terça-feira, 24 de janeiro de 2017

“Neruda” (2016): arte e revolução


 1946. Nos Estados Unidos, a recém-terminada Segunda Guerra abre espaço à caça aos comunistas. O Chile segue os passos da grande potência do Norte, sua “empregadora” – nas palavras argutas do policial lambe-botas Óscar Peluchonneau, criação do roteirista Guillermo Calderón. A sanha de destruição do “perigo vermelho” no Ocidente fomenta, no país, a perseguição do Partido Comunista, que tem como representante no Senado o diplomata e poeta Pablo Neruda. Este é o mote de Neruda, de Pablo Larraín. 
Calderón mete os fios da História na teia da fantasia, e cria um dos melhores roteiros das últimas décadas. A história real da perseguição política sofrida pelo popular poeta – exilado na Europa entre 1948 e 1952 –, ganha, na trama, contornos de filme policial. Embatem em linha de igualdade Luis Gnecco (Neruda) e Gael García Bernal (Peluchonneau). O personagem de Bernal é o filho de uma cortesã e de um pai desconhecido, registrado, graças aos meandros da burocracia estatal, como filho do grande policia chileno, de quem ele herda o nome e o cargo – metáfora perfeita do Terceiro Mundo que almeja a ascensão ao Primeiro, malgrado a prostituição que a manobra obriga. 
Óscar Peluchonneau vive uma vida de ficção que encontra contraparte perfeita na estrutura da trama. A escritura de Guillermo Calderón descende da de autores como Pirandello, Beckett e o nosso Machado de Assis, nos quais a estrutura que erige a ficção é desnudada para que se explicite, ao público, as convenções que tornam possível a arte – e consequentemente, o caráter forjado daquilo que denominamos “realidade”: já dizia Machado que o mundo é uma ópera com libreto de Deus e música de Satanás... 
Neva, drama de Caldéron encenado em São Paulo ano passado (pelo “Núcleo de Criação Isto Não É Um Grupo”) é uma boa prova disso. Numa gélida manhã russa de 1905, um ator e duas atrizes ensaiam O Jardim das Cerejeiras, peça do recém-falecido Tchekhov. O exercício de construção cênica superpõe-se ao esquema da pièce bien fait. Calderón comenta Tchekhov, cuja produção teatral rejeita os cânones estilísticos do século XIX. Porém, igualmente coloca em primeiro plano o debate sobre o lugar da arte na sociedade contemporânea. 
Em Neva, a história que se constrói no palco reverbera a história com “h” maiúsculo que se faz na rua, onde ocorre o “Domingo Sangrento” – massacre, pelas tropas do Czar, de manifestantes contrários ao regime, elemento deflagrador da Revolução Russa. Vários membros da companhia não comparecem ao ensaio. Estarão mortos? A cena, espaço onde a morte é sempre remediada, se abre à reflexão sobre a finitude da vida, e sobre o papel do teatro na ordem social. O palco, enquanto microcosmo do mundo, se torna campo de luta. 
A arte de Guillermo Calderón é política, e isto fica claro em Neruda. A metalinguagem – do francês, mise-en-abyme, resultado da imagem obtida quando se coloca um espelho diante do outro –, funciona ali em potência. O espectador periga ser engolido pelo abismo que o autor lhe cava, como naquele belíssimo quadro de Escher, das mãos que se desenham a si próprias, dentro do espaço do quadro, mas para além do espaço da folha de papel figurada; arte que deseja transcender os seus limites. 
Peluchonneau é o narrador da trama de Neruda: homem fino, sofisticado, inteligente, orgulhosamente de direita, a observar o outro de cima. É pelos seus olhos que o espectador começa a ver Neruda e o seu círculo social: há uns planos de teatro do absurdo, como o inicial, da alta política, engalanada, a beber uísque e discursar, no mictório de um evento grã-fino, enquanto fazia as suas necessidades fisiológicas; ou da festa aburguesada em que figura a nata do partido comunista, pródiga na exibição de peles e corpos, onde a voz do mais amorável dos poetas é recebida com gozo. 
No entanto, outra instância narrativa se sobrepõe a esta na qual o artista é descrito com sordidez pelo milico. Quem maneja o vil Peluchonneau é o poético Caldéron, que vai, pouco a pouco, enredando o seu pragmático personagem na aura de romantismo que emerge do protagonista. O Neruda de Luis Gnecco desliza pela íngreme topografia chilena  das “ondas que nunca rebentam” da Cordilheira (como reza o belíssimo roteiro), às planitudes costeiras e desérticas (o futuro ditador Pinochet torna-se, no filme, o carcereiro da aterradora prisão do Atacama) – sob os eflúvios da música que Edvard Grieg teceu para outro herói romântico gauche, o ávido Peer Gynt. Neruda torna-se um romance policialesco às avessas, no qual se dilata a caçada pelo bem do jogo, em que o caçador torna-se a caça e a caça, o caçador. 
Neruda escorrega pelos dedos intencionalmente entreabertos de Peluchonneau quando este, enfim, descobre-se personagem de ficção, criado pelo cérebro do outro – que além de exímio poeta era leitor apaixonado de romances policiais. E descobre-se personagem secundário, justo ele que era tão orgulhoso de seu protagonismo enquanto agente da lei. 
Peluchonneau viverá o restante do drama para negar o seu destino de marionete. Se a luta é inglória, ela é, paradoxalmente, a única possibilidade desta vida de papel se realizar. Sua defesa da arte, a partir daí, é a defesa de si mesmo. Daí o melancólico e maravilhoso final, em que a sua morte em vermelho e branco, na imensidão dos Andes nevados, se sucede ao seu sorridente renascimento, no hotel de fama equívoca da Cidade-Luz. A condição redivida da personagem ficcional dá-nos alento a nós, heróis mancos desta mal ajambrada ficção que é a vida.

