sexta-feira, 28 de junho de 2024

Em belo programa, OSUSP abordou obras de Salinas e Villa-Lobos


Crítica publicada a 20 de junho de 2024 no site Notas Musicais.

Concerto 15 de junho de 2024 

Anfiteatro Camargo Guarnieri 

Victor Hugo Toro, regência 

Ludmilla Bauerfeldt, soprano 

Quase três quartos de século separam os nascimentos de Heitor Villa-Lobos (1887) e de Horácio Salinas (1951). Embora não tenham convivido, e apesar de cada um deles ter recebido influências musicais distintas, o mesmo éthos heroico preside as obras dos dois compositores abordadas pela Orquestra Sinfônica da USP no último sábado, dia 15 de junho, no Anfiteatro Camargo Guarnieri, situado na Cidade Universitária da USP São Paulo: respectivamente, as suítes Floresta do Amazonas (1958) e Patagônia (2023). A regência foi de Victor Hugo Toro e a soprano Ludmilla Bauerfeldt, convidada especial, realizou os solos da obra de Villa-Lobos. 

O programa teve início com a estreia brasileira da Suíte Patagônia, escrita por Salinas durante a pandemia e estreada no Chile em 2023. Conforme apontou o seu autor na entrevista que concedeu no início de 2022 ao programa La Voz de los que Sobran (https://www.youtube.com/watch?v=71JKWH2o558), a obra é oriunda da emoção que sentiu ao visitar a Patagônia, situada “no fim do Chile e no fim do mundo”. Influenciado fortemente pela música popular do seu país, a sua obra aborda aquele território em que a natureza vicejante prepondera à civilização, evocando as cores, solidões, os gelos milenares e o esquecimento de povos originários como os Kawéskar, exterminados no momento da colonização pelos europeus. Território que é berço e tumba, já lembrara Patricio Guzmán no arrebatador O Botão de Pérola (2015), obra que entrelaça os destinos dos indígenas aos destinos dos prisioneiros políticos da ditadura de Pinochet, ali desovados depois de serem mortos. 

É também o intuito descritivo que preside Floresta do Amazonas, de Villa-Lobos, que a OSUSP apresentou na versão para orquestra reduzida concebida por Abel Rocha em 2021. A obra teve um percurso inusitado, conforme o maestro Victor Hugo Toro lembrou ao público, num comentário curto e informativo antes do princípio da sua execução (esta contextualização, também realizada antes do início da obra de Salinas, é muito bem-vinda, pois colabora para a fruição do público): resultou de um contrato que o poderosíssimo estúdio cinematográfico MGM firmou com Villa-Lobos para que ele criasse a trilha sonora de um filme protagonizado por Anthony Perkins e, sobretudo, por Audrey Hepburn, uma das atrizes mais conhecidas e queridas do mundo naquele momento. Villa teria aceitado a incumbência, todavia, compôs a música antes de assistir ao filme, o que caminha na contracorrente do que se espera de uma trilha sonora cinematográfica. 

O nome de Villa-Lobos, com destaque, nos créditos do filme

 O contrato foi rompido, lembrou o regente, porém Green Mansions (1958), ou A Flor que não Morreu, como viria a ser conhecido no Brasil, informa em seus créditos que teria cabido ao compositor criar “música especial” para a produção – enquanto a trilha sonora e a canção Song of Green Mansions, utilizadas no filme, foram compostas por Bronislau Kaper, com letra de Paul Francis Webster. Além disso, Villa se deixou fotografar, para a publicidade do filme, com Audrey e Mel Ferrer (diretor da obra e marido dela, então). A música de Villa é o grande momento desta película irregular, em que a alva e longilínea Audrey Hepburn interpreta o papel de Rima, uma nativa venezuelana carregada para um recôndito da floresta pelo arrependido ladrão de ouro que, após destruir o vilarejo onde ela vivia quando criança, cria-a como neta. Não falta physique du rôle apenas à atriz, mas também a Sessue Hayakawa, ótimo ator japonês cuja carreira remonta ao cinema silencioso (observe-se, por exemplo, a sua atuação contida em The Cheat, de 1915, algo desusado para a época), e que aqui é escalado para interpretar o cacique da tribo (!) que acaba por invadir os domínios de Rima e matá-la. 

Cena de Green Mansions

Malgrado faça uso de muito material fílmico gravado in loco, entre as fronteiras da Venezuela, da Colômbia e da Guiana Francesa, a obra presta mais tributo ao conto de fadas que ao cinema documental, dialogando com os musicais produzidos pela MGM, o estúdio mais bem reputado para a realização desse gênero fílmico na época. Correndo de pés descalços e vestidinho de chita pelos sendeiros recriados em estúdio na Califórnia, Audrey é menos a nativa sul-americana e mais a fada que lhe havia dado um Tony em 1954 (em Ondine, de Jean Giraudoux), ou a princesa que a havia elevado ao estrelato (com direito a um Oscar) em A princesa e o plebeu (Roman Holiday, 1953). 

O único calcamento de Green Mansions na realidade em que se passa a história, a Amazônia, é dado pela música de Villa-Lobos, que é, no entanto, subutilizada no filme. Marcadamente descritiva, mas apagada neste filme que caminha em sua contracorrente, a obra Floresta do Amazonas encontra melhor expressão no espaço da sala de concerto. E, no sábado passado, ela encontrou um espaço especialmente poderoso de expressão, executada pela OSUSP, sob a batuta de Hugo Toro, e cantada pela nossa deslumbrante Ludmilla Bauerfeldt. 

