quarta-feira, 18 de outubro de 2023

Giornate del Cinema Muto de Pordenone 2023 – Dia 8


Dia 8, sábado, 14 de outubro 

Outro programa duplo neste último dia da Giornate virtual, que coincide com o encerramento do evento físico: o longa alemão “Die Straẞe” (The Street, Karl Grune, 1923), e o longa norte-americano “Conrad in Quest of his Youth” (William C. de Mille, 1920), com acompanhamentos musicais, respectivamente, de Günter Buchwald e Neil Brand. 

Embora “Die Straẞe” gire em torno de uma porção de personagens, sua protagonista absoluta é, como aponta o título, a rua. A cidade é, no filme, o espaço do perigo, destaca Jay Weissberg na apresentação da obra, tanto que o filme constrói a cidade em estúdio numa perspectiva menor, de modo que os personagens se percam nela. 
Digno de nota também neste filme é o fato de ele flertar com as reflexões sobre o cinema como obra de arte per se, que prescinde os intertítulos – portanto, a literatura –, visando a contar as histórias unicamente a partir das imagens. Algumas obras desta seara resistiram ao tempo, a exemplo de “The last laugh” (F. W. Murnau, 1924), cuja drama gira em torno do drama psicológico do atendente de hotel que perde o emprego – e, consequentemente, o lugar social que vinha com a posição, embora modesta. 
A exemplo da obra de Murnau, “Die Straẞe” concentra-se na visualidade, lançando mão de boas estratégias para conceber e potencializar o burburinho urbano, a exemplo da dupla-exposição, que concentra num mesmo plano um conjunto de signos da metrópole. Lembra as sinfonias metropolitanas que seriam rodadas no final desta mesma década, em que o âmbito visual ganhava primazia ao verbo, o que era um respiro nos estertores deste cinema de que nos ocupamos aqui, que de mudo não tinha nada. 
O filme acompanha um dia da vida de um conjunto de indivíduos de classes populares: um par de escroques, uma prostituta, um velho cego e seu pequeno neto, um casal de meia-idade. O marido de meia-idade deixa a esposa para viver uma aventura extraconjugal, acabando na cadeia, enredado pelos escroques e pela prostituta, e quase comete suicídio – todavia, tão logo volta para casa vê a esposa repetir o gesto automático de servi-lo, sem emitir qualquer questionamento; um quiproquó faz o menininho denunciar o crime cometido pelo pai, salvando o inocente da prisão. 
A obra segue o enquadramento do gênero melodramático, tipificando os personagens para facilitar a sua legibilidade pelo público tão letrado neste gênero – estratégia seguida por Murnau em “The last laugh”, aliás, e na qual ele atingiria a excelência no absolutamente maravilhoso “Aurora” (1927). Como nessas obras, “Die Straẞe” procura fazer emergir a psicologia dessas personagens típicas, atingindo interpretações filigranadas. 
De cepa bem diferente, embora também beba da fonte do melodrama, é o ótimo “Conrad in Quest of his Youth”, dirigido pelo irmão do poderosíssimo Cecil B. de Mille. O Conrad do título é Thomas Meighan, que desempenha o papel do homem de cerca de quarenta anos que, voltando melancólico da guerra, vai em busca, como aponta o título da obra, da juventude perdida. O filme equilibra doses ideais de melancolia e humor. Encontrando no mausoléu em que habita o seu fiel mordomo, Conrad pergunta-se porque sobreviveu ao conflito, enquanto tantos amigos dele que tinham a quem voltar pereceram. Olhando-se numa fotografia da infância, em meio a um grupo de amigos, escreve-lhes nostalgicamente. 
A carta vai dar nas mãos de um leitor assíduo de romances “alegres” e de duas matronas, uma delas riquíssima. Não obstante, todos topam a aventura de reviver ipsis litteris a infância despreocupada, o que se revelará, como o leitor bem pode imaginar, um tiro no pé – nossos verdes anos são deleitosos porque a gente os olha pelas lentes cor de rosa da memória: “Ser adulto é chato, mas ser criança é horrível.”, dirá o aficionado em romances alegres pouco antes de fugir da experiência de Conrad, o qual, ato contínuo, embarcará atrás de alguns romances da juventude, com resultados negativos análogos. 
A obra revelará que fórmula da juventude não se encontra na ressureição do passado, mas na fruição do presente. Conrad curiosamente descobrirá isso ao conhecer a mocinha da história, uma jovem que empreendia uma viagem parecida com a dele – atriz que se casara dentro da nobreza e, recém-viúva, engaja-se novamente na trupe em que ela atuava, por não suportar a melancolia. 
Em meio aos longos intertítulos, “Conrad in Quest of his Youth” defenderá uma obviedade romanesca – independentemente da idade, o amor é o caminho para a juventude. A edição virtual da Giornate termina nesta visada agridoce ao passado, que permeia de nostalgia mesmo as sequências mais pragmáticas. É a nostalgia que me toma ao ouvir o acompanhamento musical da obra, que tão bem enlaça o drama ao riso. A música é de autoria de Neil Brand, o qual eu ouvi pela primeira vez na longuíssima e inolvidável exibição de “Les Misérables” (Henri Fescourt, 1925), na primeira vez em que estive em Pordenone, em 2015.

terça-feira, 17 de outubro de 2023

Giornate del Cinema Muto de Pordenone 2023 – Dia 7


Dia 7, sexta-feira, 13 de outubro 

O programa do sétimo dia da Giornate foi duplo, a exemplo do que ocorre aos finais de semana. A primeira obra exibida denomina-se “9 ½ (Film In 9.5mm, 1923-1960s)” e se trata de um compilado de filmes rodados com a câmera Pathé Baby ao redor do mundo, ao longo do escopo temporal anunciado no título. Já a segunda obra é “Circe the Enchantress” (Robert Z. Leonard, EUA, 1924), veículo da MGM à estrela Mae Murray. O acompanhamento musical de cada uma das obras ficou a cargo, respectivamente, do sexteto Ensemble Conservatorio G. B. Martini Bologna e de Donald Sosin. 


“9 ½...” continua os festejos em homenagem ao centenário da Pathé Baby, iniciados pela edição presencial da Giornate em 2022. O dispositivo de filmagem e projeção foi produzido pela Pathé a partir de 1922 tendo como objetivo os registros caseiros. Embora ainda fosse custosa, penetrava um público consumidor bastante mais amplo que os dispositivos anteriores – o escritor paulista António de Alcântara Machado denomina “Pathé Baby: Panoramas internacionais” a série de artigos que ele faz publicar, em 1925, no paulistano Jornal do Comércio, atinente à viagem que ele faz ao velho mundo. A pena do cronista torna-se uma câmera de cinema amador, a flagrar ágil os recortes de realidade que ele escolhe tomar. 
A curadoria do programa fica a cargo de Anna Briggs, Michele Manzolini e Mirco Santi. É importante nomeá-los porque, ao optarem por recortar o filme segundo temas específicos e organizá-los de modo a dar relevo a alguns elementos em detrimento de outros, elaboram um novo filme, cujo valor artístico supera os filmetes muitas vezes familiares donde tais recortes saíram. A Pathé Baby forjou uma porção de sucedâneos dos irmãos Lumière, além de flagrar os primeiros passos de um conjunto de cineastas experimentais. 
Se a cena colorida das duas jovens mães anônimas, com os bebês nos braços, a comerem cerejas na atmosfera primaveril, já encanta por si só, ela adquire transcendência ao dialogar com uma série de imagens familiares rodadas do Japão ao Canadá, ao Chile e ao Brasil (há mesmo um par de filmes familiares saídos da UFF-RJ). O filme é composto de três partes, conforme detalha o programa da Giornate – o qual, aliás, oferece informações detalhadas de cada uma das obras: travelogues, interações com seres amados e experimentos. O sexteto a quem coube o acompanhamento musical da obra compôs uma peça amorosa e idílica, provocando no público o mergulho sentimental ocorrido quando mergulhamos no baú de fotos de família. 


