quarta-feira, 11 de junho de 2025

A idílica primavera de Robert Z. Leonard: “Maytime” (“Primavera”, 1937)


Este artigo desdobra o anterior, “Quando o musical de Hollywood encontra a ópera: os filmes de Jeanette MacDonald & Nelson Eddy (1935-1942)”, em que eu procurei fazer um balanço dois oito filmes rodados pelo casal de cantores-atores. Meu intuito primeiro era abrir, ali, um subtópico para a reflexão sobre “Maytime” (“Primavera”, 1937), mas a distância entre o sobrevoo e o mergulho vertical me pareceu pouco orgânica, motivo pelo qual retorno aqui à dupla. 
E volto com um instrumental novo (e de fôlego), já que, desde o último post, a sempre generosa Luciana Araújo enviou-me os textos que o crítico José Lino Grünewald escreveu sobre “Maytime” entre 1963 – momento em que a obra foi reprisada nos cinemas, junto com outras do mesmo gênero – e 1964, recolhidos parcialmente por Ruy Castro no livro Um filme é um filme (2001). 
 Este trabalho obriga-me a um olhar perspectivo que soma, numa mesma medida, lucidez e nostalgia. Por um lado, estou distante 60 anos de Grünewald; período permeado pelo desenvolvimento do Home Video e do digital, que me permitiu adquirir essa obra (e as demais do casal) em meados dos anos 2000 (o copywright da distribuidora Classic Line data de 2006). Mas estou igualmente distante da cinéfila de 20 e poucos anos que o visionou pela primeira vez. Então, o retorno a ele é, também, o retorno àquela jovem e ao encantamento que a obra lhe gerou pela primeira vez. 
“Maytime” é o terceiro filme do casal, e seria um dos quatro que o diretor norte-americano (que nesta película também atua como produtor) Robert Z. Leonard rodaria dele – embora o IMDB também liste Edmund Goulding como seu coautor, apenas o nome de Leonard surge nos créditos iniciais, formado por pétalas de flores rapidamente espalhadas pela correnteza do riacho, ao som do leitmotif “Will You Remember”. 
É um filme miraculoso, que faz uso de toda a parafernália da indústria do cinema para dar o salto inventivo. Como todos os musicais americanos, nele multiplicam-se os cenários faustosos – vertente cinematográfica dos cenários dos espetáculos teatrais cômico-musicados amados pelos públicos daqui e d’além-mar na dobra do século XIX para o XX. E multiplicam-se os inúmeros figurantes, os figurinos sofisticados que visam à recuperação da época do império de Louis Napoléon, ou Napoleão III, que governou a França primeiramente por voto direto e, em seguida, por meio de um golpe de estado, permanecendo no poder de 1851 a 1870. Por fim, os investimentos daquela que era uma das mais poderosas indústrias norte-americanas torna possível o emprego de recursos cinematográficos complexos, que ainda hoje nos deixam sem fôlego, provas patentes da técnica desdobrando-se em arte. 
“Maytime” vale mais pela sua cinematografia que pelo seu enredo. Como Hitchcock, que transformava novelas e contos de suspense medianos em obras-primas, Leonard – vou respeitar os créditos do filme e mencionar apenas ele como o seu diretor – toma um comezinho entrecho melodramático e o transcende. 
O filme conta a história de Marcia Mornay, jovem prima-dona norte-americana aluna do renomado professor Nicolai Nazaroff (John Barrymore) e, no decurso da história, apaixonada pelo estudante de canto lírico Paul Allison, de quem ela abre mão para se casar com o mestre, com o qual já havia se comprometido. Todavia, não consegue esquecê-lo. Anos mais tarde, ambos se reencontram nos Estados Unidos, num mesmo palco, como co-protagonistas; e o amor silenciado emerge aos olhos de todo o público da estreia da ópera que cantariam e de Nicolai, que acaba por matar o jovem. O final da história retoma o seu começo: Marcia, agora a idosa Miss Morrison, reconta o passado a uma aspirante a cantora lírica a qual, como ela, tem a perspectiva de viajar à cidade grande com um professor que nutre por ela um interesse num só tempo artístico e amoroso. 
O entrecho acena à tradição melodramática, ao postular, como porto seguros, os âmbitos do lar e da família – a jovenzinha aconselhada por Marcia tinha um namorado. Todavia, o tradicionalismo do conteúdo caminha na contracorrente da modernidade da forma – a qual consegue mesmo colocá-lo em suspenso, tirar-lhe o ranço, dar-lhe suculência e sabor. “Maytime” é uma dessas obras-primas que a indústria do cinema vez por outra produzia. Num de seus excelentes textos publicado originalmente no Correio da Manhã (RJ), em 7 jan. 1964 (p. 1), denominado “Cinema ou máquina do tempo”, Grünewald chama a atenção para a estrutura dramático-sonora operística desta obra que é oriunda de um musical – com texto de Rida Johnson Young e música de Sigmund Romberg, que alcançou surpreendentes 492 performances, segundo a base de dados da Broadway, em cinco diferentes teatros, entre 1917 e 1918. 
A questão é desdobrada no n. do Jornal de Letras de set. 1964, coligido em Um filme é um filme. Diz o autor que “Maytime” é ópera em três atos e dois quadros, organizados, grosso modo, segundo a seguinte lógica: 1º- a festa da primavera frequentada pela idosa Marcia Mornay (agora Miss Morrison) e seu retorno à juventude, quando ela conquista reconhecimento de público e crítica; 2º- o encontro de Marcia com Paul Allison, um pobre e talentoso cantor lírico conterrâneo seu, a revelação do impossível amor recíproco, durante a festa da primavera; 3º- a passagem de sete anos, a consolidação de Marcia como cantora, o seu reencontro com Paul, num palco operístico onde ambos contracenariam, a renovação, em cena, de seus votos de amor, o assassinato dele pelo marido possessivo de Marcia e, enfim, o retorno ao início da narrativa e o reencontro simbólico dos eternos apaixonados. 
A reflexão de Grünewald sobre isso é elíptica e dialoga com problemas de seu tempo – neste caso, a questão do cinema de autor (essa sequência de textos dele sobre os musicais americanos é contemporânea às antológicas entrevistas que Truffaut fez com Hitchcock). Assim, ele procura destacar a proximidade do filme com a ópera e a sua distância da literatura, o que o tornaria um espetáculo puro. Consequentemente, ele pensa naquilo que transforma o filme em cinema, sobretudo no que concerne ao âmbito da visualidade, o que o faz explorar pouco o ponto de vista musical. Além disso, não podemos passar ao largo do preconceito do crítico com relação ao gênero melodramático – que, mais que literatura, é também um teatro (profundamente musical) –, outro fruto de seu tempo. O exercício de se olhar perspectivamente esses textos densos e realmente apaixonados pelo seu objeto, segundo a nossa óptica contemporânea, é interessante, pois podemos fazer emergir as nossas questões. 
A visada de Grünewald é arguta. Do ponto de vista textual, a narrativa de “Maytime” corresponde à ópera (e também ao teatro melodramático), pois mergulha densamente em recortes temporais específicos, que antecederam a turning points na vida dos personagens, deixando de lado uma narrativa estruturada segundo nexos de causalidade mais claros. Todavia, quando consideramos a conexão afetiva estabelecida pela música, enquanto nos melodramas teatrais a sua presença é pontual (por exemplo, os atos usualmente fechavam-se com tableaux expressivos atravessados por ela), na ópera, que tem a música como sua espinha dorsal, tal conexão potencializa-se. Certamente, a potência do âmbito musical, na ópera, torna tragáveis mesmo enredos insossos e encenações pavorosas. Quando bem apropriada pelo cinema, e serve estruturalmente na concepção das imagens fílmicas – para além da trilha sonora –, a música multiplica a conexão afetiva do público com a obra. 
Grünewald faz longas considerações sobre o âmbito visual, descrevendo em detalhes a festa da primavera que é cerne do filme: as imagens abstratas formadas pelos arcos de flores dos casais dançando, os travellings, as fusões – exacerbação cinematográfica da ciranda emocional dos protagonistas. Efetivamente, a câmera de “Maytime” adquire asas, abre mão do realismo em prol da subjetividade e procura embebedar os nossos sentidos com o embebedamento dos sentidos do par romântico. 
O filme é tão moderno hoje, 88 anos depois de ser rodado, quanto o era com 26 anos de idade, momento em que Grünewald o vê em reprise. Mesmo hoje, com a facilidade dos drones, planos-sequência por ele criados raramente adquirem a profundidade, a visceralidade dos existentes no filme. 
Se na sequência da festa da primavera os usos da câmera atingem o paroxismo – há mesmo uma tomada em plano americano do rosto de Jeanette Macdonald que acompanha o seu deleite no balanço em que ela é empurrada por Nelson Eddy –, a excepcionalidade de seu uso é apanhada desde o início da obra: no plano-sequência que abre a primeira cena relativa à juventude de Marcia, que toma desde o palco do palácio de Napoleão III, desliza longamente pelos casais a dançarem e, após uma curva brusca à esquerda, toma a chegada dos convidados (por onde entrará Marcia, no debut de sua vida social junto à corte francesa) – esses perscrutamentos do geral ao particular abundam no filme, esforço, quiçá, de aproximar o tempo da obra do tempo da experiência (e que traquitana tornava possíveis tais prodígios, deus do céu?). 