A escrita de Villa-Lobos recupera não a personagem criada na versão cinematográfica de Green Mansions, mas sim no livro de que o filme é oriundo, no qual a personagem de Rima era uma força da natureza, cuja voz era entendida sobretudo pelos animais da floresta. Como lembra Hugo Toro, a obra de Villa faz usos inusitados de efeitos orquestrais já conhecidos para mimetizar os sons da floresta, dos rios e dos animais, explicitando tanto a força da natureza quanto da música popular do Brasil. 

As canções da suíte demonstram isso de forma cabal. Com poesia de Dora Vasconcellos, bebem tanto da temática quanto da melodia do cancioneiro popular, ampliando os limites do Amazonas para os grandes sertões e para as paragens ribeirinhas (“Quanta tristeza / Ondas do mar / Neste vaivém / Sem me levar / Pois sempre eu fiz / Muita atenção / Em não pisar / Teu coração / Ah!”, em Veleiros), e repisando uma melancolia que é historicamente muito própria desta produção, a qual artistas modernistas, a exemplo de Villa-Lobos, abordaram com deleite. O rol de canções que compõem a suíte já foi interpretado por cantoras relevantes, líricas ou populares, a primeira das quais foi a soprano Bidu Sayão, uma lenda do canto lírico. Tais canções são, por sua natureza, o ponto focal da Floresta do Amazonas

Ludmilla Bauerfeldt, Victor Hugo Toro e a OSUSP 

A carioca Ludmilla Bauerfeldt se revelou uma intérprete potente desta obra. Tecnicamente precisa, além de ótima atriz-cantora, deslizou com segurança e suavidade entre os vocalizes e peças notórias, como a Melodia Sentimental e a Canção do Amor – a qual ela abordou com arrebatadora calidez –, dando relevo à ambivalência da personagem em que a obra originalmente se baseia. Favorecida pela consistência do trabalho da orquestra e pela regência cuidadosa de Victor Hugo Toro, que deu relevo à musicalidade peculiar da obra sem jamais cair no maneirismo, a soprano ofereceu uma interpretação emocionante dos solos da Floresta do Amazonas, demonstrando mais uma vez porque é uma das mais destacadas cantoras brasileiras da atualidade. O público paulistano merece escutá-la por aqui com mais frequência. 

Fotos do concerto: a autora./Fotos do filme: IMDB.