Já a segunda obra do programa é, como sublinha Jay Weissberg, um achado. Julgada perdida, “Circe the Enchantress” (1924) foi encontrada num arquivo de Praga (numa versão que, embora incompleta, é bastante compreensível). 
A obra é um veículo típico do estrelismo norte-americano, dando espaço para que a estrela desdobrasse ad nauseam o seu tipo artístico. Mae Murray, dançarina profissional além de atriz – ela fora estrela, entre outros, do Ziegfeld Follies –, é nele uma cria da idade do jazz-band, nada devendo à “Mademoiselle Cinema” talhada pela literatura do escritor brasileiro Benjamin Costallat um ano antes. A trama a associa a Circe, que na “Odisseia” é a filha do Sol, feiticeira que habita a ilha de Eana, transforma homens em porcos e enreda Ulisses na viagem de volta do herói depois da guerra de Troia. 
Surpreende a remissão clássica que a obra constrói logo em seu prelúdio, no qual Murray torna-se a Circe da fábula, que com uma etérea túnica helenística transforma os homens em feras, depois de saciar-se deles – a produção literária e teatral desta época mostra que o público de então estava muito mais escolado na mitologia grega que o de hoje. 
Mae Murray, Sally Milgrim no filme, é uma descendente à altura de Circe. Loura platinada, de cabelos curtos, boca vermelha, joias caras e vestido colante, ela entretém um séquito de homens que, no geral, valem menos que os porcos de sua legendária ascendente – malgrados eles se vistam segundo a última moda das altas rodas norte-americanas. Um tipo destoa do conjunto, o Dr. Wesley Van Martun (o rígido e pouco encantador James Kirkwood), homem que encara com sobranceria os desatinos da jovem, desviando-se de seus encantos. É obviamente por ele que ela se apaixonará. 
Ao ser repudiada pelo médico, o público descobrirá o outro lado dela: a jovem tresloucada habitara quando menina um convento, para o qual retorna, depois de sumir das vistas de seus antigos convivas sem deixar rastos. Ali, sofre um atropelamento ao tentar salvar uma orfãzinha, sendo internada com o risco de tornar-se paraplégica. Sally refaz o périplo que cabe a todas as personagens transviadas que pleiteiam a salvação. A essas alturas, o Dr. Wesley encontrara o diário da moça e descobre o seu paradeiro. Ao vê-lo, ela caminha em sua direção – cambaleante, porém a caminho da cura. 
Se o entrecho é mesquinho, como o leitor se deu conta, a realização é digna de nota. A montagem do filme alterna um ritmo sincopado bastante tributário do jazz, usado em sua primeira parte, com uma lassidão melancólica, nas cenas em que a jovem deixa o frenesi e ruma ao reencontro com a infância. A música de Donald Sosin mimetiza com inteligência esta ambivalência: é a princípio jazzística, entregando-se, na metade final da obra, ao idílio. 
No que concerne à temática, é igualmente digna de nota a fauna humana que circunda Sally, que faz emergir de modo modelar a loucura dos roaring twenties – a qual o cinema ajudou a construir. Destaque-se a banda de jazz (nessas alturas o piano de Sosin dá lugar à composição de um ensemble, que recupera o frenesi das jazz-bands da época) e o homem que, em travesti, anuncia-se como “a fada madrinha que vai realizar todos os desejos” da protagonista – ele não consegue; a salvação da mocinha estava na volta a um (aborrecido) passado livre de tentações.

segunda-feira, 16 de outubro de 2023

Giornate del Cinema Muto de Pordenone 2023 – Dia 6


Dia 6, quinta-feira, 12 de outubro 

Nos últimos anos a Giornate vem homenageando a “Ruritania”, referência ao reino fictício da Europa central que foi palco do romance “O Prisioneiro de Zenda”. Esta fábula pariu outros tantos reinados igualmente fantasiosos dali por diante (curiosos, busquem pela palavra-chave neste blog para acessarem os demais textos a respeito dos filmes exibidos na Mostra com esta temática), a exemplo do principado de Silistria, onde se passa a história do longa alemão “Eine Frau Von Format” (“A Lady of Quality”, Fritz Wendhausen, 1928). Antes do longa foi exibido o curta francês “Ankunft Des Fürsten Wilhelm I. Zu Wied In Durazzo (Albanien) März” (1914), tematizando a família real dos Balcãs, espaço geográfico no qual se situam os filmes da “Ruritania” – daí o caminho de mão-dupla entre a ficção e a história que esses programas da Giornate procura estabelecer. A música ficou a cargo de Elaine Loebenstein. 
“Ankunft Des Fürsten Wilhelm I…” é composto por algumas tomadas da chegada do príncipe Wilhelm I na Albânia que não surpreendem pela criatividade, quando consideramos os filmes do tipo rodados então: a câmera toma verticalmente uma fileira de oficiais que esperam o príncipe para cumprimentá-lo, reverenciando-o quando ele se aproxima, etc. 
A ele seguiu-se a obra principal do programa, “Eine Frau Von Format”, que apresenta outro desses raros exemplos de sororidade no cinema dos anos de 1920, a respeito do que falei ao resenhar “Rivalen”, dois dias atrás. A trama é oriunda da opereta homônima de Michael Krasznay-Krausz, que estreou em Berlim em fins de 1927. 
 A dama do título é Dschillu Zileh Beu (uma encantadora Mady Christians), embaixatriz da Turquísia, a qual disputará uma ilha nas imediações de Silistria – que a princesa Petra (Diana Karenne) venderá para que possa renovar o seu guarda-roupa (“Você quer que eu ande nua”, ela questiona candidamente o seu ajudante de ordens quando anuncia-lhe a venda) – com o Conde Gézza von Tököly, o embaixador de Illyria. Malgrado o filme tenha início com a panorâmica de um mapa detalhando a localização de todos esses países, todos eles são ficcionais. 
A trama é repleta de quiproquós. Chega primeiro a Silistria o conde Gézza, de peito estufado, testa larga e bastos bigodes – o clássico tipo galanteador. Sua diplomacia se baseará em seus atributos físicos, o público logo verá. Ao descobrir que a princesa é uma jovem espevitada da idade do jazz-band, procurará conquistá-la a todo custo. 
Todavia, o conde não conta com a chegada à cidade de uma oponente à altura – aliás, superior a ele –, Dschillu Zileh Beu. Mulher moderna, que chega ao reinado sozinha e de carro, hospedando-se sem-cerimônia num pardieiro local. “Eu sou a diplomata”, ela diz ao ajudante de ordens da rainha quando ele lhe pergunta pelo marido dela. O filme flerta com a onda feminista que então chegava às costas da Europa e das Américas – flerta mas lamentavelmente não a desposa, já que a jovem terminará apaixonada pelo conde galante e decidida a largar o ofício, ensinando-o, todavia, a se transformar num diplomata tão aparatado quanto ela. 
No entanto, antes do desfecho temos a chance de observar o mais bem-humorado toma-lá-dá-cá entre os dois diplomatas, em que há mesmo uma notável cena em travesti, colocando em primeiro plano a fluidez entre os gêneros sociais, coisa que os figurinos e os cortes de cabelo da época já principiavam a fazer: procurando atrapalhar o conde na conquista da princesa, Dschillu, que já tem os cabelos cortados à la garçon, finge-se de camareiro do conde durante um jantar que ele oferece à jovem. 
Antes de Dschillu trocar a carreira pelo casamento, caberá a ela conquistar a ilha em disputa, não sem antes salvar Petra, fingindo aos presentes que a echarpe que a princesa incautamente esquecera na residência do Casanova de Illyria não pertencia mais a ela, mas sim fora um presente dela a Dschillu, a futura esposa do rapaz. 
Para além do entrecho interessante, o filme encanta pelas externas tomadas em Dubrovnik, na deslumbrante costa da Dalmácia.