Planos-sequência de um lado, e, de outro, potentes sínteses temporais, como aquela que costura os sete anos (número simbólico, associado a períodos de crise, transformação e aprendizado) da vida de Marcia ao lado de Nazaroff, sua ascensão como cantora, costurada musicalmente – pelo seu abraçamento de personagens cada vez mais densos, de Mozart a Wagner – e visualmente – pela presença contumaz da imagem de Paul junto de si, a partir de fusões e duplas exposições que unem as imagens de vias férreas e marítimas e o rosto em close do amado, símbolo da perenidade em meio à agitação vazia da vida dela. 
O filme é pródigo em metáforas visuais, as quais, embaladas pela música, potencializam respostas profundamente afetivas, como aquela do arranjo de flores de laranjeira ao som do leitmotif “Do you remember” – que, na festa da primavera, brotam num close antirrealista, primeiro enlaçadas e depois desenlaçadas, explicitando, num só tempo, o nascimento do amor e a impossibilidade do consórcio do par romântico. 
“Maytime” é repleto de enquadramentos inspirados, novidade para a época, conforme aponta Grünewald, que destaca, por exemplo, a multiplicação dos pontos de vista na cena em que o casal canta os estertores da (fictícia) ópera Czaritza; para além do campo e contra campo entre a plateia e os cantores, há tomadas a partir da coxia, do fundo do palco e das costas dos protagonistas, que registram, além do espetáculo operístico (e do turbilhão emocional vivido pelo casal, mimese daquele experimentado pelas personagens da ópera que representam), as reações de personagens fundamentais à narrativa: o produtor, a dama de companhia de Marcia e o marido dela. 
A novidade/modernidade/perenidade de tais enquadramentos é que eles colocam em questionamento a simetria clássica empregada no cinema, a exemplo da fotografia. Daí o uso de enquadramentos sujos planejados, que fazem emergir a desordem emocional, como o das costas dos protagonistas, na sequência da ópera, ou do duto de gás da sequência em que Marcia despede-se de Paul, depois do almoço na casa dele, em que ambos descobrem suas afinidades, a despeito da impossibilidade de ficarem juntos. 
“Maytime” compendia a gramática cinematográfica consolidada, ao mesmo tempo em que lhe abre novas possibilidades. Exemplo disso é o modo de filmagem dos espetáculos operísticos, que abandona os planos gerais e mergulha neles, dando de ombros à materialidade física do espaço onde eles ocorrem – como fazemos contemporaneamente nos registros desses espetáculos, o que transforma a ópera em cinema. Neste filme em específico, em que musical hollywoodiano e ópera se encontram por excelência, tais enquadramentos servem para traçar uma linha tênue entre a arte e a vida, entrelaçando Marcia e Paul aos personagens operísticos que representam. 
Tal entrelaçamento ocorre com inteligência no plano musical, no uso tanto da música oriunda da obra teatral de Romberg e Johnson Young quanto de óperas ou canções do repertório clássico – as quais inexistem no musical, ao menos a contar pela lista de canções dele compiladas na base de dados da Broadway. Das canções do musical, além de “Will You Remember?”, apenas “Road To Paradise” foi apresentada no filme, para o qual foram também compostas “Vive l'Opera” e “Ham and Eggs” (por Herbert Stothart, com letras de Bob Wright e Chet Forrest). Há no filme, ademais, a introdução de um conjunto bem escolhido de canções tradicionais americanas ou italianas, já impregnadas no imaginário do público, como “Now Is the Month of Maying” (de Thomas Morley, 1595!), “Plantons da Vigne” e “Santa Lucia” (sem crédito) e “Carry Me Back to Old Virginny (de James Alan Bland). 
Enfim, “Maytime” é todo costurado por trechos operísticos e de canções eruditas, os quais, ao mesmo tempo em que demonstram quão distante o roteiro, composto por Noel Langley, estava da peça teatral homônima, denotam que, neste encontro entre o musical e a ópera, os dois gêneros estão alinhados em páreo de igualdade: da canção de coloraturas complicadas “Les filles de Cadix” (de Léo Delibes), à patriótica “Le Régiment de Sambre et Meuse” (de Robert Planquette, sobre poema de Paul Gezano), escrita após a derrota francesa na guerra franco-prussiana – ambas cantadas pela fascinada prima-dona em ascensão na corte de Napoleão III –, à longa cena de apresentação e cavatina do pajem dos “Huguenotes” (de Giacomo Meyerbeer, letra de Eugène Scribe), que Marcia Mornay apresenta no palco da Ópera de Paris, sob o olhar encantado de Paul Allison, aos trechos crescentemente românticos e torturados de Donizetti (“Lucia di Lammermoor”), Gounod (“Faust”) e Richard Wagner (“Tannhäuser” e “Tristan und Isolde), que vemo-la cantar em pout-pourri, à medida em que correm, diante de nossos olhos, sete anos de sua ascensão profissional e distanciamento do homem que amava. 
A presença contundente do gênero operístico no filme coroa-se com o dueto final da ópera “Czaritza”, com texto em francês e música adaptada da Sinfonia n. 5 de Tchaikovsky, criada especialmente para o casal protagonista (o IMDB não informa quem compôs a sua letra, mas, a contar pelos créditos do filme, ela provavelmente ficou a cargo de Wright e Forrest, com adaptação ao francês de Gilles Guilbert, tendo cabido ao diretor e adaptador musical Herbert Stothard a acomodação da música de Tchaikovsky à cena operística). 
Se os trechos musicais populares e eruditos servem ao papel de grande espetáculo do musical hollywoodiano, também contribuem à tessitura dos caracteres e à contação de história, como acontece nas grandes obras do gênero. 