segunda-feira, 10 de junho de 2024

O "Napoleão" de Abel Gance (1927): quando o cinema de vanguarda encontra o mito

Em 1927, quando as iniciativas em escala mais ampla e industrial voltadas ao cinema falado começavam a dar frutos, Abel Gance fez estrear o seu monumental filme silencioso Napoléon vu par Abel Gance, que ficaria mundialmente conhecido como Napoléon. 
O filme é monumental sob todos os aspectos. Vi-o pela primeira vez apenas recentemente, ao longo de alguns dias – a versão da obra restaurada pela bolonhesa Immagine Ritrovata tem uma duração pouco superior a 5 horas e meia, ao longo das quais o pesquisador da história do cinema certamente manterá a respiração suspensa. 
Trata-se de um filme extraordinário. Kevin Brownlow, um dos principais estudiosos do cinema silencioso e homem responsável por ressuscitar esta obra da poeira dos tempos, não diz sem razão que esta é a mais bela obra cinematográfica da história. 
Napoleão surpreende por vários motivos. Embora se estruture à maneira dos filmes seriados veiculados desde a década de 1910, cujos episódios eram exibidos semanal ou quinzenalmente, as quatro partes que o compreendem foram exibidas em sequência no momento de sua estreia, na Ópera de Paris, malgrado a sua longuíssima duração. 
Ademais, a obra não apresenta características comuns à narrativa folhetinesca apresentada à granel. Ao invés de os episódios provocarem a interrupção da ação em seu ponto culminante, como usualmente se dava nos filmes seriados, buscando-se provocar o interesse do público a retornar ao cinema para ver o episódio subsequente, em Napoleão cada parte funciona como um capítulo de um livro de história, apreendendo desde os primeiros anos do menino ao momento em que ele invade a Itália – a ação se interrompe antes de o líder do exército se tornar imperador porque, conta-se, faltou ao diretor a verba para dar continuidade à sua empreitada. 
A visada à história de Napoleão Bonaparte empreendida por Abel Gance tem laivos hagiográficos. Quem surge em cena não é a personagem histórica, mas o mito, que se anuncia de saída, na cena em que o menino da Córsega (Vladimir Roudenko) conduz o seu exército mirim em meio às montanhas de neve do pavilhão do internato onde vivia, patenteando-se ali a honra e a valentia que permeariam a sua existência. E, posteriormente, nos olhos enevoados do menino de oito anos que enxerga pela primeira vez a Ilha de Santa Helena – que viria a ser o seu túmulo –, durante uma aula de história, fica implícita a abnegação do homem que entrega a sua vida a uma causa. 
Napoleão espanta por unir o tradicionalismo no tratamento do tema e a modernidade de sua forma. A infância do menino probo que prenuncia os passos do homem, a desculpa revolucionária dada à invasão francesa aos países do entorno (afinal, Bonaparte apenas estaria sonhando ver o ideário de liberdade espalhado pelas demais monarquias absolutistas), o diapasão conservador a partir do qual a guerra é abordada – como se ela fosse um ato de heroísmo – são erigidos a partir de um conjunto absolutamente estonteante de enquadramentos e técnicas cinematográficas. 
Já a sequência inicial da primeira parte do filme dá a ver esta ambivalência. A cena em que o menino Napoleão conduz o seu exército à vitória é tomada por uma câmera que surpreende pela liberdade – que passeia pelos atores como se fosse feita de pluma. A ótima edição dupla de Napoleão comercializada pela Coleção Obras Primas do Cinema apresenta, como um dos extras, um documentário dirigido por Brownlow, segundo o qual certas técnicas foram inventadas especialmente para este filme. A isso soma-se a originalidade da montagem, que é dialética, antecipando (ou melhor dizendo, servindo de exemplo a) as reflexões de Eiseinstein a respeito do tema. A montagem não esconde os cortes, como fazia o cinema padrão, mas sim dá-lhes relevo. 
A câmera com que Abel Gance cria a hagiografia de Napoleão Bonaparte nunca é apenas descritiva. Ela busca fazer emergir a combustão social contemporânea ao homem, calcando-o na história. Quando criança, Napoleão, nascido em 1769, vivera sob os estertores do absolutismo. Sua juventude (a partir daí o personagem é interpretado por Albert Dieudonné) coincide com a Revolução, de que ele participou como soldado raso – fomentando-a e visionando os seus desdobramentos. Sua ascensão no exército corre em paralelo à ascensão do poderio francês, do qual, segundo o filme, ele é o arquiteto. 
Segundo esta leitura, é a câmera subjetiva que determina os enquadramentos do filme: os travellings, as panorâmicas, os primeiros planos denunciam a tensão presente. Uma tensão que desliza do futuro monarca ao seu séquito, e exemplo claro disso é a cena em que Josefina, já casada com Napoleão, descobre que ele é objeto de adoração da jovenzinha protegida dele, que vive com o casal: o plano de detalhes do altar bruxuleante que a menina erige ao seu adorado no quarto dela, o corte abrupto que flagra Josefina às costas dela, a descobri-lo, e a movimentação da câmera, a denunciar o desespero da menina, patenteiam a tensão ambiente. 
Dentre os enquadramentos originais propostos por Gance há mesmo uma panorâmica feita por três câmeras, que multiplicam o campo visual do espectador, sonhando o Cinemascope, e que discursivamente denotam a amplitude do olhar de Napoleão, que, da França, enxergava o mundo todo. 
Pelo requinte com que aborda a sétima arte, distendendo os seus limites, o Napoleão visto por Abel Gance é um banquete àqueles que se interessam pela arte. E os amantes do cinema silencioso muito devem a Kevin Brownlow, provavelmente o maior entusiasta deste filme, que por anos lutou para recuperá-lo. O documentário que aborda a obra de Gance, sobre o qual falei acima, foi rodado em 1968. Todavia, o interesse do estudioso nesta obra data ao menos de 20 anos antes – numa entrevista que David Robinson me concedeu em 2016, ele contou-me que um conhecido comum apresentou-o ao então jovenzinho, o qual amealhava rolos de Super-8 com trechos desta obra, os quais ele religiosamente assistia em seu quarto escuro, ao invés de aproveitar o verão londrino. 
Hoje o espectador pode assistir a uma versão excelente de Napoleão, restaurada pelo laboratório Immagine Ritrovata, que procura recuperar as suas cores originais – pois, além da escala de cinza, o cinema daqueles tempos também era feito de cores, graças a técnicas como o tingimento e a viragem – e escoimar a imagem dos sinais do tempo, a exemplo dos riscos ocasionados pelo desgaste da película. A versão recebe o igualmente irretocável acompanhamento musical de Carl Davis, monumental como ela, porém, sem abrir mão de alguns laivos de ironia. Talvez possamos considerar que também o filme navega nesta corrente. Porque na disrupção da linguagem cinematográfica que o estrutura se encontra, talvez, uma piscada de olhos questionadora à hagiografia que ele erige. 
*
Rodrigo Vennino, meu querido amigo, amante como eu de cinema – e da história do cinema, muito obrigada por este presente!

quarta-feira, 29 de maio de 2024

Topografia de um delírio – “O Gabinete do Dr. Caligari” no Theatro São Pedro


Crítica publicada em Notas Musicais a 15 maio 2024. 

O filme silencioso de Robert Wiene foi acompanhado pela Orquestra do Theatro São Pedro. 