domingo, 15 de outubro de 2023

Giornate del Cinema Muto de Pordenone 2023 – Dia 5


Dia 5, quarta-feira, 11 de outubro 


Chegamos na metade da Giornate. O programa do dia (com cerca de 50’ de duração) é composto pela exibição de um conjunto de filmes britânicos preservados pela Filmoteca da Catalunha nos primeiros quinze anos da cinematografia: “Early British films from the Filmoteca di Catalunya, 1897-1909”. O acompanhamento musical é de John Sweeney. 

Estamos aqui diante de um medium que se descobria e explorava todas as suas inúmeras potencialidades; na égide do “cinema de atrações”, que tanto fascínio despertou desde o público frequentador dos entretenimentos disponíveis nos maiores ou menores centros urbanos, até uma variada sorte de literatos do redor do mundo. Num diapasão dramático, em 1896, o escritor soviético Maxim Gorky refere-se a este cinema como o reino das sombras, lugar sem som e sem cor, habitado por espectros silenciosos e moventes (trecho mais longo desta bela crônica encontra-se aqui). 

Um ano mais tarde, o cronista carioca Figueiredo Coimbra apreende este mundo com mais deleite. Encenando uma conversa de um jovem casal que assiste a uma sessão do “Animatógrafo Super Lumière”, no centro da cidade, ele procura destacar pelo viés do humor o que faltaria a este novo entretenimento: 


— Viste bem essa rua de Londres? 

— Vi!... É uma fotografia. Mas notei pouca animação, apesar das carruagens. 

— Havia mais povo do outro lado. 

— Que lado? 

— O lado que se não via. 

— Eu tinha desejo de ir lá, quando de repente a rua acabou. 

— Foi um relâmpago, mas bastou, filhinha, para se poder calcular o que é Londres. Uma grande cidade, uma cidade enorme...*


Animatógrafo Super-Lumière,
A Notícia. Rio de Janeiro,
p. 4, 11-12 dez. 1897.


O casal comenta os filmes procurando dar um sentido para aquilo que lhes falta. Falamos aqui de filmes curtos, com cerca de um minuto de duração. Muitos deles tratam-se de cenas tomadas do natural, em que a câmera flagra um acontecimento que principia antes de o registro começar, e termina quando o registro já se findou. 

Ao meter-se no meio dos acontecimentos, o este cinema recupera uma premência que é aquela da modernidade. Mais que isso, mostra que, embora seja um espetáculo que se venda muitas vezes dentro dos recintos teatrais, supera o teatro, ao sinalizar ao público a existência de um fora de campo. O cinema apontava para a existência daquilo que não podia ser visto. O objeto que fugia das vistas do público denotava a dimensão do mundo de modo muito mais contundente do que o teatro fizera até então. 

Os primeiros anos da década de 1890 viram o nascimento de experimentos voltados a dar moção à imagem fotográfica, dentre os quais se incluem o Kinetoscópio de Thomas Edison e o Cinematógrafo dos Irmãos Lumière. O inventor inglês Robert W. Paul é outro desses homens. Seu “Animatógrafo” percorreu o mundo – embora o dispositivo comentado por Figueiredo Coimbra em 1897 denomine-se “Animatógrafo Super-Lumière”, provavelmente tratava-se de um exemplar do aparelho concebido por Paul. 

O escopo temático dos registros de Paul assemelhava-se bastante àqueles colhidos pelos irmãos Lumière, mais conhecidos do público, e sinalizavam, como apontei acima, para uma série de caminhos: sketches cômicas, trucagens, phantom rides – cenas tomadas da frente dos veículos, que furavam o burburinho urbano –, desfiles e demais acontecimentos do dia a dia, panorâmicas de sítios históricos (a exemplo de Veneza) ou, ainda, de longas travessias de trem, a tomarem o cinema como o veículo de uma viagem sem sair do lugar.


Fonte: F. C. (pseud. de Figueiredo Coimbra). Diálogos. A Notícia, Rio de Janeiro, p. 1, 11-12 dez. 1897. 

sábado, 14 de outubro de 2023

Giornate del Cinema Muto de Pordenone 2023 – Dia 4


Dia 4, terça, 10 de outubro 


O programa do quarto dia da Giornate é exclusivamente por “Rivalen” (“The Miracle of Tomorrow”, Harry Piel, 1923), com acompanhamento musical de Gabriel Thibaudeau. 

Segure-se, público, para conhecer Harry Piel agora de corpo e espírito, já que ele não apenas dirige, mas protagoniza o estonteante longa alemão “Rivalen”, segundo de uma trilogia. Aqui, as aventuras das duas primeiras obras apresentadas no primeiro programa voltado ao artista, dois dias atrás, multiplicam-se e ganham estofo simbólico. 

Os contornos da trama são enformados pelo gênero filme de aventura. Aqui, no entanto, o entrecho romântico ganha urgência. Piel mal esconde a associação entre a sua persona cinematográfica e o personagem que desempenha: ele faz o papel de si mesmo, do homem belo, forte e esbelto por quem a arfante jovenzinha Evelyn Evans (Inge Helgard) apaixona-se perdidamente. O pai dela é contra o relacionamento, considerá-lo (vejam-se as semelhanças com “The adventure of a journalist”) um desocupado. Ela, no entanto, o faz entrar furtivamente num baile à fantasia que organizava na residência da família. 

O baile, no qual o filme se centra, é antológico. Um grande salão tem esculpida em seu fundo uma criatura das trevas cujos olhos são duas janelas, e cujas pálpebras são toldos que se abrem e fecham à medida que seus frequentadores querem privacidade. Pelo salão desfilarão convivas vestidos de diabos e demais seres sombrios. Um frenesi preside a filmagem do baile, desde a chegada dos convidados até a entrada de Piel e do Rival do título: cientista inescrupuloso que tenta de tudo para se casar com Evelyn. Um crescendo dramático sucede-se ao deboche inicial, quando o lugar se assemelhava a uma sucursal da Babilônia. 