Marcia e Paul amalgamados às flores da primavera
na sequência final do filme
 
Destaque-se fundamentalmente “Will You Remember?”, que atravessa “Maytime”. A sua melodia principia por acompanhar a composição e o esfarelamento dos créditos do filme. A canção retorna num dos turning points dele, cantada, na festa da primavera, como declaração de amor de Paul a Marcia, sob as flores de um Parc de Saint-Cloud reconstruído nos estúdios da Metro. E, enfim, seus acordes são onipresentes nos estertores da obra: embalam, a princípio, a velha Miss Morrison, enquanto ela fita o desabrochar da vida nos albores da primavera; e, enfim, são cantados em dueto no clímax da história, em que uma Marcia eternamente jovem deixa o corpo de uma Miss Morrison morta ou adormecida, e percorre, com Paul, as aleias floridas da cidadezinha suburbana onde ela resolveu viver os últimos dias de sua vida. 
A cinematografia e a trilha sonora somam-se à escalação acertada do elenco e à qualidade das interpretações, dos coadjuvantes aos principais. O sanguíneo Herman Bing é um divertido e cálido August Archipenko, professor e, depois, empresário de Paul Allisson. Os physiques de Tom Brown e Lynne Carver cabem bem aos jovens pueris que representam, tecendo uma possível imagem de como seriam Marcia e Paul antes de ela ter se envolvido com Nazaroff e selado o seu destino. Rafaela Ottiano dosa sisudez e calor na construção da personagem de Ellen, a dama de companhia que compartilha uma vida com Marcia. Por fim, dentre os coadjuvantes, o lendário John Barrymore, que ascendeu em grande estilo ao cinema depois de se consolidar nos palcos como intérprete de papéis shakespearianos, é um perfeito Nicolai Nazaroff, de gestos contidos e olhares impermeáveis. 
Jeanette MacDonald/Marcia Mornay
no crepúsculo da vida
Além de química, Jeanette MacDonald e Nelson Eddy provam-se, em “Maytime”, intérpretes sólidos. A crítica contemporânea não erra ao dizer que ele reage à presença dela, mais que efetivamente atua – é um passional e enlevado Paul Alisson, o perfeito galã romanesco. Jeanette MacDonald é o cerne do filme, já que é a sua história, e o que a atravessa, que centraliza a narrativa. Quanto a analisamos a contrapelo de outras performances femininas da época, percebemos que seu trabalho é verdadeiramente excepcional, e surpreende o fato de ela não ter sido indicada a nenhum prêmio importante por ele. Jeanette consegue, de forma emocionante e inesquecível, com seu corpo e voz (e a variação filigranada de seu timbre), construir a curva dramática que a história demanda à sua personagem: da garota que descobre o mundo, cheia de luz e sonhos; à mulher macerada pela tristeza, malgrado a sua ascensão profissional; e, enfim, à senhora de voz ligeiramente rouca e olhos melancólicos que prontamente se iluminam quando ela se lembra daquela primavera que havia durado uma vida inteira, como rezam os versos da maravilhosa canção “Do you remember”: “Though our paths may sever/ Through life’s last faint embers, will you remember, springtime, lovetime, May”.
“Maytime” é uma dessas maravilhas que nos lembram para que serve o cinema. Ele é “máquina do tempo”, como lindamente coloca Grünewald, por permitir que a conjuntura existencial de dado momento seja novamente sentida, devido à “permanência de um temperamento” que as imagens filtram e cristalizam. E, pelo poder de perscrutação, síntese e de distensão do tempo que tem o cinema, ele é máquina de sonhos, mergulhando-nos nos corações e nas mentes de seres feitos de sombras – tão contemporâneos, nossos e nós, malgrado quase um século nos separe deles.


