sexta-feira, 28 de novembro de 2014

Mil vezes boa noite: das seduções de um mundo em ruínas

Algumas vezes o cinema se impregna de visceralidade tal que se torna, pelo espaço de duas horas, o espelho dos meandros mais tortuosos das nossas almas. Digo isso depois de ver e rever “Mil vezes boa noite” (Tusen ganger got natt, 2013), ótimo filme de Erik Poppe, com uma Juliette Binoche de intensidade estonteante, secundada por um Nikolaj Coster-Waldau cheio de equilíbrio e uma jovem atriz com méritos de veterana (Lauryn Canny, em sua estreia no métier). 
“Mil vezes boa noite” fala de guerra. Daquelas travadas entre dois grupos oponentes, visando à supremacia de um sobre outro (governos versus grupos terroristas; governos versus civis; tribos rivais, etc.). Porém, sobretudo, daquela travada dentro de nós mesmos, silenciosa, mas nem por isso menos brutal. 
Juliette Binoche é Rebecca, francesa radicada na Noruega, fotógrafa de zonas de conflitos com marido e duas filhas pequenas. Seria a mocinha modular, à moda das heroínas americanas de guerra (uma delas, a Hana de “O Paciente Inglês”, deu-lhe mesmo um Oscar de Melhor Atriz Coadjuvante), não se digladiassem dentro dela, em medidas análogas, o horror à barbárie e a incontrolável atração pelas situações-limites. 
É a clássica sedução do perigo – que movimenta o turismo de aventuras, dá altos retornos financeiros aos divertimentos radicais dos parques e arrasa multidões aos filmes-catástrofes; entretenimentos que oferecem ao público a possibilidade de viver em dimensão controlada as situações de tensão – que leva Rebecca a abandonar a família rumo aos fronts de batalha; para fruir a vivência do terror, desta vez empiricamente. 
Juliette é uma atriz experimentada. As heroínas convencionais são para as meninas – para as atrizes meninas; para as mentalidades meninas. A sinceridade com que ela traja as vestes da personagem, despindo-se de melodramatismos, e o despudor com que num só tempo bebe o sangue dos sujeitos que retrata e chora por eles, tornam-na a projeção de cada um de nós, da integridade que desejamos ostentar e das taras que procuramos esconder. 
A ambivalência se estabelece durante todo o curso da narração, com profundidade rara no cinema contemporâneo. O filme promove uma dissecção nas personagens de primeiro plano que me lembro de ter visto pela última vez em “Separação” (2010). 
Quem é Rebecca? A fotografa brilhante, vista como heroína pelos colegas de trabalho? A mulher cuja vida familiar é marcada pelas despedidas: esposa apaixonada porém ausente; mãe que amarga a culpa de não acompanhar o crescimento das filhas, não por amá-las de menos, mas por ser incompatível à maternidade padrão. Como ao casamento padrão. A mulher que busca transcender os limites do próprio corpo, como se quisesse fugir dele: dos mergulhos nas águas geladas do mar invernal norueguês, às corridas exaustivas a que se submete, estando ainda por cicatrizar das feridas abertas pelo último atentado a que presenciou. 
“Não podemos fugir do que somos”, ela diz ao esposo. Seu repúdio às marcas da violência que dilaceram os rostos dos outros – marcas que ela com tanto talento registra – convive dentro de si com uma sanha de atividade que a leva a querer mover-se; em detrimento das marcas que ela própria deixa pelo caminho – como a obrigação que impõe ao marido e à filha mais velha de viverem na contínua iminência de sua morte. 
É a gana de aventura, a “raiva não sei do quê” - que desde sempre habitava dentro de si – que a fazem tão boa. Rebecca, fotógrafa excepcional enquanto não se deixa envolver emocionalmente por aqueles aos quais fotografa, vê-se reduzida a frangalhos quando a filha lhe volta a objetiva, fotografando a mãe austera até que a transforma em objeto. Doravante, a profissional de sangue frio ganhará uma emotividade que, se a aproxima daqueles que constantemente a esperam em casa, também a incompatibilizará ao ofício. No rincão do Oriente Médio, Receba é incapaz de fotografar a menina-bomba que se prepara para o holocausto. A fotógrafa dá lugar à mãe. 
Mãe que, a certa altura, percebe ter se transformado no espelho da filha. Retorna de uma de suas constantes viagens para ver a garota prematuramente amadurecida. Também artista: desenhista, a traçar com o lápis o rosto morto da mãe, registro de um fato que cedo ou tarde acabaria por se consumar. Steph quererá seguir os passos de Rebecca. Descobrirá com ela os primeiros prazeres e temores das zonas de conflito, e semeará na mãe o temor primevo de perdê-la – explicitado na cena em que Rebecca vê a adolescente afegã ser preparada para morrer. 
O filme tece cinematograficamente a ambivalência, construindo imagens – fotografias e sequências – que primam num só tempo pela beleza e pelo horror. Rebecca desejava fazer os leitores de seu jornal engasgarem com os terrores que registrava; faz sua câmera funcionar à guisa de arma, transformando-se, ela, em soldada dos oprimidos; mas muitos daqueles que ela registra transbordam fotogenia. A sequência inicial, com o velório de uma mulher afegã viva – para que as rezas não se dirigissem a um corpo destroçado –, o último banho da vítima, a encomenda de sua alma ao seu Deus, e a impassibilidade com que a fotógrafa acompanha o evento antes e depois da explosão - ferida e amarfanhada -, é das mais belas rodadas nos últimos tempos. Ao iluminar os éthos guerreiros das duas mulheres, alinhando-as uma à outra, a sequência leva os espectadores a questioná-las a ambas. 
Ao mesmo tempo, as cenas da intimidade familiar dão-nos um estranhamento que também é o da protagonista, mais acostumada às suas “roupas que cheiram a morte” que à casa acolhedora da família. Embora breves sopros de felicidade façam resplandecer o belo rosto Juliette – a fotogenia em pessoa – a casa é sempre o âmbito da passagem, suas paredes a ecoarem despedidas.