O Theatro São Pedro vem eventualmente retomando a sua vocação ao cinema – o espaço foi inaugurado em 1917 como um cineteatro – e exibindo filmes silenciosos com acompanhamento musical ao vivo. Viver esta experiência é visitar nostalgicamente as sessões de cinema do passado: entre fins de 1910 e a década de 1920, existia uma variedade de estabelecimentos como o São Pedro, servindo ao público tanto espetáculos teatrais quanto cinematográficos, à medida de suas necessidades, ou ambos os espetáculos, já que, eventualmente, uma curta cena teatral antecedia a exibição de um filme, muitas vezes recuperando a temática da película a ser exibida. 
A experiência não é apenas nostálgica, mas também pedagógica. Acompanhar um desses programas cuidadosamente organizados pelo São Pedro colabora para a compreensão de como se organizavam as sessões de cinema na época em que a música desempenhava um papel capital durante a exibição – na ausência do texto falado, cabia à música dar voz às personagens, daí os grandes investimentos feitos neste âmbito, fazendo com que as orquestras consumissem, neste recorte de tempo de que falamos, grande parte das verbas empregadas na manutenção dos cinemas. A presença de músicos ao vivo na sala de espetáculo explicita outra característica deste cinema cuja produção foi descontinuada há quase um século: o seu hibridismo, a convivência existente entre o material já pronto e aquele gerado no calor da hora, enfim, o seu caráter teatral, já que nenhum espetáculo era igual ao outro. 
A exibição de O Gabinete do Dr. Caligari pelo Theatro São Pedro tem, além disso, uma função histórica inegável, entrando no escopo de esforços realizados a partir de, sobretudo, os anos de 1980, no intuito de se recuperar a espectatorialidade do cinema silencioso. Desta época em diante, além da contratação de compositores para a escrita de acompanhamento orquestral para filmes específicos, pesquisas historiográficas passam a ser desenvolvidas visando a recuperação dos acompanhamentos originalmente escritos para os filmes. 
Em 1920, embora estúdios compusessem partituras para os seus filmes mais relevantes e as comercializassem juntamente deles, as salas de cinema tinham autonomia para decidir a natureza da música que apresentariam, o que levava em consideração, por exemplo, o número de integrantes da orquestra – não era incomum que certos cinemas abrissem mão das partituras disponíveis, deixando ao pianista o papel de improvisador da música que acompanharia determinado filme. 
Das Cabinet des Dr. Caligari é uma obra paradigmática da presença do expressionismo no cinema. É uma obra de vanguarda, que busca romper com o realismo do cinema comercial, fazendo-o não do ponto de vista da construção cinematográfica (ou seja, de enquadramentos ou cortes inusitados, que surpreendam o público), mas sim da cenografia. Deste modo, abre mão da profundidade de campo oriunda da arte renascentista, em prol de cenários pintados que dão destaque às sombras e à deformação. Ao invés da realidade construída pelo cinema clássico, que se quer um recorte objetivo da realidade do mundo, o cinema expressionista procura fazer emergir as almas torturadas dos seus personagens. Não casualmente, esta estética é empregada por Robert Wiene na Alemanha recém-saída da 1ª Grande Guerra, momento em que o hediondo emerge como realidade comezinha.
O Gabinete do Dr. Caligari é também tributário dos estudos de Freud sobre a alma humana, que seriam depois apropriados por artistas mais comerciais ou menos – mesmo Alfred Hitchcock, que se une a Salvador Dali, em Quando fala o coração (Spellbound, 1945), para criar as sequências dos herméticos sonhos do protagonista, os quais, interpretados, desvendariam a autoria do assassinato de que ele era culpado. 
A obra de Wiene narra em flashback, a partir do ponto de vista de um jovem rapaz, a história de um suposto médico insano que exibe o sonâmbulo Cesare numa feira – o exibicionismo de indivíduos atípicos foi algo comum até os primeiros decênios do século XX. Para além da mera exibição, todavia, Caligari (Werner Krauss) instrumentalizava Cesare (Conrad Veidt) para que cometesse uma série de assassinatos nos locais por onde passava. 
A história acompanha o percurso de um jovem para provar às autoridades que o artista de feira era um criminoso. Cronologicamente apresentam-se ao público duas ações vis de Cesare: o assassinato do amigo deste rapaz e o sequestro da moça que ambos amavam. As investigações culminam na fuga de Caligari e na descoberta, pelo jovem, de que o homem usava o sonâmbulo para repetir os experimentos de um certo Caligari que vivera no século XVIII. As buscas levam o jovem ao hospital psiquiátrico do qual ele julgava que o criminoso era interno, ali descobrindo que Caligari se tratava, na verdade, de um médico. 
Ao fim e ao cabo, o homem desprovido de razão não era Caligari, mas sim o jovem que o investiga – o que o público descobre quando a câmera passa a assumir o ponto de vista do médico, que surge em cena sem os traços lúgubres com que fora pintado ao longo de todo o filme, traços que o jovem lhe atribuía. Assim, a cenografia do filme reproduz o olhar que o rapaz voltava ao mundo. O filme não é apenas ousado no que diz respeito à cenografia. Ele o é porque ludibria o espectador, fazendo-o aderir ao ponto de vista do jovem desprovido de razão, já que praticamente toda a história é contada por ele. 
A ação é acompanhada por uma música de cunho melodramático, que procura ressaltar a dramaticidade encenada e dar voz aos sentimentos das personagens. O som incidental também está presente – a exemplo, o soar da sineta com que Caligari convida o público a assistir ao seu espetáculo –, como acontece nos cânones desta música, que se espraia não só para as obras concertantes, mas também para a ópera e para o cinema, como se vê. A finalidade deste acompanhamento musical é realista, não havendo nele espaço para a ironia ou para uma leitura a contrapelo das imagens, que leve o público a questioná-las. 
De acordo com o release do espetáculo publicado no cultura.sp, o acompanhamento faz uso da música originalmente composta para o filme, de autoria de Giuseppe Becce, a qual soma música original do compositor e temas pré-existentes oriundos de Berlioz, Schumman e Wagner (música romântica, como se observa, grosso modo, no cinema desde meados da primeira década de 1900). 
O maestro Marcelo Falcão foi o responsável pelo arranjo da obra musical para a sua execução pela Orquestra do Theatro São Pedro. O resultado foi tão bem-sucedido quanto os melhores acompanhamentos musicais realizados para o cinema silencioso ao redor do mundo (a exemplo das Giornate del Cinema Muto de Pordenone, Itália). Como pesquisadora do tema que sou, só tenho a comemorar esforços como este realizado no Theatro São Pedro, no intuito de novamente dar voz às sombras silenciosas, levando-as ao encontro do público.