segunda-feira, 16 de janeiro de 2017

Diário do Oscar 1: “A Chegada”: as línguas que habitamos

A Chegada (Arrival, 2016) fez entre nós uma carreira cinematográfica um tanto quanto tímida. Parece estranho, considerando não apenas a sua qualidade, mas o seu caráter espetacular, que o filme não tenha sido distribuído com mais largueza pelas grandes redes de cinema. Isso se deve, talvez, ao seu sopro poético. O longa de Denis Villeneuve nega-se o quanto pode à linearidade e ao estabelecimento de nexos causais firmes – transformando a negativa à objetividade, inclusive, na questão-chave da trama. 
A obra flerta com as narrativas apocalípticas caras a Hollywood. A Terra é visitada por naves extraterrestres cujos objetivos são vagos. Desejam dominar o mundo e destruir os humanos, à maneira da Guerra dos Mundos (2005)? O caráter não violento da aproximação primeira leva o governo norte-americano a escalar a linguista Louise Banks (Amy Adams), que, associada ao matemático Ian Donnelly (Jeremy Keener), estabelecerá parâmetros comunicacionais visando à compreensão daquela visita. Dali por diante, ambos procurarão ensinar a sintaxe da língua inglesa a gigantes criaturas de oito pés, aprendendo, em contrapartida, a língua dos visitantes. 
Vê-se que a premissa básica do filme cobra do público a suspensão da descrença. Aqueles que toparem o jogo verão que a trama supostamente absurda esconde uma joia. A Chegada é metáfora da necessidade de comunicação para a resolução de conflitos – lugar comum que adquire éthos revolucionário hoje em dia, nessa nossa sociedade pautada pelo ódio ao diferente, pela dicotomização que transforma o outro em oponente aniquilável. 
Louise à certa altura verbaliza o mal da dicotomia, ao criticar a forma como os japoneses estavam estabelecendo contato com a nave que aportara no país: por meio de um jogo de tabuleiro, cuja finalidade era a vitória de um contenedor e a derrota de outro. Sublinha o mal de inventar-se uma língua pautada pela bipartição, sem espaço de intermeio no qual se exerça a convergência, a ponderação, possibilitando-se a vitória da razão sobre a força. Daí o diálogo, na trama, da ciência matemática – exata, binária – e da língua, código feito de sintaxe e semântica, mescla de estrutura rígida e sentidos definidos socialmente. 
Habitamos a língua que falamos. Vivemos o mundo enquanto sensação apenas na tenra infância. Reconfiguramo-lo ao aprendermos a nossa língua materna, que nos fornecerá, a partir dali, as lentes para que o enxerguemos. O nosso conhecimento de outras línguas faz com que observemos a nós mesmos em perspectiva, relativizando os nossos pressupostos tão sólidos, aparentemente absolutos. 
Tal reflexão se tece, no filme, por meio de uma das fotografias mais bem realizadas do cinema contemporâneo. Ela, e um competente uso da objetiva indireta, que esfarela a linearidade, dão potência à narrativa, não apenas mimetizando o maravilhamento da linguista - personagem construída com grande sensibilidade por Amy Adams, uma das melhores atrizes de sua geração - frente à sua imersão na cultura dos misteriosos visitantes, mas convidando o público a acompanhá-la na viagem. 
O filme abraça a ficção científica para criar o arquétipo de um mundo no qual a comunicação vence a barbárie. Irônico, considerando-se a situação política americana atual, que o diálogo parta de lá. É um bonito sonho, no entanto.