terça-feira, 27 de maio de 2025

Quando o musical de Hollywood encontra a ópera: os filmes de Jeanette MacDonald & Nelson Eddy (1935-1942)


O musical cinematográfico norte-americano emergiu praticamente com a ascensão do cinema falado em versão industrial. Nos anos da depressão econômica que se seguiu à quebra da bolsa de NY, em 1929, eles – e a magia que forneciam – serviram de alento a uma população extensivamente empobrecida. “A Rosa Púrpura do Cairo” (Woody Allen, 1985) ficcionaliza a este respeito de forma deslumbrante. A obra aborda a história de Cecília, a jovem pobre de uma cidadezinha interiorana que, casada com um brutamontes que a tiraniza, tem o seu imaginário preenchido pelas histórias de amor saídas da “capital do cinema” – sobretudo aquelas protagonizadas por Freddy Astaire e Ginger Rogers, o mais célebre entre os pares românticos produzidos nos anos 30. Sobre eles eu escrevi um texto cheio de afeto nos primórdios deste blog, 15 anos, uma vida atrás
Outro desses casais célebres é o assunto que hoje ressuscita o blog, parado há seis meses: Jeanette MacDonald & Nelson Eddy, menos lembrados que Astaire e Rogers, mas celebérrimos nas décadas de 30 e 40, quando protagonizaram oito musicais da MGM. Como os colegas da RKO Radio Pictures, MacDonald e Eddy ajudaram a dar forma ao musical de Hollywood – no caso deles, misturando a música popular e a clássica, já que ambos eram cantores líricos. É simbólico retomar o blog com esse tema, pois costuro, aqui, os meus amores da juventude e os contemporâneos. 
Quando o casal contracenou pela primeira vez, em “Naughty Marietta” (“Oh, Marietta!” (1935, dir. Robert Z. Leonard e W. S. Van Dyke), a soprano e atriz Jeanette MacDonald (1903-1965) já era uma estrela. Após 10 anos atuando na Broadway, nos coros, em jump-ins e em esporádicos papéis de destaque, a artista finalmente ascendeu a protagonista em 1929, momento em que chamou a atenção de Ernst Lubitsch, que preparava o seu primeiro filme falado. “The Love Parade” (Alvorada do Amor, 1929), em que ela contracena com o galã francês Maurice Chevalier, se transforma num exemplo bem sucedido de filme cantante, concorrendo mesmo ao Oscar. 
A parceria de MacDonald e Lubitsch seria repetida ainda em “An hour with you” (“Uma hora contigo”, 1932) e em “The Merry Widow” (“A viúva alegre”, 1934), nos quais ela também contracenou com Maurice Chevalier (com quem ainda faria “Love me tonight/Ama-me esta noite”, de Rouben Mamoulian, 1932). Para além das bilheterias, essas obras fomentaram as gravações de singles de um punhado de músicas de sucesso, a exemplo de “Dream Lover” (de Victor Schertzinger e Clifford Grey, de “The Love Parade”), “Love me Tonight” (Richard Rodgers e Lorenz Hart, de “Love me tonight”) e “Vilia” (Franz Lehár, Lorenz Hart, de “The Merry Widow”, 1934). 
Em Maytime

