quarta-feira, 11 de junho de 2025

A idílica primavera de Robert Z. Leonard: “Maytime” (“Primavera”, 1937)


Este artigo desdobra o anterior, “Quando o musical de Hollywood encontra a ópera: os filmes de Jeanette MacDonald & Nelson Eddy (1935-1942)”, em que eu procurei fazer um balanço dois oito filmes rodados pelo casal de cantores-atores. Meu intuito primeiro era abrir, ali, um subtópico para a reflexão sobre “Maytime” (“Primavera”, 1937), mas a distância entre o sobrevoo e o mergulho vertical me pareceu pouco orgânica, motivo pelo qual retorno aqui à dupla. 
E volto com um instrumental novo (e de fôlego), já que, desde o último post, a sempre generosa Luciana Araújo enviou-me os textos que o crítico José Lino Grünewald escreveu sobre “Maytime” entre 1963 – momento em que a obra foi reprisada nos cinemas, junto com outras do mesmo gênero – e 1964, recolhidos parcialmente por Ruy Castro no livro Um filme é um filme (2001). 
 Este trabalho obriga-me a um olhar perspectivo que soma, numa mesma medida, lucidez e nostalgia. Por um lado, estou distante 60 anos de Grünewald; período permeado pelo desenvolvimento do Home Video e do digital, que me permitiu adquirir essa obra (e as demais do casal) em meados dos anos 2000 (o copywright da distribuidora Classic Line data de 2006). Mas estou igualmente distante da cinéfila de 20 e poucos anos que o visionou pela primeira vez. Então, o retorno a ele é, também, o retorno àquela jovem e ao encantamento que a obra lhe gerou pela primeira vez. 
“Maytime” é o terceiro filme do casal, e seria um dos quatro que o diretor norte-americano (que nesta película também atua como produtor) Robert Z. Leonard rodaria dele – embora o IMDB também liste Edmund Goulding como seu coautor, apenas o nome de Leonard surge nos créditos iniciais, formado por pétalas de flores rapidamente espalhadas pela correnteza do riacho, ao som do leitmotif “Will You Remember”. 
É um filme miraculoso, que faz uso de toda a parafernália da indústria do cinema para dar o salto inventivo. Como todos os musicais americanos, nele multiplicam-se os cenários faustosos – vertente cinematográfica dos cenários dos espetáculos teatrais cômico-musicados amados pelos públicos daqui e d’além-mar na dobra do século XIX para o XX. E multiplicam-se os inúmeros figurantes, os figurinos sofisticados que visam à recuperação da época do império de Louis Napoléon, ou Napoleão III, que governou a França primeiramente por voto direto e, em seguida, por meio de um golpe de estado, permanecendo no poder de 1851 a 1870. Por fim, os investimentos daquela que era uma das mais poderosas indústrias norte-americanas torna possível o emprego de recursos cinematográficos complexos, que ainda hoje nos deixam sem fôlego, provas patentes da técnica desdobrando-se em arte. 
“Maytime” vale mais pela sua cinematografia que pelo seu enredo. Como Hitchcock, que transformava novelas e contos de suspense medianos em obras-primas, Leonard – vou respeitar os créditos do filme e mencionar apenas ele como o seu diretor – toma um comezinho entrecho melodramático e o transcende. 
O filme conta a história de Marcia Mornay, jovem prima-dona norte-americana aluna do renomado professor Nicolai Nazaroff (John Barrymore) e, no decurso da história, apaixonada pelo estudante de canto lírico Paul Allison, de quem ela abre mão para se casar com o mestre, com o qual já havia se comprometido. Todavia, não consegue esquecê-lo. Anos mais tarde, ambos se reencontram nos Estados Unidos, num mesmo palco, como co-protagonistas; e o amor silenciado emerge aos olhos de todo o público da estreia da ópera que cantariam e de Nicolai, que acaba por matar o jovem. O final da história retoma o seu começo: Marcia, agora a idosa Miss Morrison, reconta o passado a uma aspirante a cantora lírica a qual, como ela, tem a perspectiva de viajar à cidade grande com um professor que nutre por ela um interesse num só tempo artístico e amoroso. 
O entrecho acena à tradição melodramática, ao postular, como porto seguros, os âmbitos do lar e da família – a jovenzinha aconselhada por Marcia tinha um namorado. Todavia, o tradicionalismo do conteúdo caminha na contracorrente da modernidade da forma – a qual consegue mesmo colocá-lo em suspenso, tirar-lhe o ranço, dar-lhe suculência e sabor. “Maytime” é uma dessas obras-primas que a indústria do cinema vez por outra produzia. Num de seus excelentes textos publicado originalmente no Correio da Manhã (RJ), em 7 jan. 1964 (p. 1), denominado “Cinema ou máquina do tempo”, Grünewald chama a atenção para a estrutura dramático-sonora operística desta obra que é oriunda de um musical – com texto de Rida Johnson Young e música de Sigmund Romberg, que alcançou surpreendentes 492 performances, segundo a base de dados da Broadway, em cinco diferentes teatros, entre 1917 e 1918. 
