terça-feira, 21 de abril de 2015

Notas sobre a telenovela contemporânea (destaque para a relação entre a telenovela e o merchandising)

Adriana Esteves em "Avenida Brasil" (2012)
De vez em quando, a tevê nos proporciona um encontro desconcertante com o nosso passado – encontro cuja força nos coloca a pensar sobre o presente e a projetar o futuro. Falei disso no início de 2011, quando da nova exibição da íntegra de “Vale Tudo” (1988), pelo então recém-fundado Canal Viva. A trama de surpreendente atualidade, a coesa carpintaria dramática (não obstante as dificuldades técnicas da época) e a qualidade das atuações destacavam um tempo áureo do suporte televisivo, em que se colocava em primeiro plano o desejo de comunicar visando-se a emoção e o fomento da reflexão crítica. 
Não repisarei aquele artigo, que pode ser facilmente acessado pelo leitor. 
A reflexão aqui não sairá, todavia, daquele eixo. Em 2011, aventei sobre a possibilidade de a nova dramaturgia, bafejada pelo bom exemplo da reprise, evoluir intelectualmente tanto quanto já evoluíra tecnicamente. “Avenida Brasil”, estreada no ano seguinte, atestou a veracidade do que eu dizia. Ou parte dela, já que o trabalho saíra da mesma cepa donde já brotara o sucesso de audiência e crítica “A Favorita” (2008). João Emanuel Carneiro, o autor de ambas as telenovelas, demonstra talento superior para transigir com o atual status quo da televisão, sem que, com isso, precise transformar sua obra em rebotalho. Porque, verdade seja dita: hoje, apenas um talento acima da média conseguirá levar a cabo por meses uma obra de valor artístico, dadas as exigências comezinhas do mercado. 
Alexandre Nero em "Império" (2014)
A telenovela atual é produto do desenvolvimento galopante das traquitanas tecnológicas, competidoras potenciais da televisão. Acostumados à velocidade com que circulam as informações pela web, os olhos do público buscam antes o brilho fugidio das fotos e vídeos que os feeds atualizam, antes a informação oca das frases breve usualmente isentas de teor crítico, do que o deslindar pausado de almas e corpos. Daí à produção televisiva contemporânea estar coalhada de personagens de um convencionalismo mofado – gente ora boa, ora péssima; ora heroica até a raiz dos cabelos, ora incontornavelmente pusilânime; e às tramas serem de uma aterradora vaziez. De nada adianta: excetuando-se alguns sucessos de público – como “Império” (de valor artístico discutível, aliás), o público continua a preferir o smartphone e a Netflix, deixando a TV aberta à deriva. 
Nextel em "Em Família" (2014)
Seria inócuo atribuirmos culpas univocamente. A televisão aberta de hoje obedece, como outrora, a economia de mercado. Ainda precisa, por exemplo, de patrocínio para manter a programação – e precisa, consequentemente, oferecer aos anunciantes a contrapartida dos investimentos feitos por eles. O rareamento do público empírico, ou da atenção do público, obriga à diversificação e acirramento das estratégias de convencimento utilizadas pelos anunciantes. No último ano, observei, com alguma curiosidade malsã (devo confessar...), os subterfúgios inventados pelos autores das obras dramáticas no intuito de inserirem nas tramas o famigerado merchandising: 
Manoel Carlos deve ter sofrido ao ver sua alta roda do Leblon (em “Em Família”) obrigada a frequentar uma popular rede de supermercados – sofrimento vertido para a forma mal-ajambrada como as inserções publicitárias de tal loja foram costuradas na trama. 
Leandra Leal em "Império"
Já Aguinaldo Silva, mais popularesco e safo, não raro emoldurou os anúncios com piscares de olhos irônicos: o cartão crédito do banco X corria como navalha nas mãos da blogueira de fofocas, mulher fina e elegante que não se furtava, entretanto, a querer conhecer em detalhes como funcionava o cartão de fidelidade do posto de gasolina Y. Isto quando o autor não explicitou a sua dificuldade de lidar com uma obrigação tão “antidramática”, transformando essa ou aquela personagem em portas-vozes dele. Théo Pereira foi seu melhor alter-ego: “Gente” – diz o fofoqueiro-mor, olhando para a câmera como se fora Woody Allen – “não tentem entender o que o autor está dizendo, senão vocês perceberão que estão sendo feitos de idiotas. Coloquem no piloto-automático e toquem adiante”. 
Totia Meireles em "Salve Jorge" (2012)
Cito de memória, procurando, porém, manter o espírito do dito. Este trecho ainda se salva pela graça da metalinguagem. No entanto, nele, como noutros de “Império”, vê-se claramente emergir a tensão entre o dramático e o extra-dramático: entre as necessidades incontornáveis da trama e as bugiarias que esgarçam a sua tessitura. O que era acessório torna-se fundamental. Incontornável é a necessidade de se manter o anunciante, ao redor do qual passa a girar o enredo. É impossível, portanto, comparar “Vale Tudo” e “Império” – já que a última é um híbrido de obra de ficção e peça publicitária. 
O mal disso é imenso. Estruturalmente, observa-se o esfacelamento das tramas, cujos caminhos dependerão do rol de anunciantes patrocinadores da obra dramática – doravante reduzida ao papel de veículo visando à comercialização de um produto. Deturpação que se espraia para o âmbito ideológico. De um lado, para o possível choque entre a ideologia do ator e aquela atrelada ao produto anunciado (considerando-se a analogia historicamente estabelecida entre pessoa pública e a pessoa privada do ator). De outro, para a redução do microcosmo da tal obra dramática aos labels dos produtos que a patrocinam – calando-se a polifonia social que a telenovela supostamente se propõe a representar, em prol de uma uniformidade mistificadora. 
Débora Falabella em "Avenida Brasil"
A telenovela contemporânea vê-se, assim, esvaziada de sua histórica função social. Vinte anos atrás, os destinos das personagens das tramas pareciam indissoluvelmente imbricados aos destinos da sociedade. Daí àqueles seres de papel serem sentidos como gente de carne e osso; seus passos e descompassos religiosamente acompanhados por um público entusiasta. 
Hoje, quem assiste com esta paixão às novelas? Quem verdadeiramente se interessa pela trajetória do ricaço-equilibrista, a rodar histrionicamente entre os dedos a amante, a esposa e a megera vilã? Quem deseja, em 2015, ver a anacrônica femme-fatale reduzindo à míngua toda a população masculina da trama, enquanto que a sua antagonista baba sobre ela o seu ódio e inveja? Ninguém, além daqueles que dirigem à TV olhares furtivos, entre a escritura do último tweet e a atualização do feed de notícias do Facebook. 
A telenovela contemporânea respeita a lógica da inserção comercial. Oferece uma hora de descanso à atenção do público. Esta ausência de intencionalidade abre-lhe o campo para que ele passeie por outras fontes enquanto espia o programa, ou então desligue a TV em prol de uma dramaturgia mais afiada - como os públicos entusiastas de Game of Thrones e outros hits de qualidade da TV fechada não me deixam mentir. 

