sexta-feira, 22 de maio de 2015

Charlie Chaplin: o palco, as telas e o mundo

Charlie Chaplin anda me povoando como nunca. No mês passado, um golpe de sorte obrigou o vagabundo a se materializar de novo aqui em casa, extensivamente. E eu, como tantas vezes, o descobri como se o visse pela primeira vez. André Bazin, um apaixonado inconteste do artista, dizia que o mérito de Chaplin estava no frescor sempre renovado de sua obra: malgrado as décadas que o separavam de seu público. Isso era verdade tanto entre os anos de 1940 e 60, época em que o crítico francês escreveu sobre a obra do cineasta, quanto o é hoje. Daí a relevância desses escritos – que, aliás, podem ser desfrutados de um só gole pelo público, já que foram reunidos num convidativo volumezinho editado pela Zahar. 
Bazin destaca a inquestionável genialidade do artista, esmiuçando as características de sua obra que o fazem tão grande. Empresta seus pressupostos analíticos da Nouvelle Vague: toma Charlie Chaplin enquanto “autor”, uma individualidade que dá sentido ao conjunto de filmes que compôs. Como o crítico francês começa a produzir esses textos analíticos à época em que parte considerável da obra de Chaplin já havia vindo à luz, ele tem a chance de analisá-la em continuidade, percebendo a evolução da personagem ao longo das décadas, desde seu nascimento cinematográfico, no ano de 1914, até meados do século XX. 
O crítico toma o artista enquanto figura empírica e enquanto imagem cinematográfica, analisando densamente a movimentação e o embricamento dessas duas instâncias. Entre a figurinha pálida de Carlitos – que ascendera do posto de personagem ao de mito, passando a habitar “a consciência da humanidade” – e o homem Charles Spencer Chaplin, há um mundo. 
Sem a maquiagem
Há, de saída, a relação dialética entre pessoa e personagem, responsável por moldar o cinema dos primeiros tempos. O vagabundo chapliniano fora primeiramente um desdobramento da persona de seu criador: rapaz franzino, não raro famélico, cuja infância se passara entre as mais popularescas ribaltas do vaudeville e os subempregos pelas vielas de Londres. Quando se fez homem, o ator mambembe se empregou – por obra do irmão – na companhia teatral que o levaria aos Estados Unidos. O resto é História. 
Bazin debruça-se com cuidado na persona moral de Charlie Chaplin, determinante, segundo ele, na definição do palmilhar do Vagabundo pelas telas, no correr das décadas. Dos balbucios cinematográficos do desconhecido “Charlie”, na Cia Keystone, até a sua transformação no mundialmente conhecido personagem – e multimilionário ator –, pouco tempo se passa. Como poderia o homem bem alimentado e trajado vestir impunemente os andrajos da personagem que o tornara notório? 
Chaplin demoraria a abandonar seu “Charlie” – personagem que, como tantos do cinema dos primórdios, atrelava criador e criatura. No entanto, logo se esforçaria para adensar os sentidos sociais de sua obra. É digno de nota o quanto o “Charlie” dos curtas e médias-metragens da Keystone (1914) distancia-se daquele de O Garoto (1921), Luzes da Cidade (1931) ou Tempos Modernos (1936). Neste transcurso de tempo, a depuração estilística da personagem – devido ao paulatino domínio do métier adquirido pelo seu criador – caminha lado a lado com a sua evolução “moral e psicológica”; e com a evolução técnica do cinema. 