A questão é desdobrada no n. do Jornal de Letras de set. 1964, coligido em Um filme é um filme. Diz o autor que “Maytime” é ópera em três atos e dois quadros, organizados, grosso modo, segundo a seguinte lógica: 1º- a festa da primavera frequentada pela idosa Marcia Mornay (agora Miss Morrison) e seu retorno à juventude, quando ela conquista reconhecimento de público e crítica; 2º- o encontro de Marcia com Paul Allison, um pobre e talentoso cantor lírico conterrâneo seu, a revelação do impossível amor recíproco, durante a festa da primavera; 3º- a passagem de sete anos, a consolidação de Marcia como cantora, o seu reencontro com Paul, num palco operístico onde ambos contracenariam, a renovação, em cena, de seus votos de amor, o assassinato dele pelo marido possessivo de Marcia e, enfim, o retorno ao início da narrativa e o reencontro simbólico dos eternos apaixonados. 
A reflexão de Grünewald sobre isso é elíptica e dialoga com problemas de seu tempo – neste caso, a questão do cinema de autor (essa sequência de textos dele sobre os musicais americanos é contemporânea às antológicas entrevistas que Truffaut fez com Hitchcock). Assim, ele procura destacar a proximidade do filme com a ópera e a sua distância da literatura, o que o tornaria um espetáculo puro. Consequentemente, ele pensa naquilo que transforma o filme em cinema, sobretudo no que concerne ao âmbito da visualidade, o que o faz explorar pouco o ponto de vista musical. Além disso, não podemos passar ao largo do preconceito do crítico com relação ao gênero melodramático – que, mais que literatura, é também um teatro (profundamente musical) –, outro fruto de seu tempo. O exercício de se olhar perspectivamente esses textos densos e realmente apaixonados pelo seu objeto, segundo a nossa óptica contemporânea, é interessante, pois podemos fazer emergir as nossas questões. 
A visada de Grünewald é arguta. Do ponto de vista textual, a narrativa de “Maytime” corresponde à ópera (e também ao teatro melodramático), pois mergulha densamente em recortes temporais específicos, que antecederam a turning points na vida dos personagens, deixando de lado uma narrativa estruturada segundo nexos de causalidade mais claros. Todavia, quando consideramos a conexão afetiva estabelecida pela música, enquanto nos melodramas teatrais a sua presença é pontual (por exemplo, os atos usualmente fechavam-se com tableaux expressivos atravessados por ela), na ópera, que tem a música como sua espinha dorsal, tal conexão potencializa-se. Certamente, a potência do âmbito musical, na ópera, torna tragáveis mesmo enredos insossos e encenações pavorosas. Quando bem apropriada pelo cinema, e serve estruturalmente na concepção das imagens fílmicas – para além da trilha sonora –, a música multiplica a conexão afetiva do público com a obra. 
Grünewald faz longas considerações sobre o âmbito visual, descrevendo em detalhes a festa da primavera que é cerne do filme: as imagens abstratas formadas pelos arcos de flores dos casais dançando, os travellings, as fusões – exacerbação cinematográfica da ciranda emocional dos protagonistas. Efetivamente, a câmera de “Maytime” adquire asas, abre mão do realismo em prol da subjetividade e procura embebedar os nossos sentidos com o embebedamento dos sentidos do par romântico. 
O filme é tão moderno hoje, 88 anos depois de ser rodado, quanto o era com 26 anos de idade, momento em que Grünewald o vê em reprise. Mesmo hoje, com a facilidade dos drones, planos-sequência por ele criados raramente adquirem a profundidade, a visceralidade dos existentes no filme. 
Se na sequência da festa da primavera os usos da câmera atingem o paroxismo – há mesmo uma tomada em plano americano do rosto de Jeanette Macdonald que acompanha o seu deleite no balanço em que ela é empurrada por Nelson Eddy –, a excepcionalidade de seu uso é apanhada desde o início da obra: no plano-sequência que abre a primeira cena relativa à juventude de Marcia, que toma desde o palco do palácio de Napoleão III, desliza longamente pelos casais a dançarem e, após uma curva brusca à esquerda, toma a chegada dos convidados (por onde entrará Marcia, no debut de sua vida social junto à corte francesa) – esses perscrutamentos do geral ao particular abundam no filme, esforço, quiçá, de aproximar o tempo da obra do tempo da experiência (e que traquitana tornava possíveis tais prodígios, deus do céu?). 

