domingo, 31 de julho de 2016

Mãe só há uma (2016)

Há filmes que vão nos ganhando aos poucos. “Mãe só há uma” (Anna Muylaert, 2016) é um exemplo. A história tem traços do caso policial que veio à baila anos atrás, da mulher que sequestrou um bebê e criou-o como filho até ser descoberta pelas autoridades, década e meia mais tarde. Do caso a que a imprensa deu foros de novelão das oito, lembro-me de um detalhe: do menino de semblante plácido que pedira, por favor, para voltar a viver com a sua sequestradora, a única mãe que ele jamais conhecera. 
O sequestro serve a Anna Muylaert como pano de fundo, ao qual sobrepõem-se as subjetividades das personagens e as relações interpessoais – apreendidas por meio de uma câmera que multiplica os pontos de vista. O motor da trama é a personagem de Pierre (Naomi Nero), colhido pela tragédia naquele momento sensível da vida, que é o de formação da personalidade. 
Vemo-lo nas festas, a experimentar relações amorosas com ambos os sexos. Na escola. No ensaio da banda de rock. Diante do espelho do banheiro, testando, a portas fechadas, a sua sexualidade. Ou seguido furtivamente por um veículo enquanto ele desembesta, de bicicleta, pelas ruas do bairro. O contorno surpreendentemente detetivesco que a história recebe logo se justifica: obrigado judicialmente ao teste de DNA, Pierre descobrirá o crime que concerne à mãe. 
Se a câmera de Muylaert estranhará ao espectador de “Que horas ela volta?” (2015), sugiro que ele firme as vistas. As tomadas da casa a partir do exterior, tendo a voz off das personagens em surdina, ou a urgência da câmera na mão, a perseguir a mãe que se vê descoberta e precisa dar as últimas recomendações à cuidadora das crianças, antes de ser levada presa, servem para a pontuação de uma tensão que chega aí ao seu limite. 
A câmera é, aí, um sucedâneo do olhar de Pierre à vida. Cria-se, então, uma conivência incontornável entre o menino e o público. Os mimos que os pais verdadeiros, ricos, lhe dão, não compensam a unidade familiar destroçada – apreendida com poesia pela diretora, nas tomadas da casa agora vazia da família que ele aprendera a reconhecer como sua. Algumas sequências explicitam eximiamente a ambivalência, a exemplo daquela em que Pierre – agora Felipe, malgrado o seu desejo – recebe, numa rigidez respeitosa, os afagos da numerosa e efusiva família que o festeja. 
No entanto, o olhar de Muylaert é polissêmico como a vida. Ao ponto de vista do menino se somará mais tarde aquele da família biológica, sobretudo a dos pais e do irmão. Colocam-se em primeiro plano os anseios destes, especialmente dos pais (ótimos Matheus Nachtergaele e Dani Nefussy). Do mais superficial – de inserir o menino a fórceps na casta privilegiada à qual pertencem, obrigando-o a assumir o papel de macho-alfa –, até o anseio profundo de se verem finalmente aceitos. 
Não se economiza nas tintas do drama emocional, que chega ao paroxismo na sequência catártica do jogo do boliche, mas se deslinda com mais suavidade no nascente companheirismo entre os irmãos – construído à custa do esforço do mais novo de pôr de lado preconceitos inerentes ao seu grupo de amigos; metáfora da construção paulatina da personalidade. 
A câmera coloca-se a serviço das subjetividades várias, por vezes se demorando nos planos. Por meio deste expediente, ações aparentemente prosaicas vão se somando num crescendo até culminarem num emocionante desfecho agridoce. 
“Mãe só há uma” é um filme imperdível. Longe de ser popular como “Que horas ela volta?” consegue, pelas escolhas estilísticas da diretora, atingir uma carga de humanidade ainda superior – talvez porque se encerra abrindo-se às tensões da vida, para as quais não há respostas prontas ou conclusões fechadas.

quarta-feira, 13 de julho de 2016

“Julieta” (2016): tratado sobre incomunicabilidade nas relações contemporâneas?