Esses comentários servem de preâmbulo ao próximo artigo, sobre “O Rei do Gado”, que a Rede Globo agora reprisa. Eu sonho com uma telenovela como esta em horário nobre – como essa ou como “Avenida Brasil”: menos suave, mais pragmática, igualmente ótima. Mas sonho porque sou uma balzaquiana nostálgica, cuja trajetória foi marcada pelos heróis dos folhetins. É por obrigação moral a eles, apenas, que ainda insisto diante da telenovela.
Patrícia Pillar em "O Rei do Gado" (1996)

quarta-feira, 1 de abril de 2015

O futuro do cinema está na TV. Parte 2: “Hannibal”

Comecei, na resenha passada, uma série de dois textos que se propunham a discutir as qualidades “cinematográficas” das séries televisivas. Supus, ali, que o cinema mainstream perdia o interesse em prol da TV, para onde estavam migrando os roteiristas de talento e os stars. Aproveitando-se do recente desenvolvimento técnico, que parece ter tornado o público desdenhoso da tela grande em prol da comodidade oferecida pela aparelhagem individual (telas com extensão e definição cada vez maiores, programação sob demanda etc.), incrementaram-se os investimentos na dramaturgia televisiva. 
Pululam as séries de qualidade: “Breaking Bad” (2008-2013), “Game os Thrones” (2011-...), “Homeland” (2011-...), “House of Cards” (2013-...). A lista não exaustiva atesta o viço do gênero, que aqui receberá um recorte puramente pessoal. No post anterior, propus-me a deixar minhas impressões sobre as produções televisivas de dois atores saídos da Sétima Arte. Ali, falei sobre o “Sherlock” de Benedict Cumberbatch. Aqui, falo sobre o “Hannibal” (NBC-USA, 2013-...) de Mads Mikkelsen. Dois grandes atores, dois grandes personagens, duas produções que não fazem feio quando aproximadas das anteriores extrações cinematográficas das histórias. 
“Hannibal” tem atrás de si obras cinematográficas mais auspiciosas que “Sherlock”. Uma, pelo menos: “O Silêncio dos Inocentes” (“The Silence of the Lambs”, Jonathan Demme, 1991) é uma obra-prima de thriller, com inspiradores Anthony Hopkins no papel do canibal assassino Dr. Hannibal Lecter e Jodie Foster como Clarice Starling, a jovem agente do FBI que precisa da ajuda dele para agarrar um serial killer. Quando lançado, em 1991, o filme provocou um daqueles clarões que raras vezes se vê no cinema. Não à toa, arrebanhou todos os Oscars principais, como antes – se não me engano – somente fizera “Aconteceu naquela noite” (“It happened one night”, 1934). Distendeu o limite de seu gênero, como Frank Capra havia feito com os limites da comédia na longínqua década de 1930. Temos ali um assassino frio, sádico, vilânico e, no entanto, elegante, charmoso e irresistível. O mais refinado dos anfitriões, não fosse um pequeno detalhe: ele servia aos convivas as carnes dos entes que matava. 
“Silence of the lambs”, como era de se esperar, teve várias sequências: “Hannibal” (de Ridley Scott, 2001), com o próprio Hopkins no papel-título e Julianne Moore como a agente Starling; “Dragão Vermelho” (“Red Dragon”, Brett Ratner, 2002), no qual Hannibal/Hopkins contracena com gente do calibre de Edward Norton, Ralph Fiennes, Harvey Keitel e Emily Watson; e “Hannibal – a origem do mal” (“Hannibal Rising”, Peter Weber, 2007), com o papel-título desempenhado por Gaspard Ulliel. Nenhuma dessas produções, todavia, atingiu a sutileza e a dubiedade da obra original. 