A ânsia recupera o epíteto de “anos loucos” atribuídos aos anos de 1920. Pouco depois de Piel exibir seus dotes acrobáticos e pedir a mocinha em casamento, um robô – o primeiro jamais presente num longa-metragem, segundo Jay Weissberg, diretor da Giornate – adentrará pela bocarra da criatura esculpida nos fundos do salão de festas e submeterá o pai da mocinha. Neste meio tempo, um dos pouquíssimos exemplos de sororidade que jamais vi no cinema desta época aparece na pele de Julieta Carnera (Maria Wefers), amante do “Rival”, que principia adentrando a festa para persegui-lo e acaba ajudando Evelyn a se safar. O nome e o tipo hispânico da jovem são mimetizados, pelo compositor Gabriel Thibaudeau, por um tango, no primeiro momento em que ela surge em cena, num trem, no princípio da obra – esse contorno meio étnico, meio cômico presidirá as suas entradas, que tanto darão leveza à história quanto sublinharão o caráter assertivo da jovem. 

Julieta troca de lugar com Evelyn, e é sequestrada pelo próprio amante. Sem se dar conta da troca, Piel segue-os. Os signos da técnica, que visitaram os filmes rodados por ele uma década antes, multiplicam-se aqui, dentre os quais a cápsula de vidro onde ele ficará preso pelos criminosos, a qual será mergulhada no mar (a cena em que os comparsas do vilão param de bombear oxigênio para dentro da cápsula, e o ar vai rareando, são efetivamente agônicas). 

 Nessas alturas, Evelyn já viera de descobrir o destino do amado, e já aceitara casar-se com o “Rival” para salvá-lo. Uma montagem paralela ilustra, de um lado, o esforço de Piel para resgatá-la, depois de se desvencilhar da arapuca, e do outro, o sofrimento dela pelo destino que a esperava. Há um equilíbrio muito bom, aqui, entre a ânsia e o sofrimento, os fortes e os pianos, que se alternam para um final surpreendentemente infeliz, considerando-se a cinematografia da época e especialmente este gênero de filmes: Piel chega a salvar a jovem, mas não impede o casamento – o desfecho da história o público, já então cativado pelas personagens, não conhecerá, já que ele se desenrolará apenas na terceira e última obra da trilogia.

sexta-feira, 13 de outubro de 2023

Giornate del Cinema Muto de Pordenone 2023 – Dia 3


Dia 3, segunda, 9 de outubro 


Os programas nos dias de semana, na versão online da Giornate, são únicos. O exibido neste terceiro dia do evento é composto por “La Madre” (Giuseppe Sterni, IT, 1917), com pouco menos de uma hora de duração. Precedem-no uma joia rara, o trecho de “La vita e la morte” (Mario Caserini, IT, 1917), protagonizado pela diva italiana Leda Gys, e pelo curta promocional “Italia Vitaliani visita il regista Giuseppe Sterni per discutere del suo ruolo in la madre” (IT, 1917). O acompanhamento musical é de Stephen Horne. 

A primeira obra do programa é o que sobrou de “La vita e la morte”. Sempre que flagro esses pedaços de passado que se salvaram da ruína vem-me à boca um gosto agridoce. Este é um clássico filme de diva daquela época. Gys é a etérea Leda de Belleville, dama que, casada com um magistrado, vive um affair com outro homem. Ao ir encontrá-lo, durante uma viagem de barco, ela acidenta-se. É colhida por um casal de pescadores inescrupulosos, que se aproveitam do fato de ela ter ficado desmemoriada. Nessas alturas, o piano plangente de Stephen Horne é substituído pela gaita e pela flauta, que dão sabor popular e bucólico às cenas no reduto dos pescadores. 

Neste meio tempo, o marido, que sofre, descobre a traição. A mulher deixa uma filha pequenina, que dolorosamente vai deitar flores no túmulo da mãe, o oceano. O programa da Giornate narra o que se perdeu da obra: a dama envolve-se nas atividades criminosas do casal que a resgata, fato que o marido descobre ao presidir o júri no julgamento do grupo – literalmente morrendo de susto ao se dar conta de que a mulher que ele julgava morta ainda vivia. Um enredo escalafobético que, como tantos daqueles tempos, vale menos pelo que conta do que pela forma como constrói essas personas que são maiores que a vida. A obra está preservada pelo Eye Filmmuseum, onde também se encontram as demais do programa. 

O próximo filme, cuja tradução literal livre é “Italia Vitaliani visita o diretor Giuseppe Sterni para discutir seu papel em La Madre, faz jus ao título; é uma peça de divulgação do filme. Apesar de procurar se vender como um filme de atualidade, não engana que é posado – Vitaliani, a protagonista de “La Madre”, abre a cortina teatral que vai dar na sala do diretor, cuja cadeira está colocada num conveniente enquadramento frontal. Ela faz volteios e senta-se dramaticamente enquanto Sterni supostamente lhe apresenta o papel que ela desempenhará. 

A canastrice do conjunto mal nos prepara para “La Madre”, em que Vitaliani deixa clara a sua estirpe: ela era prima de Eleonora Duse, atriz teatral idolatrada por um dramaturgo exigente como George Bernard Shaw pela naturalidade que imprimia ao repertório (sobretudo realista) que representava. Como Duse (que para o cinema lamentavelmente apenas fez um filme, “Cenere”, de 1916), Vitaliani é adepta dessa aproximação despida e moderna aos papéis que representa. Nesta obra, ela, que então contava com cerca de 50 anos, não se incomoda de se parecer 20 anos mais velha para representar o papel-título. Ela é a mãe do pintor Emanuele (Giuseppe Sterne, também o diretor da obra). 

O rapaz é construído como um meninão. É um pintor com muito talento e pouco tutano. Caberá à mãe salvá-lo de uma femme fatale típica quando ele viaja do vilarejo onde moram até a capital, para aprimorar a sua técnica. A mãe torna-se a sua fonte primordial de inspiração, já que ele tem o seu talento descoberto por meio de um quadro que a tematiza. É nos braços dela que ele se joga depois que a cidade que o viu partir como um anônimo recebe-o como herói. Ela, que esconde uma doença grave, morrerá pouco depois. A cena que fecha a obra flagra o jovem ajoelhado diante do anjo, encomendando a alma da progenitora. 

A mãe não tem nome, funciona como símbolo. Esta obra recupera um cânone do gênero melodramático: a associação da personagem materna com a virgem Maria, a Mater Dolorosa, ao mesmo tempo em que a jovem que procura desencaminhar o jovem é uma espécie de Dalila. O cinema atrelava, então, a mítica do estrelismo aos mitos ocidentais. Se a narrativa é convencional, vale sobretudo pelo trabalho sólido desempenhado por Italia Vitaliani, uma bela atriz que eu acabo de conhecer. 

quinta-feira, 12 de outubro de 2023

Giornate del Cinema Muto de Pordenone 2023 – Dia 2


Dia 2, domingo, 8 de outubro 


Domingo foi dia de outro programa duplo, composto por obras alemãs: o primeiro dedicado ao diretor e astro Harry Piel, centrado nos filmes “Das abenteuer eines journalisten” (“The adventure of a journalist”, 1914) e “Das Rollende hotel” (algo como “O hotel sobre rodas”, 1918), ambos dirigidos por ele, com acompanhamento musical de José María Serralde Ruiz. Já o segundo programa centrou-se no longa-metragem “Der Berg des Schicksals” (“Mountain of Destiny”, Arnold Fanck, 1924), com acompanhamento musical de Mauro Colombis. 