Num pastelão da Keystone:
His prehistoric past (1914)
Charlie saltaria das pantomimas teatrais da Karno Company para o lado de Marie Dressler, inconteste primeira-dama do pastelão cinematográfico dos anos de 1910 – coadjuvante, ele, nos palcos como nas telas. A marginália cênica se mistura à social. Dentre os atores do grupo de Karno, Chaplin destacava-se por sua performance de um bêbado – personagem que ele teria decalcado do pai alcoólatra, homem que cedo abandonara a família. Seus primeiros passos pela película ortocromática bebem desta fonte teatral, desempenhando, ele, uma personagem essencialmente de má-índole, a distribuir piparotes a torto e a direito, nos traseiros de seus adversários. 
Porém, a mágica já principiava a acontecer nas telas. Aquela máscara branca e negra, vestida de calças largas e puídas, chapéu-coco e bengala – vagabundo brioso, um todo tão contraditório e, ainda assim, tão adorável – cedo se destacaria do conjunto cênico, transcendendo a película para atingir as culminâncias do mito. Com a relevância artística viria o sentimento de responsabilidade. 
Com Jackie Coogan, em O Garoto (1921)
Bazin não deixa de perceber o percurso comum dessas personagens que, esforçando-se por retribuir a predileção do público, inclinam-se à perfeição moral. Charlie se emendará aos poucos. Ou por meio da pseudo-maternidade, n’O Garoto – no qual a personagem a princípio recalcitrante acaba afeiçoada à criança de quem a princípio desejava se livrar –; ou então por amor. Bazin forja um argumento perfeitamente romanesco, ainda que verossímil, para explicar o elemento feminino na obra do artista. Naquele constante intercâmbio havido entre o Charlie real e o ficcional, as mocinhas chaplinianas davam corpo ao ideal romântico de seu criador, sendo representadas pelas apaixonadas reais do homem Chaplin – a exemplo de Edna Purviance ou Paulette Godard. E são essas mulheres que, na obra de Chaplin, fazem emergir o que de melhor há na personagem. Daí à obra do diretor voltar-se, segundo Bazin, à busca da mulher que o reconcilie com a sociedade e consigo próprio. 
Com Edna Purviance
Bazin não esconde sua preferência pelo Charlie Chaplin anárquico dos primórdios – a quem os aspectos cinemáticos preocupavam mais que os morais. Esta faceta do homem fora fundamental para o desenvolvimento do cinema: no forjamento das cenas perfeitas, tendo como máxima finalidade a construção e o encadeamento das gags – em detrimento do fio do enredo. A figura mítica de Carlitos nascera mais dos trejeitos e tiradas cômicas – buriladas à excelência –, que da complexidade das histórias narradas. Daí ao herói subsistir às cenas e aos filmes, povoando o nosso imaginário com a eternidade de um Pierrot. 
Em Monsieur Verdoux (1947)
O crítico, no entanto, não nega a importância desta evolução na topografia do mito. Os desdobramentos cinematográficos de Carlitos atrelam-se incontornavelmente à história da Sétima Arte. Nascido branco e negro, no absolutismo da película ortocromática – sucedânea da pintura que transformava as personagens do circo ou da Commedia Dell Arte em máscaras –, Carlitos precisou evoluir com o desenvolvimento técnico. O cinzento do pancromático matava o mito ao detalhar as fisionomias, constata Bazin. “A máscara lunar de Carlitos pouco a pouco desaparecia, corroída pelas nuances da película pancromática (...). Abaixo, como superposto, aparecia o rosto de um homem já envelhecido, escavado por algumas rugas, cabelos semeados em mechas brancas: o rosto de Charles Spencer Chaplin.” (p. 45)
Daí à natural metamorfose de Chaplin em Monsieur Verdoux (1947), considerado pelo crítico francês o duplo negativo de Carlitos. Daí o abandono (apenas suposto) da eterna personagem, por parte de seu criador, em Luzes da Ribalta (1952) – a mais bela e obscena profissão de fé ao teatro, autobiografia na qual o já envelhecido cineasta exibe seus vincos todos, exorcizando seu temor (e o temor de cada artista) de ser abandonado pelo público. Charlie Chaplin obriga-se, nesses dois últimos filmes, ao realismo pungente. E, ao fazê-lo, determina a eternidade de seu mito. 
Em Luzes da Ribalta (1952)
Nas críticas de André Bazin escritas entre fins de 1940 e primeiros anos de 1950, contemporâneas aos lançamentos de Monsieur Verdoux e Luzes da Ribalta, fica patente o misto de devoção e temor do ensaísta frente ao percurso de seu objeto de análise. Motivo importante das loas que o crítico tece ao cineasta deve-se à organicidade de sua obra – seu desenvolvimento pautado pela artesania poética, a contrapelo do que ocorria no grosso do cinema, que desde muito cedo se dobrara à lógica de produção em série do mercado. 
A transmutação de Carlitos em Verdoux ou em Calvero correspondia à regeneração e à purificação do mito. Culpado do assassinato das matronas com as quais se casara, Verdoux ruma para o cadafalso com o mesmo caminhar sincopado com o qual o eterno vagabundo despedia-se usualmente de seu público – despedida relativa, já que ele não demorava a voltar, serelepe, noutra aventura. 
O final elíptico – vê-se apenas a sombra da incontornável guilhotina –, elide o desfecho de Verdoux, exacerbando o éthos redivivo do herói. Carlitos jamais morrerá.
*

Para os interessados, o livrinho que reúne as críticas de André Bazin sobre a obra de Chaplin é o seguinte: André Bazin. Charlie Chaplin. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2006.
Escrevi este texto baseada, também, na ótima edição sobre a vida e a obra do artista, escrita por Jérôme Larcher para o Cahiers du Cinéma: Masters of Cinema: Charlie Chaplin. Col. Cahiers du Cinéma. Phaidon Press, 2011.