Planos-sequência de um lado, e, de outro, potentes sínteses temporais, como aquela que costura os sete anos (número simbólico, associado a períodos de crise, transformação e aprendizado) da vida de Marcia ao lado de Nazaroff, sua ascensão como cantora, costurada musicalmente – pelo seu abraçamento de personagens cada vez mais densos, de Mozart a Wagner – e visualmente – pela presença contumaz da imagem de Paul junto de si, a partir de fusões e duplas exposições que unem as imagens de vias férreas e marítimas e o rosto em close do amado, símbolo da perenidade em meio à agitação vazia da vida dela. 
O filme é pródigo em metáforas visuais, as quais, embaladas pela música, potencializam respostas profundamente afetivas, como aquela do arranjo de flores de laranjeira ao som do leitmotif “Do you remember” – que, na festa da primavera, brotam num close antirrealista, primeiro enlaçadas e depois desenlaçadas, explicitando, num só tempo, o nascimento do amor e a impossibilidade do consórcio do par romântico. 
“Maytime” é repleto de enquadramentos inspirados, novidade para a época, conforme aponta Grünewald, que destaca, por exemplo, a multiplicação dos pontos de vista na cena em que o casal canta os estertores da (fictícia) ópera Czaritza; para além do campo e contra campo entre a plateia e os cantores, há tomadas a partir da coxia, do fundo do palco e das costas dos protagonistas, que registram, além do espetáculo operístico (e do turbilhão emocional vivido pelo casal, mimese daquele experimentado pelas personagens da ópera que representam), as reações de personagens fundamentais à narrativa: o produtor, a dama de companhia de Marcia e o marido dela. 
A novidade/modernidade/perenidade de tais enquadramentos é que eles colocam em questionamento a simetria clássica empregada no cinema, a exemplo da fotografia. Daí o uso de enquadramentos sujos planejados, que fazem emergir a desordem emocional, como o das costas dos protagonistas, na sequência da ópera, ou do duto de gás da sequência em que Marcia despede-se de Paul, depois do almoço na casa dele, em que ambos descobrem suas afinidades, a despeito da impossibilidade de ficarem juntos. 
“Maytime” compendia a gramática cinematográfica consolidada, ao mesmo tempo em que lhe abre novas possibilidades. Exemplo disso é o modo de filmagem dos espetáculos operísticos, que abandona os planos gerais e mergulha neles, dando de ombros à materialidade física do espaço onde eles ocorrem – como fazemos contemporaneamente nos registros desses espetáculos, o que transforma a ópera em cinema. Neste filme em específico, em que musical hollywoodiano e ópera se encontram por excelência, tais enquadramentos servem para traçar uma linha tênue entre a arte e a vida, entrelaçando Marcia e Paul aos personagens operísticos que representam. 
Tal entrelaçamento ocorre com inteligência no plano musical, no uso tanto da música oriunda da obra teatral de Romberg e Johnson Young quanto de óperas ou canções do repertório clássico – as quais inexistem no musical, ao menos a contar pela lista de canções dele compiladas na base de dados da Broadway. Das canções do musical, além de “Will You Remember?”, apenas “Road To Paradise” foi apresentada no filme, para o qual foram também compostas “Vive l'Opera” e “Ham and Eggs” (por Herbert Stothart, com letras de Bob Wright e Chet Forrest). Há no filme, ademais, a introdução de um conjunto bem escolhido de canções tradicionais americanas ou italianas, já impregnadas no imaginário do público, como “Now Is the Month of Maying” (de Thomas Morley, 1595!), “Plantons da Vigne” e “Santa Lucia” (sem crédito) e “Carry Me Back to Old Virginny (de James Alan Bland). 
Enfim, “Maytime” é todo costurado por trechos operísticos e de canções eruditas, os quais, ao mesmo tempo em que demonstram quão distante o roteiro, composto por Noel Langley, estava da peça teatral homônima, denotam que, neste encontro entre o musical e a ópera, os dois gêneros estão alinhados em páreo de igualdade: da canção de coloraturas complicadas “Les filles de Cadix” (de Léo Delibes), à patriótica “Le Régiment de Sambre et Meuse” (de Robert Planquette, sobre poema de Paul Gezano), escrita após a derrota francesa na guerra franco-prussiana – ambas cantadas pela fascinada prima-dona em ascensão na corte de Napoleão III –, à longa cena de apresentação e cavatina do pajem dos “Huguenotes” (de Giacomo Meyerbeer, letra de Eugène Scribe), que Marcia Mornay apresenta no palco da Ópera de Paris, sob o olhar encantado de Paul Allison, aos trechos crescentemente românticos e torturados de Donizetti (“Lucia di Lammermoor”), Gounod (“Faust”) e Richard Wagner (“Tannhäuser” e “Tristan und Isolde), que vemo-la cantar em pout-pourri, à medida em que correm, diante de nossos olhos, sete anos de sua ascensão profissional e distanciamento do homem que amava. 