Piel é para mim uma das descobertas desta Giornate. Embora Jay Weissberg comente que certo jornal recifense apontou o artista como um dos preferidos do público, eu não me lembro de ter passado por ele em minhas pesquisas. Atualização em 15/10 graças à pesquisa de Luciana Araújo: a 16 de abril de 1922, o Jornal do Recife publica uma pesquisa sobre as preferências dos espectadores, segundo a qual Piel constava na lista dos mais simpáticos:

Este é o primeiro de dois programas centrados no artista, a serem exibidos na versão online da Giornate. Nesses filmes, embora ele desempenhe o papel exclusivo de diretor, observam-se características semelhantes àquelas presentes nas obras que ele protagoniza. São filmes de aventura, no estilo dos seriados protagonizados por Pearl White, apesar de mais longos (cada um tem cerca de 50’ de duração). 

O primeiro deles foi lançado, segundo o programa da Giornate, pouco mais de uma semana antes do assassinato do arquiduque Franz Ferdinand em Sarajevo, fato que desencadeou a Primeira Grande Guerra. Foi, ademais, vendido como uma obra que tematizava o desenvolvimento técnico, sejam os carros velozes, seja a explosão remota de minas submarinas – pouco depois, a violência vendida como produto da indústria do entretenimento desdobrar-se-ia real naqueles mesmos sítios. 

O contexto aqui não é de reflexão sobre os abismos em que nos lança a técnica. Em voga está o deleite do público que acompanha a história do jornalista Harrison (Ludwig Trautmann), e sua impossibilidade de viver a paixão que nutre pela filha de um importante cientista, pois o homem julga-o um ocioso, impossibilitado, portanto, de sustentá-la. 

O entrecho amoroso serve de desculpa para o desenvolvimento da trama. O pai da mocinha tinha um rival, também cientista, o qual, para ter tempo hábil de apresentar ao governo o seu dispositivo remoto de explosão, sequestra-o. Para salvar o sogro e, enfim, provar-se merecedor da mão da mocinha, Harrison protagoniza uma perseguição ferrenha dos comparsas do cientista, e enfrentará mil perigos (como, por exemplo, um salto de paraquedas). 

Há frenesi no cinema de Piel. Veja-se, neste sentido, a cena de perseguição no (impressionante) metrô suspenso de Schwebebahn: os cortes rápidos e os primeiros planos angustiantes imprimem uma visada à modernidade que não é só de flerte, também é de temor. 

Já “Das Rollende hotel” é um road movie centrado na impossibilidade de a jovenzinha casadoira Addy (a adorável Kâthe Haack) se unir com o rapaz que ela ama, pois seu tutor deseja casá-la com um velhote a quem ele deve dinheiro tão logo ela complete a maioridade. Malgrado seja o provocador da trama, o rapaz é um mero coadjuvante dela. No centro da história estão, além de Addy, o amigo dele, Joe Deebs (o elegantíssimo Heinrich Schroth) – o responsável por salvar a jovem do destino sombrio que a esperava, abrigando-a, nos dias derradeiros antes de sua maioridade, no tal hotel sobre rodas do título. Há ainda o impagável Alfred Delbosq, no papel do detetive Sharf, que a todo custo tenta recuperar a jovem para devolvê-la ao tutor. 

O enredo rocambolesco serve de desculpa para um passeio turístico pelos sítios os mais diversos, dos Alpes bávaros – onde o galante cicerone de Addy mostrará sua destreza, salvando-a ao carregá-la temerariamente por sobre os fios do teleférico que ainda estava para ser instalado – aos hotéis frequentados pela alta goma europeia. O cinema é, neste filme, uma viagem sem sair do lugar, em que o espectador é passageiro que viaja em primeira classe. E para estender tal viagem, à medida que seguem, Deebs vai deixando pistas ao detetive, até que o homem vai finalmente flagrar o casal no vagão de um trem, enquanto os pombinhos se casam. 

“Mountain of Destiny”, o longa apresentado no segundo programa do dia, também persegue esta faceta histórica do cinema, de exploração dos cantos mais recônditos do mundo. A obra impressiona pela ousadia com que o seu diretor (também o fotógrafo, roteiriza, editor e produtor, segundo o programa da Giornate), desincumbe-se da tarefa de filmar as Dolomitas, cadeia montanhosa nos Alpes orientais, no norte da Itália. 

O espaço exerce presença preponderante na obra baseada na história de Carlo Garbari, que pereceu ao tentar escalar a Guglia di Brenta, uma dessas montanhas. Um conjunto de imagens do espaço portentoso abre o filme, e elas serão repisadas como leitmotiv, denotando a pequenez humana frente à majestade da natureza. 

A fotografia é um dos pontos altos de “Mountain of Destiny”. A obra divide-se entre mostrar (longamente, mas com um firme pulso dramático) os esforços de “Carbarie” para vencer a “Guglia”, em vão, e a recusa do filho dele de encarar a montanha que ceifara a vida do pai. O contraponto do pai e do filho aventureiros são a esposa dele (e mãe do menino), a excelente e contida Erna Morena, e a mãe dele, Frida Richard. 

Uma palpitante montagem paralela toma o filho pequeno escalando a chaminé da casa enquanto o pai tenta, em vão, vencer a montanha. É a mulher dele que, trêmula, terá a sensação de sua morte. Décadas mais tarde, caberá ao filho dobrar a até então inexpugnável Guglia, casualmente, já que a escala para salvar a namorada, que tenta escalá-la depois de acusá-lo de covardia (passemos ao largo da portentosa cena final, da jovem ajoelhada humildemente aos pés do moço, num plano geral tendo ao fundo a imensidão branca, pois ela é fruto de seu tempo...).

quarta-feira, 11 de outubro de 2023

Giornate del Cinema Muto de Pordenone 2023 - Dia 1

Dia 1, sábado, 7 de outubro

Ao menos uma vez por ano ressuscito este blog para comentar a Giornate del Cinema Muto, amor maior desde que nela estive em 2015 (o leitor de primeira viagem pode encontrar por aqui textos sobre várias de suas edições). Em 2020, com a pandemia, o evento tornou-se online. Desde 2021, tornou-se novamente presencial, exibindo, no entanto, uma seleta de filmes em sua edição online, ao longo dos mesmos oito dias em que se ocorre a sua versão oficial – os deuses do cinema não abandonam os seus duros e atribulados amantes. 
Meus sentimentos quando acompanho o evento são sempre agridoces. Pessoalmente, repiso a cidade lembrando-me de quando a descobri pela primeira vez. Em casa e diante do computador, fecho os olhos e viajo sentimentalmente por ela; sinto os cheiros da feira, o gosto do inesquecível chocolate quente da Peratoner, com o qual me encontrava entre uma sessão e outra... 
Mas vamos aos filmes. 