sexta-feira, 8 de maio de 2015

A atualidade de "O Rei do Gado"

Ainda compilo notas que me ajudem a dar conta da tarefa a que me propus no artigo passado: tentar explicar o papel da telenovela “O Rei do Gado” (de Benedito Rui Barbosa, dirigida por Luiz Fernando Carvalho, 1996-97) em nossa memória coletiva. 
Não é das tarefas mais fáceis. Eu poderia dar ao tema um enquadramento puramente técnico: levantar os altos números do IBOPE desta enésima reprise, quando comparados aos produtos saídos fresquinhos da mesma casa. Ou poderia colocar este folhetim lado a lado com os contemporâneos, e estabelecer uma óbvia – e, portanto, pouco desafiadora –, comparação que elevaria um em detrimento dos outros. Ou então, mergulhar em minhas recordações pessoais – já que, no final das contas, eu sou um dos sujeitos que enformam a tal memória coletiva a quem esta novela deve o seu sucesso. 
E então, puxo os fios da memória. Lembro-me do sertanejo de raiz ouvido pelo meu avô; do italiano macarrônico da “Nona”, minha centenária bisa; das canções napolitanas que eu cresci escutando; do “r” comprido que alongava as palavras (e os palavrões) ditos pela minha avó paterna, herança dos encontros e desencontros dela com gente daqui e d’além-mar. E as macarronadas, as polentas com frango. Os cáspitas, empiastros, maledetos e quejandas italianices que o convívio familiar incorporou ao meu dicionário, para o desespero de algumas professoras do colégio. Rever “O Rei do Gado” liga-me à moleca que eu era aos 14 anos, da qual os (des)caminhos da vida aos poucos me fizeram esquecer; daí aos nós na garganta e as lágrimas nos olhos serem meus companheiros constantes, enquanto estou diante da TV, vendo-a. 
A nostalgia é um bicho traiçoeiro. “Isso daria uma moda de viola.” – me replicaria o poeta-violeiro Pirilampo. Mas, não, refiro-me ao perigo que representam esses itens a que a pátina da afetividade nos impede de ver de todo. E firmo os olhos n’“O Rei do Gado”, tentando dissociar a novela empírica das recordações minhas que ela evoca. 
E ela sobrevive com louvor à prova. 
Há, ali, humanidade de sobra. Humanidade na sua acepção primeira. Não a bondade fajuta desses heróis contemporâneos, mas sim a natureza humana em toda a sua densidade: nas qualidades e nos defeitos – porque, como bem perceberam os Românticos, mestres do gênero folhetinesco, a qualidade do homem se mede pela extensão de sua luta para debelar seus pecados. 
Pureza demasiada incita o sentimento pouco cativante da soberba – a afirmação da inexistência do pecado é, para o cristianismo, já um pecado em si. E maldade demasiada, daquelas que não dão a ver mesmo uma nesga de luz, é algo simplesmente inverossímil – ao menos, para alguém que já passou da infância, que é o espaço por excelência para a catarse dos sentimentos primitivos. As extremidades de pureza ou maldade não favorecem a identificação do público com o espectador. 
Aí, volto para “O Rei do Gado” e me deparo com a Luana; a mocinha que guarda em si um mundo: roceira desmemoriada criada tal e qual bicho do mato, cujo palmear vagabundo por esse mundo de meu Deus leva-a a um assentamento de sem-terras, ao coração de um senhor de muitas terras, à recuperação de seus liames com o passado, e, enfim, à descoberta de sua rica ascendência. Destino, amor, disputa e luta de classes se misturam, nesse caldeirão cultural responsável por gerar o que de mais popular a literatura ocidental produziu nos últimos 200 anos. 
“O Rei do Gado” remete aos grandes romances dos Oitocentos, adicionando às balizas formais do gênero clássico uma temática puramente nacional. Os sem-terras dos tempos de Victor Hugo eram os operários arranjados em comunas, aos quais igualmente se juntava a miséria e a dignidade. Luana descende das moças campesinas de Balzac, definidas pela exiguidade de suas posses e pela grandeza de seus sonhos. Bruno, o “rei do gado”, tem entre seus ascendentes um Jean Valjean, um Edmond Dantès, homens falíveis, no entanto, cheios de grandeza psicológica – que se permitem perdoar as faltas alheias, por poderem espelhar, nelas, as suas almas conflituosas. 