Já Nelson Eddy (1901-1967) atravessou a primeira metade dos anos de 1920 atuando concomitantemente como barítono (a inclinação ao canto lírico nasceu ainda na infância, em coros de igreja) e jornalista. Acabou abandonando a segunda carreira em prol da primeira, quando, depois de vencer um concurso, ingressou numa companhia operística da Filadélfia, o que lhe permitiu construir um amplo repertório, em que estavam inclusas óperas de Mozart, Verdi e Puccini. No início dos anos de 1930, cantou mesmo no Carnegie Hall, regido por Ottorino Respighi. Contudo, a guinada em sua carreira se daria em 1933, quando às pressas substituiu exitosamente a soprano alemã Lotte Lehmann num concerto em Los Angeles. Após inúmeras pontas em filmes da MGM, estúdio com quem assinou contrato em 1933, foi alçado a co-protagonista de Jeanette MacDonald no supramencionado “Naughty Marieta”. 
A química inequívoca da dupla (o longevo blog https://maceddy.com/ dedica rios de tinta ao romance on e offscreen do casal, então, convido os curiosos a acessarem-no, pois vou me abster das fofocas de bastidores), par a par com a sua beleza clássica e o seu talento como cantores-atores, transformam a obra num sucesso não apenas cinematográfico, mas também discográfico. A obra foi alçada a melhor filme do ano de 1935 pela revista Photoplay, concorreu ao Oscar de melhor filme no ano subsequente, e a canção “Ah! Sweet mystery of life” (Victor Herbert, Rida Johnson Young), entoada pela dupla, alcançou vendas expressivas. MacDonald e Eddy tornam-se, então, The American Sweethearts
“Naughty Marietta” lança as balizas que seriam geralmente seguidas nos filmes da dupla. A obra baseia-se no musical homônimo de Victor Herbert, com letra de Rida Johnson Young, estreado na Broadway em 1910. Repercute, portanto, músicas que já eram notórias do público, senão pela assistência in loco do espetáculo, por sua escuta nas rádios. A transformação do musical nova-iorquino em filme, bem como a disseminação dessas canções em discos e no rádio retroalimentam a nascente cultura de massas. Ademais, os filmes protagonizando o casal adotam fielmente a fórmula da Hollywood clássica (especialmente em suas décadas iniciais), de associar pessoa e personagem, fazendo com que os artistas apresentassem ad nauseam tipos previamente definidos, que já haviam motivado o engajamento do público. 
Para isso colabora a repetição dos corpos artísticos dessas produções. W. S. Van Dyke, por exemplo, diretor bastante experimentado no campo tanto da comédia quanto do drama histórico (dirigiu a série cômica do Tin Man, protagonizada por William Powell e Myrna Loy, e os dramas “Maria Antonieta/Marie Antoinette”, com Norma Shearer e Tyrone Power, 1938, e “San Francisco”, de 1937, com Jeanette MacDonald e Clark Gable), também dirigiu Macdonald e Eddy em “Rose Marie” (1936), “Sweethearts (Canção de Amor, 1938), New Moon (Lua Nova, 1940) e, finalmente, em I Married an Angel (Casei-me com um anjo, 1942). Já Robert Z. Leonard, co-diretor de “Naughty Marieta” e de “New Moon”, dirige também “Maytime” (Primavera, 1937) e “The girl of the Golden West” (A princesa do Eldorado, 1938). 
Ao contrário dos musicais de Rogers e Astaire, que se passam na contemporaneidade – ainda que claramente falseada –, aqueles protagonizados por MacDonald e Eddy recuam até períodos anteriores ao século XX, aproveitando-se das habilidades dos diretores no melodrama histórico – gênero então amado pelo público no âmbito folhetinesco, teatral e cinematográfico. 
Assim, essas obras tematizam a França pré-revolucionária (como, além de “Naughty Marieta”, “New Moon”), o período do império de Louis Napoléon (como “Maytime”), a Londres elisabetana (“Divino Tormento/Bitter Sweet”, 1940) ou a época da penetração no meio oeste americano (“The girl of the Golden West”). Em todas, o desnível social entre a dupla é objeto de tensão – ela é uma princesa, aristocrata ou prima-dona, enquanto ele é pobre, seja policial, mercenário, aspirante a cantor ou bandoleiro. Consequentemente, a democrática ultrapassagem do status quo torna-se o mote dessas obras. 
Se há algum espaço para crítica social nos filmes de MacDonald e Eddy, ela recua no tempo. Criticam-se, no caso de “Naughty Marietta”, os desmandos da monarquia absolutista francesa, que obrigam a princesa prometida a um velho nobre à fuga aos Estados Unidos, terra da promissão, e o seu encontro com o oficial mercenário por quem ela se apaixonará. Os musicais da dupla seguem a tradição do gênero. Não apontam o dedo às mazelas sociais contemporâneas. Apostam, antes, na defesa do self-made man. Isso se dá mesmo no caso de “New Moon”, já que, embora a personagem de Eddy seja originalmente um duque francês (libertário, perseguido pela monarquia), ele precisa se travestir de escravo e serviçal para merecer sua ascensão numa nova ordem social democrática – fundada numa ilha remota ao mesmo tempo em que a França vivia a Revolução. Todavia, vários desses filmes não deixam de se aliar a um patriotismo rasteiro, já que os EUA estavam mergulhados na 2ª Guerra Mundial, e Hollywood se alinhou às hostes belicistas. 