Sábado foi dia de uma sessão dupla: seis curtas que compõem o programa “Slapstick Shorts: Transatlantic Echoes”, rodados entre os Estados Unidos e a Europa de 1909 a 1920, e o western “The Fox”, de Robert Thornby (EUA, 1921). 
Jay Weissberg, diretor da Giornate, destaca, no vídeo de apresentação da seleta de curtas, as influências conjuntas estabelecidas entre filmes europeus e norte-americanos, no que diz respeito à linguagem e ao tema. Tomando o recorte temporal – que atravessa, grosso modo, do primeiro cinema ao cinema clássico –, é interessante observarmos o burilamento desses elementos. 
“Le torchon brûle ou une querelle de ménage” (Roméo Bosetti, FR, 1911), é um desses filmes do primeiro cinema que daria trabalho à “máquina de fazer barulho” vendida pelos Ferrez no Brasil na primeira década de 1900, tal a necessidade de sons incidentais que ele demanda (o admirável acompanhamento musical deste programa foi de Daan Van Den Hurk). Encena a briga de um casal, que se inicia no apartamento onde moram e se estende pelas suas escadarias e pelas ruas da cidade – por onde eles rolam enquanto se destroçam, desafiando até mesmo as leis da gravidade, já que chegam a rolar pelo chão mesmo escada acima... Esse looping nada deve aos brinquedos exibidos e comercializados no pré-cinema, como o zootrópio e o praxinoscópio – memento do primeiro cinema aos aparatos que o sonharam. 
“At Coney Island” (US, Mack Sennett, 1912) traz como entrecho a traição. Uma jovenzinha disputada por dois homens acaba por escolher um pai de família, que, para segui-la, abandona ao deus dará, no parque, a esposa e os filhos pequenos. A tópica é cara ao cinema e ao teatro da época: os parques de diversão são espaços abertos ao mascaramento, à fuga da realidade. É ali que o burguês rotundo (ele e todos os demais são personagens-tipo) encontrará escape do casamento insosso e dos filhos aborrecidos. No desfecho da história, a partida é sinalizada com o abandono da máscara – a jovem volta à dupla de rapazes que a disputa e o marido, à família. 
“Cretinetti che bello!” (algo como “Bonito, hein!”, IT, 1909) é protagonizado por uma estrela de cinema na primeira década de 1900, André Deed, personagem de uma série de filmes da Itala que fariam invulgar sucesso pelo mundo – no Brasil, “Cretinetti” tem um apelido mais carinhoso que na Itália, é “Did”. A disrupção, presente em porção considerável do cinema de atrações, e que é tópica também no destrutivo “Le torchon brûle ou une querelle de ménage”, preside esta história. “Cretinetti” – fraque e sapatos pontudos, um pré-Chaplin, não fosse pela cara de tolo – recebe um convite de casamento. Ele se traja, maquia-se com laudas quantidades de pó-de-arroz e, ato contínuo, vemo-lo pelas ruas da cidade, perseguido por todas as mulheres com quem cruza, as quais acabam por literalmente destroçá-lo. Graças a uma trucagem cinematográfica, no entanto, o seu corpo lacerado ganha novamente vida. 
“Rudi Sportman” (Emil Artur Longen, Império Austro-Húngaro, 1911) tem como protagonista um Peeping Tom, ou um futriqueiro, criatura que visita o cinema desde os seus primórdios – já que o cinema é, ele mesmo, um olhar pelo buraco da fechadura, um espreitar da intimidade alheia. A gramática do filme de perseguição preside esta história. Rudi segue no encalço da jovem por quem ele se enamora até que a encontrará numa piscina pública, disfarçando-se de mulher para se aproximar dela. Será descoberto, pagando pela curiosidade. 
“En Sølvbryllupsdag” (Lau Lauritzen, “The Silver Weeding”, DK, 1920) flagra um casal cujo idílio amoroso de comemoração dos 25 anos de casamento dura apenas até o primeiro beijo matutino. As reprimendas começam a ser cuspidas na cama. Ela parte pouco antes da chegada do advogado que dará ao casal uma grossa soma de dinheiro, contanto que ambos demonstrassem ser uma família verdadeiramente feliz. Ele a segue por toda a cidade, deixando o advogado com uma garrafa de bebida que o homem, a princípio resistente, terminará por secar – e se transformará em outro tipo ao fazê-lo. O casal acaba por se reencontrar no pé da escada, reconciliando-se em detrimento de qualquer herança – como devem ter feito incontáveis vezes, para que resistissem 25 anos casados. Para além da boa concepção de tipos, a comédia é preciosa – para mim ao menos – porque flagra o uso de duas camas contíguas de solteiro no quarto do casal, que se transformaria em praxe no cinema norte-americano a partir dos anos de 1930, por outro motivo (como comentei num dos primeiros artigos deste blog, quase 15 anos atrás). 
Por fim, uma obra-prima: “From hand to mouth” (Alfred Goulding, EUA 1919), protagonizada por Harold Lloyd, Mildren Davis e pela adorável atriz-mirim Peggy Cartwright. A história é singela: o “moço” sem nome tem fome, assim como a garotinha; a “moça” também sem nome está prestes a perder uma herança para um advogado corrupto. São dois tipos sociais cujos destinos se cruzarão. 
Antes disso, no entanto, algumas das cenas mais graciosas jamais compostas pela arte do silêncio se desenrolarão. Ele para diante de um restaurante, dependura um guardanapo no colarinho e chupa com fineza o osso que tira do bolso do paletó. Pouco depois, junta-se a ele a pequena Peggy Cartwright e seu cachorro manco, que mimetiza cada passo e gesto dela. O filme abre-se tanto aos sorrisos de canto de boca quanto às gargalhadas, já que casualmente o rapaz torna-se membro da gangue que sequestrará a jovem. Perseguindo-os, ajuntará a polícia por meio do expediente o mais amalucado que se pode imaginar – a história é uma screwball comedy avant la lettre, imperdível, que aconselho os leitores a procurar (lamentavelmente a programação da Giornate fica disponível por apenas 48 horas depois de lançada).
 
O segundo programa de sábado é “The Fox” (1921), western da Universal dirigido por Robert Thornby e protagonizado por Harry Carey, com acompanhamento musical de Philip Carli. Carey é Santa Fe, “homem misterioso”, como diz o letreiro, que chega maltrapilho numa cidadezinha perdida no Oeste norte-americano. Na cidade a lei claudica, pouco podendo o velho xerife George Nichols contra a gangue dos “Painted Cliffs”, que a aterroriza. 
Santa Fe, homem de meia-idade, passa desapercebido ao chegar. Preso em meio a uma briga, confunde certo menininho espoliado por um comerciante local com a sua trouxa de roupas, carregando-o dali. O garoto – George Cooper – é uma versão masculina da adorável garotinha de “From hand to mouth”, também abandonado e maltrapilho. Santa Fe o adota, carregando-o consigo mesmo para a cadeia, onde acaba preso envolvido casualmente noutro litígio. Uma das filhas do xerife cai de amores por ele. Por obra do homem, Santa Fe acaba indo trabalhar no banco do povoado, contratado como funcionário. 
Pego bisbilhotando, é expulso do local. A essas alturas, o público já se deu conta de que o maltrapilho misterioso não era quem aparentava ser. Efetivamente, ele trabalhava no Tesouro Nacional, ofício sem poesia, não fosse ele também um cowboy proverbial, à la John Wayne, que se embrenha na aridez montanhosa no meio de um vendaval para salvar o xerife, o filho de uma viúva desprovida e, enfim, para encontrar o esconderijo da gangue dos “Painted Cliffs” e desmascarar o seu chefe – que era não outro senão o dono do banco (como corresponde...). 
Tiros, correrias, poeira. Todos os elementos que dão textura ao western daqueles tempos estão aí dispostos, com direito até a um idílio romântico entre o cowboy nem-tão-durão-assim e a filha do xerife – aliás, o primeiro encontro de ambos, com o gesto tímido de Santa Fe de limpar a mão na roupa antes de tocar a mão da jovem, é de uma contenção plenamente sustentada ainda hoje, passado mais de 100 anos da rodagem da película.

quarta-feira, 5 de julho de 2023

O talento de Isabel Leonard passou por São Paulo


O cancelamento da letã Elīna Garanča, programada como o primeiro espetáculo vocal da temporada do Mozarteum deste ano, nos ofereceu a oportunidade de conhecer o trabalho da mezzo-soprano norte-americana Isabel Leonard, que em março deste ano apresentou-se pela primeira vez no Brasil em Curitiba, num espetáculo em comemoração ao aniversário da cidade. 