A presença contundente do gênero operístico no filme coroa-se com o dueto final da ópera “Czaritza”, com texto em francês e música adaptada da Sinfonia n. 5 de Tchaikovsky, criada especialmente para o casal protagonista (o IMDB não informa quem compôs a sua letra, mas, a contar pelos créditos do filme, ela provavelmente ficou a cargo de Wright e Forrest, com adaptação ao francês de Gilles Guilbert, tendo cabido ao diretor e adaptador musical Herbert Stothard a acomodação da música de Tchaikovsky à cena operística). 
Se os trechos musicais populares e eruditos servem ao papel de grande espetáculo do musical hollywoodiano, também contribuem à tessitura dos caracteres e à contação de história, como acontece nas grandes obras do gênero. 

Marcia e Paul amalgamados às flores da primavera
na sequência final do filme
 
Destaque-se fundamentalmente “Will You Remember?”, que atravessa “Maytime”. A sua melodia principia por acompanhar a composição e o esfarelamento dos créditos do filme. A canção retorna num dos turning points dele, cantada, na festa da primavera, como declaração de amor de Paul a Marcia, sob as flores de um Parc de Saint-Cloud reconstruído nos estúdios da Metro. E, enfim, seus acordes são onipresentes nos estertores da obra: embalam, a princípio, a velha Miss Morrison, enquanto ela fita o desabrochar da vida nos albores da primavera; e, enfim, são cantados em dueto no clímax da história, em que uma Marcia eternamente jovem deixa o corpo de uma Miss Morrison morta ou adormecida, e percorre, com Paul, as aleias floridas da cidadezinha suburbana onde ela resolveu viver os últimos dias de sua vida. 
A cinematografia e a trilha sonora somam-se à escalação acertada do elenco e à qualidade das interpretações, dos coadjuvantes aos principais. O sanguíneo Herman Bing é um divertido e cálido August Archipenko, professor e, depois, empresário de Paul Allisson. Os physiques de Tom Brown e Lynne Carver cabem bem aos jovens pueris que representam, tecendo uma possível imagem de como seriam Marcia e Paul antes de ela ter se envolvido com Nazaroff e selado o seu destino. Rafaela Ottiano dosa sisudez e calor na construção da personagem de Ellen, a dama de companhia que compartilha uma vida com Marcia. Por fim, dentre os coadjuvantes, o lendário John Barrymore, que ascendeu em grande estilo ao cinema depois de se consolidar nos palcos como intérprete de papéis shakespearianos, é um perfeito Nicolai Nazaroff, de gestos contidos e olhares impermeáveis. 
Jeanette MacDonald/Marcia Mornay
no crepúsculo da vida
Além de química, Jeanette MacDonald e Nelson Eddy provam-se, em “Maytime”, intérpretes sólidos. A crítica contemporânea não erra ao dizer que ele reage à presença dela, mais que efetivamente atua – é um passional e enlevado Paul Alisson, o perfeito galã romanesco. Jeanette MacDonald é o cerne do filme, já que é a sua história, e o que a atravessa, que centraliza a narrativa. Quanto a analisamos a contrapelo de outras performances femininas da época, percebemos que seu trabalho é verdadeiramente excepcional, e surpreende o fato de ela não ter sido indicada a nenhum prêmio importante por ele. Jeanette consegue, de forma emocionante e inesquecível, com seu corpo e voz (e a variação filigranada de seu timbre), construir a curva dramática que a história demanda à sua personagem: da garota que descobre o mundo, cheia de luz e sonhos; à mulher macerada pela tristeza, malgrado a sua ascensão profissional; e, enfim, à senhora de voz ligeiramente rouca e olhos melancólicos que prontamente se iluminam quando ela se lembra daquela primavera que havia durado uma vida inteira, como rezam os versos da maravilhosa canção “Do you remember”: “Though our paths may sever/ Through life’s last faint embers, will you remember, springtime, lovetime, May”.
“Maytime” é uma dessas maravilhas que nos lembram para que serve o cinema. Ele é “máquina do tempo”, como lindamente coloca Grünewald, por permitir que a conjuntura existencial de dado momento seja novamente sentida, devido à “permanência de um temperamento” que as imagens filtram e cristalizam. E, pelo poder de perscrutação, síntese e de distensão do tempo que tem o cinema, ele é máquina de sonhos, mergulhando-nos nos corações e nas mentes de seres feitos de sombras – tão contemporâneos, nossos e nós, malgrado quase um século nos separe deles.