Nenhuma, até o “Hannibal” protagonizado pelo ótimo Mads Mikkelsen – ator dinamarquês que, malgrado a notoriedade adquirida em seu país desde meados dos anos 90, foi notado pela América apenas recentemente, quando Cannes deu-lhe o prêmio de Melhor Ator (por “A Caça”, em 2012). Mikkelsen tem o physique du role perfeito para desempenhar o Dr. Hannibal Lecter. Lábios e nariz finos, rosto anguloso, olhos perscrustadores. Um corpo vigoroso, ainda que delicado. Um todo sedutor, porém, uma beleza bem pouco ortodoxa. O conjunto proporciona ao personagem a ambiguidade do original. Ambiguidade expressa logo no primeiro plano em que Mikkelsen aparece: um plano americano em que ele, deleitando-se com o sabor da iguaria que viera de deglutir, imerso na sombra, parece um daqueles espécimes gloriosos de homens desempenhados por Emil Jannings sob a batuta de F. W. Murnau. 
O garbo do ator atinge uma importante dimensão de Hannibal Lecter, que é a de bon vivant. Antes de ser criminoso, o médico é um esteta: que abandonou o exercício cotidiano da medicina para realizar um exercício antropofágico com os corpos de seus antigos pacientes – como se pedisse a eles a retribuição de seu trabalho. A alimentação para si não é um exercício comezinho: é ato refletido, esculpido à perfeição, desde a primordial escolha da carne – por meio de uma insólita agenda de endereços que ele usa à guisa de livro de receitas –, passando-se pelo ato criminoso – encenado tal e qual uma peça de teatro –, e enfim, a preparação suntuosa da iguaria, para convivas escolhidos a dedo. 
Observá-lo causa no espectador um misto de ojeriza e deleite. A surrealidade dos atos do hábil profissional é sublinhada por uma cinematografia que os pinta com uma artesania clássica, construindo um distanciamento irônico dos objetos que toma por tema – vejam-se as fotografias de divulgação da série (espalhadas pela resenha) a contrapelo desta abaixo, de autoria do Renascentista Giuseppe Arcimboldo (séc. XVI). Hannibal destroça as suas vítimas como um perfeito lord, ao som dos acordes de Haendel – ora dedilhados no cravo que ele possui em casa, ora reverberados por uma orquestra completa, enquanto ele amacia pulmões ou produz salsichas a partir de intestinos. “É preciso que eu lhes avise: nenhum desses pratos é vegetariano”, diz aquele homem adepto dos descalabros dos festins da realeza clássica aos indivíduos de nossa sociedade contemporânea, politicamente correta, “sustentável”. 
Retrato do patrono de Arcimboldo, imperador vienense Rudolf II (1590),
feito a partir de frutas e legumes.

Fonte: http://www.smithsonianmag.com/arts-culture/arcimboldos-feast-for-the-eyes-74732989/ 
O sadismo de Hannibal é tão over, tão insólitos são seus desdobramentos, que acabamos por saboreá-lo com prazer. A faceta realista – e, portanto, pungente – da trama fica por conta da personagem de Will Graham (que aparecera no “Hannibal” de 2002, na pele de Edward Norton). Na série, Graham/ Hugh Dancy é um homem sensível, transformado em consultor do FBI por ser dotado de uma habilidade extrema de empatia – consegue colocar-se à perfeição na pele dos algozes e das vítimas, para, assim, poder refletir sobre suas motivações e atitudes. A série abre exacerbando a sua cenografia e o modus operandi de Graham: um flash-back mostra ao espectador, em riqueza de detalhes, como o consultor teria executado uma família. Só mais tarde o espectador perceberá que, a despeito do que as imagens mostram, Graham não é o criminoso. 
Mas a ambiguidade já está colocada: ao longo do drama, o envolvimento emocional com os crimes levará o rapaz a desenvolver um problema neurológico (que o Dr. Hannibal Lecter – também psicoterapeuta de Graham – acompanha num só tempo com curiosidade científica e com preocupação pelo amigo que a fatalidade colocara em seu caminho) que bastante provavelmente o fará trespassar a linha que separa a sanidade da insanidade, a lei do crime (eu ainda não cheguei nesta parte). É dilacerante vê-lo esforçar-se para calcar chão na realidade, enquanto que a figura mefistotélica de Hannibal empurra-o na via íngreme que o levará à exploração vertical dos meandros de seu “eu” atormentado.