chaves para que se compreenda o amadurecimento de Adèle, deslindado sempre no duplo viés pessoal e profissional. A câmera segue paulatinamente o percurso da jovem do Liceu ao ambiente de trabalho, das tímidas relações amorosas até a plenitude afetiva e sexual (e o sofrimento dela inerente). Ambas as dimensões seguem pari passu, a profissional servindo de metáfora da pessoal, à qual é dada a primazia: os tempos de estudante de Adèle, e depois, seu emprego de professora no jardim de infância e nas classes de alfabetização, correspondem à descoberta do amor, à sua vivência puramente intuitiva, à leitura e interpretação do que viveu – portanto, ao seu amadurecimento. 
Curioso é que vida pessoal e escola se complementam, neste filme como em “Jovem e bela”. Embora os ensinamentos da “escola da vida” acabem por preponderar, a educação formal ocupa papel relevante nesta fase do desenvolvimento das jovens. As aulas de literatura, sobretudo. Nas duas películas, as protagonistas leem, com a sala, textos canônicos franceses: Rimbaud em “Jovem e bela”, “La vie de Marianne” em “La vie d'Adèle”. E em ambas, as leituras costuram-se às vidas das personagens. Isabelle tem a sede do poeta adolescente para quem “nada é muito sério quando se tem 17 anos”. A saga de Adèle em busca de si não é construída sem luta e amargor, como na obra de Marivaux. A arte nasce da arte, mostram estas duas obras. E daí forja-se a vida.

Em tempo: bastante provavelmente teremos Adèle Exarchopoulos, Cate Blanchett e Sandra Bullock concorrendo a uma estatueta do Oscar no ano que vem. Torço pela última por uma questão puramente afetiva, pois quaisquer das três merecem-no muito.

quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

Arte; porque a vida não basta. A Carruagem de Ouro” (1952)

“Peru, inícios de século XVIII. Uma troupe de teatro mambembe italiana aporta na colônia espanhola em busca do enriquecimento. Esta é premissa da obra-prima do francês Jean Renoir, rodada na Itália, protagonizada por uma diva italiana mas falada em inglês – deslocamento temático desdobrado na estruturação da própria trama. 
“Carruagem de Ouro” é precioso por qualquer lugar que se lhe pegue: enquanto incursão de Anna Magnani no idioma de Shakespeare, enquanto apropriação da Commedia dell'Arte, enquanto encenação da aguda influência que a pintura do Renoir pai exerceu sobre o filho cineasta, enquanto exercício metalinguístico, enquanto exemplar do gênero cômico... 
Magnani encontra aqui terreno amplo para mostrar a superlativa artista que era. Obrigada a falar inglês, a vera italiana tinge a língua de um sotaque forte, que bem combina com a personagem que leva à cena – sempre a reclamar, pródiga na gesticulação, do idioma arrevesado que a obrigam a aprender para ganhar a América. Ela é Camilla na vida e Colombina na arte, Colombina na vida e Camilla na arte, neste interpenetrar que transforma a atriz na personagem e injeta na personagem a seiva da atriz. O corpo que ganha as vestes do tipo encenado é nu de roupas mas prenhe de espírito. Na impossibilidade de a atriz despir-se de sua carne e de sua alma, ela se cede um pouco ao novo “eu” que a habita, não sem deixar de pegar um pouco dele para si. 
Camilla é, assim como o arquétipo de Colombina, pobre, fogoza e matreira. Na cena, ajuda a namorado Arlequim a proteger sua patroa e o apaixonado desta das garras do pai da mocinha. Na vida, desdobra-se entre vários amantes que ela respeita e ama com fogo e amor análogos. E é, como o arquétipo que alimenta em cena, ardilosa na hora de administrar tantos amantes. Este entremear de arte e vida emerge na mise-en-scène de Renoir, no deslizamento da câmera do palco onde desenrola-se a peça para os bastidores nos quais Camilla luta para defender as joias recém-ganhas do Vice-Rei da sanha do oficial espanhol (companheiro com o qual ela fizera a travessia da Europa à América); ou na casa de Camilla, transformada em palco, com seus tortuosos caminhos e inúmeras portas por detrás das quais ensaiam cantores, atores, guardam-se figurinos e escondem-se amantes. 
O filme se inicia como se fosse teatro. A cada abrir de cortinas sucede-se um quadro onde o acontecimento tem lugar. O teatrinho onde a troupe se apresenta é miniatura da casa-palco de Camilla, onde todos permanecem usando seus figurinos de teatro. Se lá Camilla torna-se a grande senhora, ela assume seu novo papel ainda com algo do espírito de Colombina: fogoza e expansiva, doce e romântica; pródiga de atenções para com seus apaixonados (todos). 
Anna Magnani constrói com maestria a mulher múltipla, ela que o fora cabalmente, na arte e na vida. Vemo-la tingida de corpo e alma do Sol da Itália, bela e forte como uma donna daquelas paragens. “Mamma Roma”, a metáfora de seu chão. Libertária como sua personagem de “Roma, cidade aberta”, hilária como a sua Gioia do impagável “Risate de gioia”, a encarar cantando as pedras do caminho, já que seu elemento era a felicidade. Em “Carruagem de Ouro”, Anna, ao se multiplicar, torna-se intimamente Anna. É uma alegria vê-la. 
O riso apesar dos pesares. Renoir ilumina seu filme com a luz dos quadros de seu pai. Emoldura as cenas, à guisa de quadros. Cria versões moventes do tocador de flauta adorável que o pai agigantou numa tela, coloca-os a dar cambalhotas no palco da commedia. Transforma quadros em telões de teatro. Coloca Renoir a conviver com a Commedia dell'Arte e mergulha um e outro nas melodias de Vivaldi. A mescla dá nova vida à tradição, inserindo nela o cinema, arte ainda tão jovem. Acima de tudo, apresenta a arte não apenas como metáfora da vida, mas como sua germinadora. 
Influências tão várias fazem brotar uma obra cheia de originalidade, alegre como os acordes das “Quatro Estações” que a abrem e a semeiam. Ensolarada, mas também agridoce, como se quisesse lembrar que Verão e Inverno sucedem-se incontornáveis no curso dos tempos.