Se “New Moon” aborda a questão de forma implícita (nele fazem-se ouvir os acordes de La Marseillase”, hino da Revolução), “Sweethearts” o faz mais explicitamente. Trata-se de uma das três obras do casal que se passam na contemporaneidade – as outras são “Rose Marie”, história da prima-dona canadense que se embrenha pelas matas do país em busca do irmão – um já ótimo James Stewart anterior ao estrelato – em fuga da polícia, e se apaixona pelo sargento da guarda montada que é escalado para procurar o rapaz; e “I married an angel”, conto (com interessantes laivos surrealistas e psicanalíticos) da secretária apaixonada que reforma o conde estroina, herdeiro do banco onde ela trabalha. 
Filmada em Technicolor, o que dá a dimensão da relevância da dupla na Hollywood clássica, “Sweethearts” pespega no público um conjunto de canções patrióticas entoadas pelo par romântico nas rádios nova-iorquinas. Filmes como este motivavam a venda de bônus de guerra. No entanto, o discurso patriótico não abandona a visada ao lucro. Fiel à fórmula adotada com sucesso por Hollywood, a trama faz referência ao epíteto e à relação amorosa tumultuosa vivida pelo casal protagonista, seja no título, seja no enredo (narra-se a história fictícia de um casal notório da Broadway que é seduzido por Hollywood no momento em que comemora seis anos de seu casamento e da estreia seu bem-sucedido musical). 
Outra questão importante nesses filmes é a autorreflexão da indústria do cinema sobre o seu lugar na cultura mundial. Daí ao diálogo que eles estabelecem entre o musical da Broadway e a ópera. Nos primórdios deste blog, abordei os musicais de Judy Garland e Mickey Rooney, que então me interessavam pelo esforço de defesa do musical norte-americano que eles encenavam – esforço simbólico do (desejado) deslocamento do eixo da produção artística da Europa para os Estados Unidos. 
Já os filmes de Jeanette MacDonald e Nelson Eddy aproveitam o treinamento prévio da dupla no canto lírico – Eddy era, como vimos, cantor de ópera, enquanto MacDonald se dedicaria posteriormente a essas produções –, fazendo-os cantar tanto os números musicais conhecidos pelo público mainstream quanto os operísticos apreciados pelo público mais cultivado, o que procurava elevar a estatura dessas obras. Assim, filtros do tempo que são, esses filmes permitem-nos conhecer os cânones da ópera de 90 anos atrás. 
O repertório abordado pela dupla é extenso e não tenho a intenção, aqui, de ser exaustiva. The girl of the golden West aborda o gênero de forma enviesada, já que adapta cinematograficamente a peça teatral utilizada por Giacomo Puccini para a criação de sua La Fanciulla del West” (a peça, de autoria de David Belasco, estreou em 1905, enquanto a obra do compositor italiano data de 1910). Se numa obra como “New Moon” essa presença é episódica – nela, MacDonald canta “Ombra Mai Fú” (da ópera “Xerxes”, de Georg Friedrich Händel, 1738) –, nos filmes centrados no mundo da ópera ela é contundente. 
Em “Rose Marie”, duas sequências operísticas são determinantes para a construção da curva dramática da personagem da mocinha. Na (longa) inicial, aborda-se a ópera “Romeu e Julieta”, de Charles Gounod (1867), desde a notória ária “Je veux vivre” até a morte do par romântico. Já nos estertores do filme, a personagem feminina, após se ver obrigada a deixar o homem que ama, é uma errática Tosca (da obra homônima de Giacomo Puccini, 1900) na sequência que tematiza a morte de Cavaradossi e o suicídio da protagonista. E, finalmente, o âmbito operístico é fundamental na obra-prima “Maytime” – chegando o seu diretor mesmo a compor uma longa sequência final de uma ópera romântica protagonizada por soprano e barítono, um unicórnio na grafia operística, para que o casal pudesse cantá-la. 
Vistos em conjunto, os filmes protagonizados por MacDonald e Eddy nos apresentam um microcosmo da Hollywood dos anos dourados. Assisti-los é, portanto, pedagógico para que apreendamos o que a indústria do cinema então defendia. Se valores arrevesados e preconceitos os mais variados obviamente emergem do conjunto - dado que tais filmes estão ao menos 80 anos distantes de nós -, eles se sustentam pelo talento do casal protagonista e pela artesania cinematográfica, questões que pretendo discutir oportunamente ao abordar “Maytime”, obra que merece um artigo à parte.