sábado, 8 de novembro de 2014

Música & Cinema no SESC Pinheiros

Foi com nostalgia que recuperei a resenha da exposição francesa "Musique et cinéma", escrita quando eu recém voltara de Paris. E os comentários dos amigos blogueiros. A Letícia, da Crítica Retrô, sonhava: “Quem sabe um dia não temos a sorte de vir uma exposição dessas para o Brasil?”. Sonho de realização improvável, mas não impossível. Prova disso é que o SESC Pinheiros (São Paulo, metrô Faria Lima) acolhe agora (e até 11 de janeiro de 2015) uma porção considerável dela. 
O questionamento segue o mesmo: “Música & cinema: O casamento do século?”. E as respostas desdobram-se com a mesma formatação da Exposição original: a penumbra a mimetizar a sala de cinema; telas brancas a reproduzirem as sequências de abertura de filmes rodados entre os anos de 1930 e 2000; enquanto pequenos monitores apresentam sequências célebres (Clouzot a testemunhar Karajan regendo a Filarmônica de Berlim; Judy Garland num dos números musicais de “Nasce uma Estrela”, 1954...) e conta as histórias a eles relacionadas. É desusado me estender aqui. Remeto o leitor à tal resenha passada, que descreve a passo a exposição. 
Da criação da Cité de la Musique, não cruzaram o Atlântico os estúdios de brinquedo; os três telões a emergirem uma grande audiência nas obras inesquecíveis. A sala dentro da qual criadores explicavam proficuamente suas criações foram transformadas nuns poucos monitores a apresentar o depoimento de escolhidos: Ennio Moriconni, Michel Deville, Eduardo Coutinho.  
O resumo é eficaz. Se lima consideravelmente a voz de nomes fundamentais da música na Sétima Arte, como Michel Legrand (a quem o lirismo da obra de Jacques Demy muito deve), também dá voz à prata da casa – igualmente abafada na exposição francesa, diga-se de passagem. Chico, Vinícius, Caetano e Gilberto Gil deram corpo e alma a filmes mais ou menos populares: de “Ópera do Malandro” (1986) a “Lisbela e o Prisioneiro” (2003); de “Veja essa canção” (1994) a “Eu tu eles” (2000). A seleção deixa de lado os usos mais cerebrais da música, como aquele que ocorre em “O Som ao Redor” (2012), para concentrar-se, sobretudo, na canção. Daí, pede a voz Eduardo Coutinho, cuja última obra, “As Canções” (2011), recupera as trilhas-sonoras das histórias de anônimos. 
O sempre sagaz Coutinho vê as vidas dos brasileiros indissoluvelmente imbricadas nas canções. Um mundo emerge dessa consideração: a revolução tecnológica que tornou possível a invenção do fonógrafo, do cinema e do rádio, que engatilhou a cultura de massas, alavancou a popularização da música enquanto item fragmentado de consumo: nos 78 rotações, nos salões de bailes dos bairros, numa variedade crescente de gêneros que aproximavam os corpos, relaxavam os costumes severos de outrora e davam voz a uma massa a quem o acesso à música clássica era impossível. Nosso século XX teve a honra de parir Cartola, Irving Berlin, Adoniran Barbosa, Cole Porter, Vinícius, George Gerswhin, Catullo da Paixão, nossos Beethovens. 
O cinema acolheu de bom grado a popular canção, sua contemporânea. A Exposição apresenta algumas das primeiras tentativas de se sincronizar som e imagem: O "Chronomégaphone Gaumont", de 1906, apresentava números musicais curtos. São da época gravações de canções populares e de trechos de óperas, reduzidos às suas mais célebres árias. 
Enquanto que, ao longo dos anos 1895-1920, instrumentistas e orquestras maiores ou menores tocavam antes, durante e/ou depois das exibições cinematográficas, além de ritmarem, dos bastidores, os affairs imaginários das estrelas silenciosas das telas (observem o violinista e a pianista que tocam para criar o mood romântico em Garbo e Nagel, n’“A Dama Misteriosa”). 
Música e cinema: o casamento do século? Um dos mais auspiciosos, por certo. Se lágrimas nos subirem aos olhos aos primeiros compassos de “Moon river”, será possivelmente porque nos lembraremos de Audrey Hepburn flanando suave pelas ruas sonolentas de Nova York, ao despertar da cidade (e de “Bonequinha de Luxo”, 1961). 
Nunca o prelúdio de Tristão e Isolda me soou tão pungente quando no momento em que fui interpelada pelo desespero de Kirsten Dunst, em “Melancolia” (1961). A música nos toca a todos menos por seu propalado “sentido universal”, e mais porque ela ganha subitamente tradução num rosto, num gesto, num acontecimento – quer sejam naqueles criados pelo cinema, que nos são dados sem pejo fitar, quer seja naqueles construídos pelos nossos cinemas individuais, nas canções que embalam as pessoas e os momentos que nos são queridos.
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SESC Pinheiros: Música e Cinema: o casamento do século?
De 20 set. 2014 a 11 jan-2015
R. Paes Leme, 195. São Paulo (metrô Faria Lima)