Menos conhecida das plateias brasileiras que a colega, Leonard tem uma carreira respeitável nos palcos da América do Norte e da Europa, nos quais ela interpretou papéis notórios do repertório de mezzo-soprano sobretudo leggero, que tão bem se encaixam à sua voz e ao seu físico lépido, a exemplo da Rosina, de “Il Barbieri di Siviglia” (de Gioachino Rossini), e de Cherubino, de “Le Nozze di Figaro” (de Wolfgang Amadeus Mozart). Trata-se, no entanto, de uma artista versátil, já que coube a ela dar corpo, no MET, à perturbada Marnie, na estreia mundial da ópera homônima com música de Nico Muhly e libreto de Nicholas Wright, baseada no romance de Winston Graham (o mesmo que originou o clássico de Hitchcock, de 1964) – e ela o fez otimamente bem, tanto do ponto de vista vocal quanto cênico. Trata-se, portanto, de uma artista que merecia ser conhecida pelo público paulistano. 

Para o concerto programado na Sala São Paulo em 27 de junho, Isabel Leonard escolheu um repertório que passeou pela sua carreira: de Rossini e Mozart a Bizet (“Carmen”) e Massenet (a Charlotte de “Werther”). Passou também pelo espanhol Manuel de Falla (“Sete canções populares espanholas”) e pelo mexicano (“Granada”). 

Acompanhando-a estava a Orquestra Acadêmica Mozarteum Brasileira, conduzida com um misto de energia e finesse pelo maestro norte-americano Constantine Orbelian. A orquestra teve a sua melhor performance dos últimos anos, julgo eu – sublinhamos, trata-se de uma orquestra acadêmica, composta por uma parcela de estudantes, além dos cachezistas profissionais, daí a ser destacável que ela tenha conseguido verdadeiramente protagonizar nalguns momentos puramente orquestrais, como o “Bacchanale” de Camille Saint-Saëns e “La Boda de Luis Alonso”, de Gerónimo Giménez. 

Os temas orquestrais foram escolhidos considerando-se o repertório que seria apresentado por Garanča, daí o descompasso existente nalguns momentos entre ele e os números cantados. O próprio “Bacchanale”, por exemplo, introduziria as árias de “Sansom et Dalila” que seriam cantadas pela mezzo letã. Mantido neste concerto, provavelmente devido às dificuldades da orquestra de ensaiar outro tema, serviram de introdução estranha da dramática “Air des lettres”, tour de force da ópera “Werther” cantado deslumbrantemente bem por Leonard, num dos pontos altos da noite. ´

O espetáculo ocorreu em curva ascendente. Leonard começou a se adonar do público da Sala São Paulo ao longo das árias de Mozart, dominando-o ao abordar, com penetração, graça e dicção perfeita (o que foi, aliás, uma constante nos números em espanhol, francês e italiano que cantou), as “Sete canções populares espanholas” de Falla. 

A segunda parte do programa foi especialmente interessante. Além da já mencionada ária de Charlotte, desta obra-prima de Massenet que é “Werther”, a mezzo abordou dois temas de “Carmen”, repertório par excellence de mezzo-sopranos: a “Habanera” e a “Seguidilla”. 

Como “Sansão e Dalila”, “Carmen” é uma ópera complicada: escritas ambas num período em que o tipo da femme fatale estava consolidado, apresentam duas mulheres astutas, que manipulam os homens que as amam – culpa da moral machista da época. “Carmen”, além de tudo, é sexualmente livre, o que era motivo de terror por parte dos homens pregressos – ainda hoje o é. Embora o texto dessas óperas flerte com o contexto histórico em que nasceram, a sua música maravilhosa o transcende. Portanto, como interpretar esses papéis hoje? Isabel Leonard escolheu uma forma comedida, procurando escoimar a interpretação vocal e cênica dos lastros vampirescos – e, portanto, dos laivos machistas – que deram origem ao papel. Fez um trabalho bastante bonito, sobretudo com a “Seguidilla”, ária que traz um tanto da lepidez que já é própria da cantora. 

O concerto foi fechado por dois bises, “Somewhere”, de “West Side Story” (de Leonard Bernstein) e “Tu n’est pas beau”, a ária da bêbada da ópera bufa de Jacques Offenbach “La Perichole”, que ela fez com uma graça ímpar. Foi um belo concerto. Que venham outros, para que possamos conhecer melhor esta artista tão talentosa.