segunda-feira, 25 de novembro de 2024

Rusalka no Rio de Janeiro: suavidade e sanha num espetáculo excepcional


Em 1901, Antonín Dvořák dá à luz um lúgubre conto de fadas, Rusalka. O libreto, de autoria de Jaroslav Kvapil, dialoga sobretudo com The Little Mermaid, de Hans Christian Andersen, e Undine, de Friedrich de la Motte Fouqué, escritos nas primeiras décadas de 1800. A história do enlace impossível entre uma criatura aquática e um homem poreja um ceticismo tributário desse início do século XIX. Se tais entes, oriundos das mitologias germânica e escandinava, seguiram vívidos na cultura ocidental (aproveitados por homens como, por exemplo, Richard Wagner e Maurice Maeterlinck), o desenvolvimento técnico galopante que ocorreria até fins do século XIX desmantelaria qualquer idealismo; o desejo de união dos opostos permaneceria irrealizável. 
Antes de Rusalka, mesmo uma dupla de artistas brasileiros tomaria o arquétipo em suas mãos. Coelho Netto (libretista) e Delgado de Carvalho (compositor) criam, em 1898, a “balada em 1 ato em prosa rítmica” Hóstia, na qual é um ondino que se apaixona por uma mortal, ameaçando destruir o vilarejo onde ela mora caso não seja correspondido. Da mitologia nórdica, Coelho Netto depreende a figura fluida da ondina/ninfa, entidade aquática que atrai os viajantes e os faz morrer afogados. Imagina uma cerimônia propiciatória na qual Selma, pastora loura de olhos claros, é conduzida por sacerdotisas de seu povoado até o ondino que deseja desposá-la. Embora ela seja salva pelo namorado logo após submergir, a criatura cumpre o prometido e destrói o povoado onde o casal vivia. 
Rusalka é antes apaixonada que cruel, embora os seus desejos também se revelem mortíferos. Encantada por um príncipe que sempre se banha no lago onde ela habita, a ninfa pede à bruxa Jezibaba que a transforme em mulher para gozar das carícias dele. Jezibaba atende o seu desejo, porém, o fascínio que marca o encontro do casal dura pouco – o príncipe desencanta-se de Rusalka tão logo ela chega em seu reinado tão terreno, tão pragmático. 
Ele precisa de uma princesa que seja também uma mulher do mundo, para entreter os seus convidados em seus domínios que nada devem a um Estado moderno – porém, ela, embora seja linda, é demasiado etérea e, além de tudo, muda, pois a bruxa, como contrapartida para a realização do feitiço, retira-lhe a voz. Trocada por outra, Rusalka volta ao encontro dos seus. No entanto, este retorno é a perdição dela e do seu amado. Embora ele a siga arrependido, acabará por perecer nos braços dela, prova de que qualquer felicidade eterna inexiste. 
Influenciados por arquétipos imemoriais já ressignificados ao longo do século XIX, Dvořák e Kvapil inventam um mundo mágico atravessado por questões concernentes à aurora do século XX, às quais o diretor cênico André Heller-Lopes adiciona questões próprias do nosso tempo. Com a colaboração do cenógrafo Renato Theobaldo, do iluminador Gonzalo Córdoba e do figurinista Marcelo Marques, cria uma dicotomia entre o reino da fantasia e a realidade crua. 
No primeiro e no terceiro atos da obra, o palco repercute a sua função empírica de palco, o que dá ao espetáculo um potente teor metalinguístico. Ao fundo dele instalou-se um telão em formato de “V”. Um conjunto de cadeiras e estantes de partituras, ao centro e ao fundo, e um pódio, diante deles, denotam que naquele espaço se apresentará uma orquestra. Em toda a extensão do fundo há um tablado para o desfile das personagens. No proscênio à esquerda há um piano. Enquanto Rusalka (Ludmilla Bauerfeldt) desliza suave entre o tablado e as cadeiras, Jezibaba (Denise de Freitas) entra severa em cena, com a batuta nas mãos e a partitura debaixo do braço. Ao longo desta leitura de Rusalka, veremos que ela é a regente da vida da protagonista, autora do seu principal desejo, o de ser humana, e também de sua queda - tanto que, nos estertores do terceiro ato, é ela que regerá, irônica, os acordes finais da ópera e da vida da ninfa, que perece junto daquele que ama. 
A Rusalka carioca foi um espetáculo de altíssimo nível, que demonstra a qualidade tanto das equipes artísticas quanto dos cantores líricos nacionais. O coro e a Orquestra Sinfônica do Theatro Municipal do Rio de Janeiro estiveram sob a ótima batuta de Luiz Fernando Malheiro. Encenação, iluminação e figurinos operaram em simbiose. O trabalho de Theobaldo somou imagens veristas de ambientes externos, como o fundo do mar, paisagens marítimas e picos rochosos, e itens cênicos próprios de espaços fechados, como teatro ou nightclubs, fazendo conviver a natureza e o artifício; o espaço da imaginação e o da realidade. A iluminação de Gonzalo Córdoba, eivada de brancos, vermelhos e roxos, transforma esse espaço dicotômico num espaço onírico, que a realidade insiste em atravessar e macular. 
O figurino de Marcelo Marques cria uma Rusalka entre humana e sobre-humana – metáfora que tão bem define a artista que a representou. O vestido azul do primeiro ato – fluido, porém comezinho, recuperando a dimensão cotidiana da cantora que ensaia o espetáculo que vai apresentar, é substituído, no segundo ato, por um vestido branco de princesa da Disney, quando ela imagina que realizará o seu sonho dourado ao lado do príncipe encantado; e, enfim, por um vestido acinzentado feito de retalhos, fechado, na parte traseira, por uma espinha de peixe que se sobrepõe à coluna vertebral da artista, recuperando o lugar de criatura metamórfica da personagem, num só tempo terrena e divina. 
A qualidade do trabalho de Marques se estende a outras personagens do espetáculo, como o príncipe – entre a armadura medieval que recupera o seu lugar de personagem de fábula e o terno que lhe dá uma dimensão de político moderno. E também de Jezibaba, que, se no primeiro ato, surge envergando um fraque de maestra – sublinhando a dimensão de orquestradora da vida da ninfa –, no terceiro usa um exuberante vestido negro cujos braços são cobertos por andrajos, e, na cabeça, cabelos de Medusa e uma coroa de pedras; figurino que lhe dá um éthos, num só tempo, de criatura das trevas e de rainha. 
Ótimo encenador, Heller Lopes dirige à excelência o seu elenco de ótimos cantores. Sua tríade de ninfas, composta por Carolina Morel, Mariana Gomes e Lara Cavalcanti, timbrou bastante bem e exacerbou, em cena, a fluidez das personagens. Geilson Santos e Hebert Campos realizaram bem-sucedidas (e humoradas) intervenções como Vaňku e Jářku.
O barítono Licio Bruno, num grande momento de sua carreira, foi um Vodnik – o senhor das águas e pai/protetor de Rusalka – ao mesmo tempo temerário e terno, em seu esforço de dissuadir a ninfa de seu sonho de se tornar humana e de protegê-la quando ela retorna ao lago e vê-se diante do castigo de Jezibaba. 
O tenor Giovanni Tristacci deu corpo a um príncipe cuja assertividade foi permeada pela timidez, algo esperado, não apenas do ponto de vista cênico, já que era um humano apaixonado por uma deidade, mas também porque contracenou com a soprano Eliane Coelho (deliciosa em cena), no papel da Princesa Estrangeira, artista que é uma entidade dos palcos mundiais há cinco décadas. 
A mezzo-soprano Denise de Freitas exacerbou o sadismo da personagem de Jezibaba – que, nas mãos de artista menos experimentada, poderia se transformar numa bruxa caricata. A personagem é nada menos que a artífice da queda de Rusalka - mesmo depois de espoliá-la de todos os seus bens materiais, rouba-lhe a voz, algo ainda mais cruel se entendermos que, sob a ótica da encenação, Rusalka não é apenas uma ninfa, mas literalmente uma cantora de ópera. O sadismo de Jezibaba é atravessado por um bem-vindo deboche, quando ela prepara a poção que engendrará o infortúnio da pobre ninfa, o que lhe tira do lugar de personagem plana. Além de impregnar dramaticamente a sua personagem de psicologismo, a artista é uma cantora de tirar o fôlego, dominando com maestria os trânsitos loucos da partitura entre os graves e os agudos. 
Uma contraparte à sua altura foi Ludmilla Bauerfeldt - que apenas ao caminhar pela cena já me tira lágrimas dos olhos. Ludmilla realizou um trabalho cênico de qualidade superlativa. Seja o seu longo e dificultoso contorcimento enquanto, no terceiro ato do espetáculo, cantava o seu infortúnio, observada por Jezibaba, seja o seu empalidecer – sim, porque ela literalmente empalideceu – ao tentar separar o amado príncipe de sua rival, no segundo ato. E vocalmente, Ludmilla construiu uma Russalka brilhante, repleta de agudos cristalinos. 
Ludmilla e Denise, ademais, realizaram trocas cênicas excelentes. O gênero operístico requer tanto domínio técnico do canto quanto conhecimento de teatro, como bem sabemos. Nessa Rusalka, as duas artistas estiveram todo o tempo “em situação”, como se diz no jargão teatral, brindando-nos com teatro de grande qualidade – destaque-se o momento em que Jezibaba pede à ninfa a morte do príncipe, e ambas encetam uma luta física e vocal em que alternam o protagonismo. Que prazer vê-las contracenando. Quiçá isso possa acontecer outras vezes!