Jornada de expiação – “Suor Angelica” no Teatro Castro Mendes


Crítica publicada em Notas Musicais a 14 maio 2024.
A apresentação abriu a temporada 2024 da série “A Caminho do Interior”.
 
Suor Angelica (1918) 
Ópera em ato único 
Música: Giacomo Puccini (1858-1924) 
Libreto: Giovacchino Forzano (1883-1970) 
Teatro Castro Mendes (Campinas-SP), 09 de maio de 2024 
Direção musical: Cinthia Alireti 
Direção cênica: Caio Bichaff 
Cenografia: Luisa Almeida 
Suor Angelica: Mayra Terzian
La Zia Princessa: Nathalia Serrano 
Suor Genovieffa: Isabella Luchi 
Suor Osmina: Suzy Amaral 
La Badessa/La Zelatrice: Rafaela Duria 
Suor Dolcina/La Sorella Infirmiera: Alessandra Wingter 
Prima Sorella Cercatrice: Renata Fausto 
La Maestra delle Novizie/Seconda Sorella Cercatrice: Simone Luiz 
Una Novizia: Cintia Cunha 
Le Converse: Nathielle Rodrigues e Carolina Janson 
Piano, órgão e celesta: Fernando Carrera 
Orquestra Sinfônica da Unicamp 

Na quinta-feira, dia 09 de maio, o público campineiro pôde conferir a primeira de uma série de récitas de Suor Angelica (1918), ópera de Gicacomo Puccini, com libreto de Giovacchino Forzano que percorrerá o interior do estado de São Paulo dentro do projeto outrora denominado A caminho do interior, encabeçado pela Cia. Ópera São Paulo – que apresentou, nos últimos dois anos, respectivamente Paggliaci (música e libreto de Ruggero Leoncavallo, 1892) e Cavalleria Rusticana (música de Pietro Mascagni e libreto de Giovanni Targioni-Tozzetti e Guido Menasci, 1890). 
Essas obras têm como característica comum o fato de serem curtas. Embora isso não signifique que sejam musical e cenicamente fáceis, sua menor duração serve bem ao propósito do projeto, de montar um espetáculo de custo reduzido, permitindo não apenas que jovens cantores tenham espaço de atuação num gênero cujo mercado é ainda bastante restrito, mas também que plateias desacostumadas com espetáculos operísticos possam tomar contato com tais produções, ampliando os seus gostos artísticos. Esta Suor Angelica teve o seu elenco formado por participantes de diversas edições do Concurso Brasileiro de Canto Maria Callas, outra iniciativa importante da Cia. Ópera São Paulo por revelar talentos brasileiros e estrangeiros. 
Volto a repisar uma questão que já discuti ao resenhar O Barbeiro de Sevilha, montado pela Uniopera em abril deste ano: num momento em que artistas são surpreendidos com uma sequência de produções operísticas sendo canceladas de norte a sul do Brasil, é salutar ver um projeto como este ser viabilizado e encontrar o público, que é a razão de ser do teatro. Portanto, de antemão o projeto merece ser congratulado, sobretudo o responsável pela Cia. Ópera São Paulo e diretor geral e artístico deste espetáculo, o incansável Paulo Esper, mas também o Consolato Generale d’Italia em São Paulo e o Istituto Italiano di Cultura San Paolo, responsáveis pelo seu fomento. 
A obra em questão integra o Trittico, conjunto de três óperas em um ato de Puccini estreadas no Metropolitan de Nova York em 1918, e agora representadas muitas vezes separadamente – as demais são Il Tabarro e Gianni Schicchi, esta última uma obra-prima de comédia e a mais encenada das três. 
Suor Angelica se passa num convento nas imediações de Florença em fins do século XVII. O libreto aponta como indicação cênica a existência de uma igrejinha, do claustro e do cemitério. Trata-se, portanto, de um pequeno mundo que subsiste em si mesmo, do qual as internas não precisariam ou poderiam sair. Fabiana Crepaldi faz uma pormenorizada apresentação do enredo em texto que antecede a primeira exibição da ópera, cuja leitura recomendo. Limito-me aqui a trazer os elementos do enredo que colaborem para a leitura que faço da encenação objetivo desta resenha. 
A encenação reduz os elementos cênicos a um painel de Luisa Almeida que ocupa todo o palco ao fundo, representando a arcádia do convento, a partir da qual se advinha o seu interior. No primeiro plano, à esquerda, há a base de uma fonte, e ao fundo, uma escultura de uma mulher assemelhada a uma ninfa, que as internas associam à Virgem Maria – nada mais cabível, dado que o Renascimento italiano, que teve em Florença um dos seus principais palcos, apoiou-se na estética oriunda da Grécia antiga para esculpir estátuas cristãs. Esta imagem será, na porção final do espetáculo, colocada em perpendicular, fazendo com que o espectador divise a criança que está agarrada à ninfa, anunciando-se o vínculo entre Angelica e o filho. 