O público ama “O Rei do Gado” por reconhecer, mais intuitivamente ou menos, os lastros que esta novela estabelece com o seu arcabouço cultural: com a literatura que o formou, nos bancos da escola ou na vida; com as histórias contadas pela família, profundamente romanescas; com os filmes antigos – que beberam em grande medida desta mesma fonte. Falo obviamente das gerações passadas. Antes que os efeitos especiais passassem a dar as cartas na factura das tramas, antes que a violência obscena se tornasse um must nos enredos, respondendo à sede de sangue do público, só esperávamos o desenrolar vagaroso de fios sabiamente enovelados, a tessitura de tramas encorpadas – coloridas, brilhantes, quentes como os belos cachecóis que nossas avós nos costuravam. 
“O Rei do Gado” parte da tradicional premissa do amor entre dois jovens, membros de famílias que se odeiam. A Julieta e o Romeu de Rui Barbosa são Berdinazzi e Mezenga, multiplicados, ao longo da trama, em Giuliana, Luana, Rafaela, Enrico, Bruno, Marcos – gerações com as quais o autor percorre um lastro temporal de 50 anos. 
Lastro altamente significativo, que engloba dos últimos suspiros da monocultura do café aos latifúndios do gado de corte, da Segunda Guerra Mundial aos conflitos agrários, além do paulatino aculturamento dos italianos. As disputas entre as duas famílias por conta de uns poucos metros de chão multiplicam-se, em 50 anos, pela dimensão da fortuna – real e simbólica – que ambas amealham. Jeremias Berdinazzi, o único remanescente da tradicional família, é agora um grande produtor de leite; Bruno Mezenga, um grande criador de gado. À disputa pela posse das terras e pela permanência do nome soma-se, agora, o conflito geracional. 
O tema nasce shakespeareano para ganhar pouco a pouco contornos nacionais. A longínqua Guerra, que acaba por definir o destino da família Berdinazzi, encontra, na segunda parte da trama, uma rima visual com o Movimento dos Sem-Terras, graças ao qual os primos perdidos se reencontram e se apaixonam. Para além do colorido pitoresco que se dá ao MST, cumpre assinalar a delicadeza com que o grupo é apreendido, tomada implícita de posicionamento do autor frente ao então recente episódio de Eldorado dos Carajás, que terminara com o assassinato de dezenas de militantes pela polícia truculenta do baixo Pará. 
Bandeiras auriverdes tremulam no assentamento do incansável Regino, enquanto o senador Caxias peleja pela causa do grupo, diante de um plenário vazio. Zé Ramalho serve de trilha à luta inglória de ambos: “Vocês que fazem parte dessa massa./ Que passa nos projetos do futuro/ É duro tanto ter que caminhar/ E dar muito mais do que receber.” Só eu acho que essas imagens e dizeres adquirem, nesses nossos atuais dias em que atitudes reacionárias ameaçam manchar as conquistas arduamente alcançadas pelo nosso Estado de Direito, um inusitado poder disruptivo? Ainda mais quando exibidos com tanto sucesso, pela principal emissora do país? 
Para além do tema e da forma, “O Rei do Gado” ainda concentra um dos elencos mais inspirados de todos os tempos. Antonio Fagundes como o velho Antonio Mezenga e o neto Bruno Berdinazzi Mezenga, Tarcísio Meira como Giuseppe Berdinazzi, Raul Cortez como Geremias Berdinazzi, Letícia Spiller, uma menina, como Giovanna Berdinazzi, Stênio Garcia como Zé do Araguaia, Jackson Antunes e Ana Beatriz Nogueira como Regino e a esposa Jacira. Sem, de modo algum, ser exaustiva. 
Como esquecer os olhos de Eva Wilma (Marieta Berdinazzi) diante dos sofrimentos dos filhos? Ou de Raul Cortez, diante da tão repetida canção italiana, sobre os pracinhas mortos em combate? Ou da ombridade que Carlos Vereza imprime em seu senador Caxias? Ou do tour de force de Patrícia Pillar para criar a sua Luana – a maior distância entre pessoa e personagem que já se viu na TV brasileira: mulher a que os reveses da vida fez retraída, ressabiada, mas que ocasionalmente se expande em discursos que primam pela singeleza da linguagem e pelo lancinante do conteúdo (sua narrativa da colheita das "cerejas do café", por exemplo)?
Exibida por ocasião do aniversário de 50 anos da Rede Globo, "O Rei do Gado" sustenta-se como o que de melhor a emissora exibiu este ano. Que a novela esteja prestes a completar seu vigésimo aniversário é, no mínimo, irônico. Esperemos que o seu sucesso sirva de injeção de criatividade aos criadores da emissora.