sábado, 18 de junho de 2016

“O Botão de Nácar”: domínio, colonização, resistência

Diz-se que a verdadeira obra de arte é universal e mantém a sua atualidade, independente de haver sido escrita há um, dez ou 1000 anos. Tomemos “Antígona”. Sófocles escreveu-a 2500 anos atrás, mas ela poderia ter sido tracejada anteontem, a partir da observação da nossa sociedade por parte de algum analista arguto. 
Antígona, filha de Édipo, oscila entre o amor que nutre pelo irmão e o respeito que deve ao Estado: como irmã, tinha o dever de enterrar Polinice; missão que lhe fora obstada pelo rei, já que o jovem havia se unido ao exército contrário à Tebas, na guerra descabida que esta lhe travara. 
Dividida entre obrigações de pesos análogos, Antígona inclina-se àquilo que estava mais próximo de si: à casa paterna, aos laços fraternais. Sobretudo, à “mediania”, elemento tão caro aos gregos. Presta ao irmão as honras fúnebres, e é por isso, levada à morte por Creonte, monarca cujo poder demasiado acaba por conduzi-lo à tirania. 
“O Botão de Nácar” (El botón de nácar, 2015), o mais recente documentário de Patricio Guzmán, carrega com a obra de Sófocles uma proximidade espiritual. Quem sabe se porque é banhado pelo mesmo mar que circunda o país de onde saiu Édipo e a sua malfadada prole – mar onde o filme vê inscrita toda a história da humanidade, pregressa e futura. Quem sabe se porque esta que vos fala assistiu às duas obras em sequência, vendo-as, ambas, espelhadas no teatro da vida. Os gregos enxergam o mundo como um grande palco. Os homens são títeres dos deuses – hábeis ventríloquos que têm a humanidade presa por mal-escamoteados cordões, conduzindo-a a seu bel prazer. 
A fria letra da lei distancia-se não raro da consciência, do respeito à integridade humana. Por vezes, se é preciso tomar distância do Estado para exercer a humanidade. Antígona percebe isso de saída. Ela e Creonte são feitos de substâncias diferentes: “Você foi feito para o ódio. Eu fui feita para o amor”, ela lhe diz. Sabe que o descumprimento das ordens do tio lhe significará a perdição, mas toma este rumo porque é justamente o abandono dos liames terrenos que lhe dará sobrevida ao espírito. 
Conduzida de Tebas às reentrâncias do deserto, onde é enterrada viva, tendo o noivo ao pé de si, Antígona protagoniza um dos primeiros exemplos de integridade humana da tradição ocidental. Na concepção exacerbada por Patricio Guzmán no “Botão de nácar”, de um mar imemorial, microcosmo do espaço sideral, a guardar as vozes dos deuses e dos homens todos, a jovem é, quiçá, uma ascendente do povo chileno, martirizado por colonizadores e “salvadores” vários, ao longo de sua história. 
Guzmán oscila entre a realidade e a poesia para tecer a história do Chile, dos povos pré-colombianos até a ditadura de Augusto Pinochet. As relações que estabelece entre a inédita explosão de uma estrela, registrada pelos telescópios chilenos do deserto do Atacama – para onde não muito mais tarde seriam encaminhados os perseguidos da ditadura –, e a queda de Salvador Allende, refere-se menos ao tempo da história que ao tempo do mito. Allende é, porque não, Antígona, a pegar os colarinhos do inimigo não porque pensava poder vencê-lo, mas porque, ao fazê-lo, endossava uma humanidade latente, perpetuando-a. 
A história do Chile ganha, assim, contornos de tragédia clássica. Um mapa do país, esticado verticalmente, constrói o cenário da ação. Banhado de alto a baixo pelo Pacífico, estabeleceu com ele uma relação ambivalente. O Oceano abre demasiadamente o país aos povos invasores. Em contrapartida, seus inúmeros veios e reentrâncias serviram de rotas aos povos autóctones – povos aquáticos, cujos descendentes até hoje "caminham pela água”, malgrado o Estado ainda insista em lhes sustar os passos. 
A narrativa constrói-se aristotelicamente. Um botão de nácar serve de leitmotiv à ação. Produzido a partir de substância calcária extraída do mar, é ele que, no século XIX, convence o primeiro indígena a zarpar com os europeus para o além-mar, onde o jovem, qual herói medieval cantado pelos românticos, é transformado em nobre para depois ser novamente abandonado entre os seus. Guzmán lê o ato simbolicamente – a aculturação deste homem abriria o flanco do país aos inimigos, determinando a contaminação moral e física dos povos indígenas, e o seu extermínio em nome da “religião” e da “salvação” impingidas unilateralmente. E é outro botão de nácar, retirado do mar - único resto aparente de um simpatizante de Salvador Allende -, que dá o testemunho da sangrenta ditadura chilena. 
Ao longo do filme, o oceano dos chilenos terá os seus sentidos burilados. O constante resvalar de suas águas na costa imensa a impregna da história do país, dos povos milenares que pacificamente o habitaram até serem massacrados, aos mortos da ditadura, enterrados covardemente em seu seio. O oceano ainda encerra miasmas – as águas que banham o Chile imprimem em si as marcas do esquecimento forçado e da morte. 
A lembrança é uma forma de perenização, um funeral simbólico desses mortos todos, os quais os algozes desejaram legar ao esquecimento. Ao dar novamente voz aos grupos historicamente perseguidos, “O Botão de Nácar” exerce um belíssimo gesto de resistência, fundamental, agora, nesta nova guinada conservadora que se observa na América Latina.