Mayra Terzian na cena final de Suor Angelica 

A ação se dá na porção esquerda da cena, dado que o restante do palco é ocupado pela orquestra – a exemplo de tantos teatros do interior, o Castro Mendes não tem fosso. Se isso obriga os músicos a dividirem espaço com a cena, limitando-a, dá ao todo uma grande intimidade, além de desvelar ao público o funcionamento da orquestra, noutras palavras, a magia que faz o espetáculo acontecer. Este posicionamento pode prejudicar o elenco, que terá mais dificuldade de enxergar as indicações de entrada dadas pela regente. Isso, felizmente, não se deu na première de Suor Angelica, cantada por um elenco de onze solistas que primaram pela homogeneidade, com alguns destaques. 
No grupo estão postulantes, noviças, irmãs e a abadessa, uma hierarquia religiosa que ocupa das candidatas ao claustro às que se preparam para assumir a identidade de “irmãs” – quando, enfim, adentram efetivamente este mundo, professando votos de pobreza, castidade e obediência. Há entre elas uma melancólica sintonia, denotada desde os suspiros da irmã Genovieffa, cujo singelo desejo é encontrar um filhote de cordeiro e tocar-lhe o focinho frio, até o mal disfarçado sofrimento da irmã Angelica, ante a ausência de contato com a família. 
A música do espetáculo, executada com competência pela Orquestra Sinfônica da Unicamp, sob a regência de Cinthia Alireti, é melodramática, de cunho ilustrativo: os sinos a marcarem os tempos lentos e a solidão, os trêmulos da orquestra fazendo emergir os descompassos dos corações. A visita inesperada da tia elucida ao público os motivos que levam Angelica ao claustro: ela vivera uma paixão escusa e tivera um filho, do qual foi afastada logo após o parto, sete anos antes, após o que é obrigada a se internar naquele convento. As indicações cênicas do libreto da ópera matizam as reações da tia, a testamenteira de Angelica, que procura disfarçar a piedade que tem pela sobrinha, a quem visita com o fim prático de fazer a disposição da herança devido ao casamento da irmã da jovem. A encenação de Caio Bichaff procura criar uma tia puramente calculista, mesmo no momento em que narra a morte do filho de Angelica, apesar de ressaltar todos os cuidados dispensados ao menino ao longo da sua doença. 
Suor Angelica não conseguirá sobreviver à notícia. Conhecedora dos benefícios e malefícios de toda a sorte de ervas, caberá a ela preparar a poção que acabará com a sua vida e, assim, com o seu sofrimento. Ao ato se sucede a tomada de consciência de que o cristianismo fecha as portas do paraíso aos suicidas, o que a impediria de encontrar o filho. A contrição de Angelica fará, no entanto, com que os céus a perdoem. O libreto aponta como indicação cênica uma mutação: o céu escuro torna-se “resplandecente com luz mística”. Surge em cena a “Rainha do conforto” e, diante dela, uma criança loura vestida de branco, que abraçará a mãe moribunda. 
A encenação faz bom uso dos elementos mínimos dos quais dispõe, atingindo alguns resultados admiráveis. Nem todas as freiras vestem hábito, e isto aparentemente independe do seu grau no convento. Se tal escolha dá leveza à cena – Angelica, por exemplo, usa um belo vestido rosado que combina com a atmosfera primaveril –, confunde a leitura do público. Uma delas usa um traje típico de enfermeira, com touca, o que deixa o espaço com a aparência mais de sanatório que de convento. Dentre as jovens há uma que demonstra ter deficiências cognitivas, boa escolha da encenação, uma vez que esses espaços historicamente foram utilizados para a “desova” de mulheres que caminhavam na contracorrente de padrões, a exemplo das mães solteiras e das portadoras de deficiência mental. 

Elenco de Suor Angelica 

Há, no entanto, soluções menos bem-acabadas, que podem ser aprimoradas ao longo da turnê da companhia. Por exemplo, algumas cantoras e atrizes são mais econômicas que outras no uso de maquiagens. Outras usam mesmo esmaltes coloridos nas unhas, o que é incabível aos papéis que desempenham. 
Há, também, um problema de acabamento da encenação que começa na cena em que Angelica prepara o veneno, e perdura até o fim do espetáculo: as demais irmãs continuam no proscênio durante todo o ato, quando, segundo as indicações do libreto, deveriam estar entre o cemitério e a arcádia. Esta opção torna inverossímil a morte de Angelica, pois ela acaba ignorada pelas demais internas enquanto se contorce. 
Por fim, a ausência de efeitos de iluminação no espetáculo prejudicou o tableau final. Não fica claro ao público que um milagre aconteceu, uma vez que a parte dos anjos é entoada pelas irmãs do mesmo lugar onde elas desempenharam o restante da cena, sem que se estabeleça qualquer diferenciação entre umas e outros. É preciso um efeito mínimo de iluminação para que a mutação fique clara aos espectadores. Creio que a verossimilhança do quadro teria sido ressaltada se as demais irmãs se situassem ao fundo da cena durante toda a cena do suicídio e expiação de Angelica, ao invés de estarem junto dela, e dali entoassem o coro dos anjos. 
Houve mais homogeneidade no que diz respeito ao âmbito vocal do espetáculo. Neste critério, trata-se do melhor espetáculo da Cia. Ópera São Paulo a que já assisti. Estamos diante de onze solistas profissionais, mesmo que algumas sejam bastante jovens. 
Destaquem-se Alessandra Wingter, egressa da Academia de Ópera do Theatro São Pedro, que teve um belo desempenho no espetáculo de final de ano da Academia, em dezembro de 2023, ao lado de Bruno de Sá, e que, em Suor Angelica, desempenha dois pequenos papéis, o da Sorella Infermiera e o de Suor Dolcina; Rafaela Duria, prêmio Toriba Musical no Concurso Maria Callas de 2023, segura no papel de La Badessa; Isabella Luchi, soprano que neste ano se destacou como solista na Nona Sinfonia, de Beethoven, no Theatro Municipal de São Paulo, e, também, como vencedora do segundo prêmio feminino no Concurso Maria Callas, encantadora no papel de Suor Genovieffa, pelo brilho do seu timbre e pela delicadeza com que abordou o papel da irmã que, naquele mundo de abnegação, ainda insiste em ter sonhos; e sobretudo Mayra Terzian e Nathalia Serrano, nos papéis de Suor Angelica e da Zia Principessa. 
Serrano, que já frequenta os palcos paulistanos em papéis comprimários e solistas, tem um belo e promissor timbre, e cenicamente esteve bastante bem no papel de uma mulher decênios mais velha que ela – a tia que dará a Angelica a má-nova concernente ao seu filho. O embate de ambas teve força dramática, e imagino que crescerá ao longo da temporada. 
Já Mayra Terzian, a Mamma Lucia da Cavalleria Rusticana encenada pela Cia. Ópera São Paulo no ano passado, demonstrou grande amadurecimento, arrebatando o público como a irmã primeiramente contida e, enfim, sanguínea, ao procurar a morte para ir ao encontro do filho. Além de ter estado segura vocalmente, exibindo nos momentos mais dramáticos uma marcante voz pontuda, Terzian conseguiu criar uma curva dramática para a sua personagem, algo desusado mesmo entre artistas mais experientes. É uma cantora/atriz que merece ser observada com atenção. 