Almodóvar fez um filme que me aprouve pouco, e sobre o qual possivelmente eu não falaria, não fosse a minha companheira de cinema – Imara Reis – ter me provocado, por horas a fio, a desvelá-lo. Dedico a ela esta resenha, já que muitas das conclusões aqui explicitadas são obras suas. 
Julieta é uma estranha no ninho almodovariano. Almodóvar opta, aqui, por reler o gênero melodramático pela chave da metalinguagem. Produz uma obra cuja frieza passa a léguas de distância de Fale com ela (2002) ou Volver (2011), repletas de uma calidez que, se se deve nalguma medida à cor local – às touradas, aos sóis de Sevilha, aos ventos propícios de La Mancha; a convidarem ao mistério, mas também ao cio, à procriação –, deve-se, sobretudo, a algo que vou chamar, na falta de palavra melhor, de um “calor espiritual”. 
Fale com ela (2002)
Almodóvar depõe a pena de analista passional das relações humanas, tomando uma desusada distância de seus sujeitos. 
Há em Julieta cortes secos pouco afeitos ao realismo pedido pelo melodrama; primeiríssimos planos a inquirirem apressados as personagens, cujas feições demonstram uma mal à l’aise que, no final das contas, é a característica dominante da obra toda. Não é o caso aqui de se perguntar se este pouco à vontade é o efeito intentado pelo filme ou se é fruto da inabilidade do diretor no tratamento do tema. Levemos Almodóvar a sério. 
Dir-se-á que Almodóvar toma como objeto de questionamento, em Julieta, o justo melodrama do qual ele se serviu largamente para erigir o seu cinema. Sua protagonista caminha todo o tempo por um terreno movediço incompatível ao gênero de cores fortes, bem delimitadas. 
Principiamos a conhecer Julieta no apartamento da faceta modernosa de Madri, preparando-se para a viagem que a afastaria incontornavelmente da Espanha. A ponta de indecisão que mal se insinua no encontro com seu companheiro emergirá, todavia, de forma aguda, quando ela revê a melhor amiga da filha, e descobre que as jovens recentemente se tinham encontrado. 
A obra está repleta dessas coincidências, que são característica fundamental do Melodrama. No entanto, Almodóvar apaga qualquer dimensão metafísica de “Destino” historicamente atrelada a este gênero. Fundamentais para a carpintaria da trama, por deflagrarem a ação, os encontros ganham, todavia, uma dimensão de fortuidade que pode ser lida, numa análise interessada desta obra, como metáforas da gratuidade da vivência no mundo contemporâneo, mais especificamente, do esfacelamento das relações humanas, enfim, da incomunicabilidade – traço dominante nas atuais relações interpessoais. 
Volver (2011)
Julieta teve uma filha – descobrirá o espectador enquanto ela redige à agora mulher feita em que a menina se transformara, uma carta cuja dimensão de testemunho vai se revelando aos poucos. Reconta sua história desde os instantes que antecedem à concepção da filha – até então não mencionada –, como se sua vida só então principiasse a ter sentido. A mãe não tinha notícias da filha havia uma década. A carta que jamais poderia ser enviada testemunha o trauma da ruptura inesperada de ambas. 
O filme constrói-se desses fragmentos de memórias marcados pela ausência de fidelidade a uma dimensão “realista”, pela mistura de afetos. Estranhezas do enredo – a demasiada juventude impregnada no rosto da menina que lidara com tanta maturidade com a perda do pai; ou, em contrapartida, seu rápido envelhecimento, não muitos anos mais tarde – podem se justificar pela subjetividade daquela a partir da qual as memórias visuais se constroem: a perturbada Julieta, tão distante da filha em corpo quanto desde sempre estivera em espírito. 
A verossimilhança tantas vezes (aparentemente) fraturada – o olhar de alternado desdém e amor da velha empregada, por exemplo – explica-se pelo caráter errático das memórias. Campanella fez isso com graça em O Segredo dos seus Olhos (2009), ao entremear a dolorosa despedida dos apaixonados na estação de trem de Buenos Aires, intencionalmente melodramática, e a escritura do arremedo de trama novelesca, por parte de um protagonista ao mesmo tempo passional e autocrítico. 
Mas estruturalmente ambos os filmes diferem-se bastante. Almodóvar não objetiva coser todos os fios; não visa à trama policialesca, cuja intriga culmina na resolução do conflito. Em Julieta, o melodrama comparece numa dimensão crítica mesmo no desenlace, que posterga o encontro entre mãe e filha – tableau que historicamente fecha o gênero – para depois do fade out; para além das vistas do espectador, portanto. 
O amante minguante, filme-dentro-do-filme em Fale com ela
Tal parcimônia coloca toda a obra do diretor em perspectiva. A cinefilia de Almodóvar, que nunca se negou a percorrer as zonas de penumbra – prova disso é a perturbadora sequência silenciosa de Fale com ela em que o apaixonado, minúsculo, penetra a mulher gigante (metáfora do close e da imersão do espectador no espetáculo cinematográfico?) –, inclina-se aqui a Jean-Luc Godard e a Ingmar Bergman, cineastas que questionam o enquadramento mainstream, e colocam os filmes a serviço da discussão de relações interpessoais que muito os extravazam, por irresolúveis. 
Se Almodóvar não chega aqui às alturas de Bergman, aponta, no entanto, para uma direção original, ao diluir em melancolia o colorido espanhol – característica forte de sua obra. A nossa sensação de desconforto toca um tanto nas imperfeições do exercício, mas muito, também, na percepção de que a incomunicabilidade que ele faz emergir em sua obra também nos circunda e nos afoga.