terça-feira, 21 de março de 2023

A ensimesmada Hollywood: pitacos sobre o Oscar 2023


Assumo aqui a tarefa ousada de inaugurar, este ano, este blog que já se tornou bissexto, falando sobre algo que não seja cinema silencioso, coisa que há anos me assombra. Falando, mais especificamente, sobre os filmes indicados ao Oscar 2023, e sobre os vitoriosos; assunto que já gerou muito choro e ranger de dentes dentre meus amigos, colegas e conhecidos.
Revisitei en passant meus (vários) textos sobre o Oscar, escritos de forma passional desde que inaugurei o Filmes, filmes, filmes, em 2010. Textos longos e ponderados, o oposto do que me proponho a fazer aqui, nessas notas que não passarão de pitacos – como aponta o título – sobre a solenidade deste ano, e as obras e deidades que ela colocou em seu panteão. Concentro-me aqui nos filmes concorrentes ao prêmio de Melhor Filme.
Os Fabelmans
Vi-me em fevereiro assistindo, numa sanha louca, a praticamente todos os indicados do ano. Se não completei o álbum de figurinhas, estive muito perto: Nada de Novo no Front eu não vi anunciado nos cinemas; outras obras, como Elvis e Top Gun, já não estavam em cartaz; outras, como Avatar, preferi fingir que não estivessem – enquanto o primeiro filme da franquia surpreendeu pelo uso de tirar o fôlego da tecnologia em 3D (a trama, malgrado a sua visada socioambiental, era pífia), não consegui ver, no trailer ou no poster do segundo, elemento que transcendesse o primeiro do ponto de vista técnico ou narrativo. 
A relativa facilidade em passar pelas obras indicadas revela uma característica nefasta do Oscar – ou da Academia de Artes Cinematográficas, que o atribui: o fato de apenas uma dúzia de obras intercambiarem-se em nos quesitos de premiação. Fiz uma checagem rápida e encontrei, num artigo publicado pela Cláudia em 2019, a referência aos cerca de oito mil membros pertencentes aos quadros da Academia, que podem decidir quem devem indicar e, a partir daí, quem se sagrará vencedor (os meandros disso podem ser conferidos aqui). 
Tár
O fato de tantas cabeças ao redor do mundo poderem tomar esta decisão acenaria a uma teórica pluralidade, não fosse o ensimesmamento da indústria do cinema, centrada em Hollywood e nas obras dali saídas. O volume considerável de dinheiro gasto com marketing, por filmes que, às vezes, têm como principal qualidade isso mesmo, serem boas peças de marketing, cria essas unanimidades nocivas. 
Daí, por exemplo a raridade que é vermos a indicação a Melhor Filme de uma obra que não tenha o inglês como idioma principal. Uma das honrosas exceções, o leitor se lembrará, é o sul-coreano Parasita (2019), cujo feito inédito foi conquistar os prêmios de Melhor Filme e de Melhor Filme Estrangeiro em 2020 – mas, neste caso, a exceção vem marcada pelo exagero, já que, embora a obra tenha boa cinematografia, bloca de forma escolar os opostos, descambando, no âmbito do roteiro, para o artificioso/inverossímil. 
Este ano, aliás, discutiu-se sobre o sufocamento gerado pelo marketing de Hollywood, ao se colocar em pauta a indicação de Andrea Riseborough por To Leslie – alçada a este posto por um grupo independente e aguerrido. Nada mais digo a este respeito, já que não assisti à obra. 
Discutir o Oscar não é propriamente discutir cinema, mas sim os arranjos tramados na principal indústria de cinema do mundo, estabelecida numa das principais potências mundiais. A partir deste lugar, surpreende que alguns trabalhos dignos de nota sejam galardoados com a indicação ao prêmio. Vamos a eles – ou a alguns deles, a partir do lugar desta que vos fala. 
Comecemos pela obra mais premiada. Tudo em todos os lugares ao mesmo tempo, codirigida por Daniel Kwan e Daniel Scheinert, arrebatou, além dos prêmios de melhor atriz e de atriz e ator coadjuvantes, as láureas de roteiro original, montagem, diretor e filme. 
Sou, como cristã não praticante e comunista de coração, a favor de dividirem-se as benesses. Não sou do time cujos dentes rangeram com esta vitória – ao contrário, este, junto do Triângulo da Tristeza, foram os meus favoritos desta edição da premiação. Se roteiro e sobretudo montagem são os grandes trunfos desta obra, não seria de mau alvitre premiar-se o diretor Ruben Östlund, pela visada ácida – e tão verossímil – que lança às relações humanas em Triângulo da tristeza, ou mesmo Martin McDonagh, pelo pulso com que conduz esta obra quase que teatral que é Os Banshees de Inisherin
Os intérpretes vitoriosos foram muito bem escolhidos. Michelle Yeoh e Jamie Lee Curtis merecem os prêmios por cooperarem na sustentação da continuidade narrativa no ultra clipado Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo. Para além disso, ambas mergulham de cabeça na atmosfera de teatro do absurdo que emana da obra, que se centra na luta que Evelyn – imigrante chinesa de classe média-baixa – leva a cabo no multiverso para salvar o mundo; luta deflagrada, vejamos a identificação, no justo momento em que ela se digladia para concluir a sua declaração de imposto de renda... O mesmo trabalho impecável realiza Ke Huy Quan, que na obra desempenha o papel do marido da personagem de Michelle Yeoh, e de um sem-número de personagens afins, variados ad eternum, nas mais recônditas partes do multiverso. 
Criticou-se a pieguice de fundo da obra – já que, ao fim e ao cabo, a mãe viaja pelos universos paralelos para salvar a filha desgarrada transformada em arquivilã. Eu prefiro lê-la pelo viés do humor que tudo destrói: as tramas melodramáticas, a narrativa linear, as pretensiosas sagas que tematizam os meta/multiversos, etc. Os prêmios inéditos aos dois artistas orientais que participaram da produção é outro elemento que depõe a favor das escolhas – do rol de intérpretes vencedores, não saiu dos quadros de Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo apenas Brendan Fraser, deslumbrante em A Baleia


Algumas palavras, agora, sobre as demais obras indicadas – saliento, que eu vi: 

O irlandês Os Banshees de Inisherin (Martin McDonagh) passa-se numa ilha na costa oeste da Irlanda. Centra-se na história dos amigos Padraic (Colin Farrell) e Colm (Brendan Gleeson), mais especificamente na ruptura ocorrida entre ambos depois que o segundo se recusa a continuar amigo do primeiro. Para além da visada metafórica do filme – que, conforme acenou a crítica, metaforiza a ruptura traumática entre as duas Irlandas –, ele seduz pela construção matizada das personagens de Padraic e de sua irmã. Farrell, excelente, faz emergir com contenção e profundidade o espantoso da ruptura. A beleza do cenário recôndito e da trilha sonora emolduram a trama teatral, em que a dialética é colocada em primeiro plano. 
Os Fabelmans (Steven Spielberg) é uma exegese bela, mas algo longa e arrastada, das memórias de seu diretor, desde que pela primeira vez ele coloca as mãos numa câmera cinematográfica, nos Estados Unidos dos anos de 1960. Michelle Williams, indicada ao Oscar de melhor atriz, é a mãe do menino – mulher típica da época, presa aos liames da maternidade e do casamento. Os amantes de cinema se identificarão com o menino que sonha em ser cineasta: sua primeira fascinação pela sala de exibição, sua formação como cinéfilo e realizador, a primeira vez que vê o seu ídolo diretor. No entanto, atravessa a obra um tom grandiloquente que me incomodou. 
Em Triângulo da Tristeza, Ruben Östlund centra-se nos personagens de um casal de top models internacionais. A narrativa principia esmiuçando com assertividade ímpar os meandros da indústria da moda: a coisificação dos corpos, a indústria da propaganda, a mercantilização das relações sociais. Tal e qual cobaias de laboratório, o jovem casal que principia a história travando uma disputa para decidir quem pagará a conta do restaurante de grife acaba solto num luxuoso cruzeiro e, enfim, numa ilha deserta, depois que o navio afunda. Östlund estabelece e redefine com maestria os lugares sociais do grupo com quem os jovens cruzam, nesta que é a mais disruptiva obra do Oscar. 
Por fim, dois filmes centrados em personagens femininas: Entre mulheres (Sarah Polley) e Tár (Tod Field). O primeiro, premiado com o Oscar de melhor roteiro adaptado, ficcionaliza em cima da história real de certa comunidade carola cujos homens isolavam as mulheres, impedindo-as de estudar e as intoxicando para submetê-las a violações sexuais que eles atribuíam ao sobrenatural. A premissa é dolorosa e precisa, as atuações densas, e a intenção – de se dar a voz exclusivamente aos dramas e lutas femininas, de forma dialética, num jogo teatral – é das melhores. No entanto, há falta candente de verossimilhança neste quadro: a densidade dos argumentos relativos à submissão feminina lançados à roda por essas mulheres não condiz com o seu lugar social. 
Tár toma como objeto uma sorte oposta de personagem feminina, ficcionalizando sobre os esforços da regente da reputadíssima Filarmônica de Berlim (escolha irônica, dado o notório preconceito de gênero daquele grupo) para se alçar e se manter neste posto. Alguma tinta foi gasta, especialmente por mulheres do ramo, criticando a vilania da personagem. No entanto, a câmera oscila entre objetivas diretas e subjetivas indiretas, mergulhando um bocado nos fantasmas interiores da mulher, daí à impossibilidade de cravarmos a sua vilania. A derrocada de Tár é tão altissonante quanto a sua ascensão: ela termina comandando uma orquestra de fundo de quintal asiática durante a projeção de um filme de super-herói. A inverossimilhança se sobrepõe à vilania, e a curva dramática forçada serve sobretudo à Cate Blanchett, maravilhosa como sempre.
Amado e odiado, o Oscar segue há quase 100 anos o prêmio mais relevante da indústria do cinema. Apesar das controvérsias que gera, que ele siga fomentando a frequentação das salas de exibição – que decai a olhos vistos frente ao streaming –, e retirando do ostracismo gente que o merece, a exemplo de Brendan Fraser.