Nathalia Serrano (Zia Principessa) e Mayra Terzian (Suor Angelica) 

Após incursionar por cidades como Americana, Araras e Rio Claro, esta Suor Angelica chegará em São Paulo nos dias 25 e 26 de julho deste ano, seguindo carreira pelo interior até fins de agosto. Convido fortemente o público paulista a prestigiá-la! 

Consulte aqui a programação da série A Caminho do Interior

Foto principal: Victor Lessa/CIDDIC/Unicamp. Demais fotos fornecidas pela soprano Isabella Luchi.

terça-feira, 28 de maio de 2024

“O Barbeiro de Sevilha” em tons lúdicos


Crítica publicada em Notas Musicais a 24 abr. 2024. 

Il Barbiere di Siviglia (O Barbeiro de Sevilha), 1816 
Ópera em dois atos 
Música: Gioachino Rossini (1792-1868) 
Libreto: Cesare Sterbini (1783-1831) 
Base do libreto: Le Barbier de Séville ou La Précaution Inutile, comédia de Pierre-Augustin Caron de Beaumarchais (1732-1799) 
Teatro Bradesco;  21 de abril de 2024 
Direção musical: Luciano Camargo 
Direção cênica: Rodolfo García Vázquez 
Cenografia: Priscila Soares 
Figurinos: Amanda Pilla B. 
Iluminação: Guilherme Bonfanti 
Elenco: 
Figaro: Sebastião Teixeira 
Rosina: Marcela Vidra 
Conde de Almaviva: Rafael Ribeiro 
Dr. Bartolo: Marcio Marangon 
Don Basilio: Flavio Borges 
Berta: Gabriela Bueno 
Fiorello: Ronaldo Mariconi 
Coral da Cidade de São Paulo 
Orquestra Acadêmica de São Paulo 

De 13 a 21 de abril de 2024, o Teatro Bradesco, situado no Shopping Bourbon (Pompeia, São Paulo), foi palco das peripécias do impagável barbeiro de Gioachino Rossini. A ópera-bufa em dois atos Il Barbiere di Siviglia (1816) veio a lume quando o seu compositor não tinha ainda 25 anos. Era jovem, no entanto, prolífico. O Barbeiro de Sevilha foi composto após mais de uma dezena de produções, entre elas Il Signor Bruschino e L’Italiana in Algeri (ambas de 1813). 
Tratava-se, portanto, de obra de um artista já experimentado. O libreto de Cesare Sterbini toma como base a comédia Le Barbier de Séville, do dramaturgo francês Pierre Beaumarchais, oriunda de uma trilogia de textos impagáveis que, compostos nos estertores do regime absolutista francês, já pressentem a aragem da Revolução, daí o protagonismo atribuído ao faz-tudo Figaro, que no século XIX se transformaria em metonímia de barbeiro, tão indissoluvelmente ligados ficaram o personagem e a profissão. 
Na ária em que se apresenta ao público, uma das mais célebres do repertório operístico de todos os tempos, Figaro afirma comandar lâminas e pentes, tesouras e lancetas, barbas e perucas. Ao longo da história, coube ainda aos indivíduos atuantes nesta profissão realizar afazeres variados, como a extração de dentes e a aplicação de sanguessugas, e Leonardo de Miranda Pereira – em A Cidade que Dança: Clubes e bailes negros no Rio de Janeiro (1881-1933), publicado pela Editora da Unicamp em 2021 – destaca a relação que os barbeiros estabeleceram historicamente com ofícios artísticos, como a execução de instrumentos musicais e o canto. Assim, nada mais cabível que o barbeiro de Beaumarchais se transformasse em personagem operístico, o que ocorre não apenas por meio da pena de Rossini, mas também da de Mozart, um par de décadas antes, com a ópera-bufa em quatro atos Le Nozze di Figaro (1786), com libreto de Lorenzo da Ponte. 

Cena da ópera
A ópera concentra-se nos ardis inventados por Figaro para que a jovem Rosina se case com o seu amado, o Conde Almaviva. O Conde apresenta-se à jovem como Lindoro, um pobre rapaz. Ela, no entanto, tem como tutor o Dr. Bartolo, um homem já vivido que pretende, com a ajuda do professor de música da menina, desposá-la por interesse. Para conseguir acessar a residência da mulher que ama, Almaviva (ou Lindoro) precisará da ajuda do barbeiro, que presta serviços à família. O primeiro ato gira em torno dos esforços do apaixonado para entrar na casa de Rosina. Nos moldes da comédia farsesca e da ópera-bufa, será usado o expediente do travestimento. 
Fingindo-se de soldado bêbado, o já fingidor Lindoro (que não se declara um nobre enquanto não tem certeza dos sentimentos da sua amada) requesta com sucesso o amor da mocinha, apesar dos planos arquitetados pelo tutor e pelo professor de música visando atrapalhar o casal. Ao final do ato, Dr. Bartolo denuncia o falso soldado ao batalhão. O Conde Almaviva consegue, no entanto, revelar secretamente a sua identidade ao oficial e escapa. No decurso do segundo ato, observamos um novo esforço de aproximação do Conde, que desta vez se disfarça de professor de música. Novamente junto da amada, e depois de ter confessado a sua verdadeira identidade, ambos combinam de se casar – o que fazem às barbas do Dr. Bartolo, na mesma casa em que ele mantinha Rosina cativa. 
A artesania com que os inúmeros quiproquós são tecidos e, enfim, costurados numa sequência de árias inesquecíveis fazem desta uma obra-prima de ópera-bufa. Célebre desde que foi composta – apenas no Brasil há menções a apresentações de suas árias desde ao menos a década de 1830 (no carioca Jornal do Comércio de 1838 encontrei menção a uma apresentação da ária Cessa di più resistere, ocorrida no Circo Olympico da cidade em 16 de fevereiro de 1838, o que significa que a obra já era conhecida do público) –, O Barbeiro de Sevilha segue vivo no imaginário do público há mais de dois séculos. Justifica-se, portanto, que ela tenha sido escolhida pela Cia. Uniopera para ser encenada. 

Cena da ópera 

O grupo em questão é comandado pela batuta de Luciano Camargo, responsável pela direção musical e regência do espetáculo. Sob os auspícios da Uniopera, estão também o Coral da Cidade de São Paulo e a Orquestra Acadêmica de São Paulo. Este grupo está conseguindo viabilizar os seus espetáculos sem auxílio público, com renda oriunda das bilheterias (segundo Camargo, 100% desta montagem foi financiada deste modo). 
Num momento em que espetáculos operísticos estão sendo cancelados Brasil afora, muitos sob a justificativa de falta de apoio público, tal esforço precisa ser destacado. Sem obviamente demonizar o investimento público em cultura (que é fundamental por inúmeras razões, dentre as quais para permitir que obras mais disruptivas, que não necessariamente podem contar com o retorno financeiro das plateias, venham a lume), o atual contexto sociopolítico, que ao redor do mundo se encontra cada vez mais reacionário (e, portanto, inimigo da cultura), obriga-nos a pensar em estratégias que permitam que a arte brote em detrimento da aridez do solo. 
Do ponto de vista artístico, o Barbeiro que a Uniopera trouxe ao encontro do público teve destacáveis qualidades. A direção cênica de Rodolfo García Vázquez remete a animações infantis, a exemplo de Tainá e os Guardiões da Amazônia, um e outro repletos de tons pastéis rosas, azuis e verdes. No centro da cena, a casinha esboçada em cuja janela apareceu Rosina abre-se ao meio diante das vistas do público, no momento em que Lindoro conhecerá o seu interior. Com graça análoga, à medida da necessidade, descem do teto ou adentram o palco a cadeira do barbeiro ou a fachada da barbearia, bem como as portas que serão batidas pelos personagens, em seu constante entra e sai. 
Cena da ópera


O caráter lúdico da encenação resvala para os figurinos de Amanda Pilla B. e para os cenários de Ana Paula Costa. Os personagens desta montagem são brinquedos nos quais meninas de vestidinhos brancos dão cordas. O jogo de cena do espetáculo procura também remeter a este imaginário, dando ênfase a uma agilidade farsesca que condiz bem com o gênero do espetáculo. Se falta alguma agilidade no jogo de cena das meninas, na abertura do espetáculo, que parece um pouco pálido, na contracorrente da música de Rossini, ela sobra entre os solistas, que demonstraram sinergia, segurando o público ao longo das três horas de espetáculo. 
No dia 21, o papel-título coube a Sebastião Teixeira, e ele mostrou-se bastante à vontade na pele do barbeiro Figaro, sobretudo em suas trocas com Rafael Ribeiro, mais constantes. Este, por sua vez, foi um Conde Almaviva/Lindoro que equilibrou bom humor e doçura. Destaque-se a sua interpretação do dueto do falso professor de música (Pace e gioia sia con voi), que dividiu com Marcio Marangon, um hilário Dr. Bartolo. O viés farsesco resvalou ainda para Flávio Borges, o professor de música Don Basilio. Por fim, Marcela Vidra soube matizar em sua Rosina a paixão e o deboche, demonstrando quão contemporâneas podem ser as heroínas cômicas de Rossini. Destacou-se por sua musicalidade desde o momento em que a sua voz fez-se ouvir pela primeira vez, em Una voce poco fa, quando ela ainda está fora de cena. 
Para além da aplaudível iniciativa de montar um espetáculo operístico nadando na contracorrente da falta de incentivo público, a Uniopera ainda merece aplausos por num só tempo dar espaço para jovens cantores como Marcela e Rafael, e permitir o encontro com a ópera de um público de shopping, não acostumado a este gênero de produção. Que esses esforços sigam recebendo o seu fomento! 

Fotos: Andrea Camargo.