quarta-feira, 6 de novembro de 2024

Um hino à liberdade: "Nabucco" (Giuseppe Verdi) em BH


Entre os dias 17 e 23 de outubro, o Palácio das Artes de Belo Horizonte reencenou, depois de 13 anos, a montagem de Nabucco (1842) idealizada por André Heller-Lopes, com cenografia de Renato Theobaldo. A obra de Giuseppe Verdi, com libreto de Temistocle Solera, é conhecida sobretudo por “Va, pensiero, sull’ali dorate”, quiçá o número coralista mais afamado de todos os tempos, repetido em todas as galas do gênero. 
Baseada no (melo)drama em quatro atos Nebuchodonoser (1836), de Auguste Anicet-Bourgeois e Francis Cornu, a obra operística faz emergir as características mais indeléveis deste gênero teatral: o traçado plano das personagens, que exibem à flor da pele as suas qualidades e os seus defeitos, e a dicotomização da trama, que se transforma numa luta do bem contra o mal, dos judeus contra os assírios –, mais especificamente, dos cristãos contra os não-cristãos. 
O gênero melodramático restitui à população francesa, no interior da cena teatral, o âmbito da religião, contestada durante a Revolução (quando muitos templos foram postos abaixo). A visada é conservadora, aproximando-se as personagens boas do ideário do cristianismo e vice-versa. Vertida para o gênero operístico, Nabucco, além de servir a já religiosa sociedade italiana, ganha um aspecto simbólico: 
Produzida durante o processo de unificação italiana, quando ainda inexistia o país que conhecemos hoje, e a Itália, em sentido lato, enfrentava o domínio austríaco, a obra torna-se um libelo à liberdade, entoado de forma contumaz no referido coro, no qual os hebreus escravizados dão asas aos pensamentos, já que seus corpos jazem submetidos ao jugo assírio: “Vá, pensamento, sobre as asas douradas/Vá, e pousa sobre as encostas e as colinas/Onde os ares são tépidos e macios/Com a doce fragrância do solo Natal!”. 
Embora construídas em contextos históricos específicos, as obras de arte se abrem a leituras múltiplas à medida que atravessam tempos e espaços. O gênero teatral, afetado pelas reflexões do pós-moderno e do pós-dramático, e o operístico, pelo Regietheater, quando tomam a peito a encenação de uma obra clássica, não raro intervêm nela até tornarem-na irreconhecível; pretendendo, assim, eliminar a carga de preconceito que nela veem – leitura anacrônica, que rejeita o fato de essas obras terem sido produzidas num tempo específico, e, portanto, trazerem impregnadas marcas desse tempo. A montagem de Nabucco capitaneada por André Heller-Lopes caminha a contrapelo disso, e é isso, suponho, que a torna tão bem-sucedida. 
Ao invés de bater de frente com a dicotomia colocada pelo libreto, desconstruindo-a e, portanto, desmontando a estrutura que põe a ópera em pé, o sempre competente Heller-Lopes, em consonância com o magistral Theobaldo, os belos figurinos de Marcelo Marques e a eficiente luz de Fábio Retti, resolve situá-la historicamente. Além de dar fluência ao âmbito musical, isso favorece a legibilidade do enredo intrincado por parte do público. 
Jerusalém, e depois a Assíria, são construídos por grandes e maleáveis molduras verticais revestidas por canudos de papelão que, amoldados, dão a ver, à medida que são manipulados, as silhuetas das divindades. Os fiéis cristãos e o exército de Nabuco, que em breve invadirá o templo, são claramente discerníveis. Os primeiros trazem kipás à cabeça e talits nos ombros – ambos os acessórios representam o respeito a Deus, e o segundo é usado como cobertura durante as preces. 
A representação da fé exacerba o desrespeito de Nabuco, que invade o templo montado num cavalo dourado – signo, de resto, da sua megalomania, como o bezerro dourado que será destruído quando o rei da Assíria põe fim à sua sanha, no desfecho da história. Temos aqui um manejo inteligente dos signos, que além de conseguirem avançar a história, dialogando com o repertório cultural, ainda chancelam a inteligência do público, permitindo que ele construa a sua interpretação sobre o que vê. 
Isso não significa ausência de liberdade interpretativa. A encenação impregna as personagens – sobretudo as femininas – de densidade psicológica. Por exemplo, no momento em que Nabuco é tocado pela loucura, punição divina pela sua arrogância, atravessam os olhos de Fenena (Denise de Freitas), a sua filha legítima e a “mocinha” da história, um brilho ganancioso semelhante àquele que tem a sua irmã ilegítima Abigaille (Eiko Senda), a “vilã”. A sede de poder toca a todos. Também Abigaille ganha curva dramática, da ira, quando descobre que seu amado Ismaele ama a sua irmã, à tristeza, quando narra seus sonhos de felicidade ao lado dele, ao seu aparecimento derradeiro, moribunda diante do bezerro de ouro destruído. 
E mesmo Nabuco (Rodrigo Esteves), que migra do desejo cego de conquista – o tronco ereto com que invade o templo judaico – até o total despojamento de si, e, enfim, à tomada de consciência de sua sanha. Esse jogo de cena resulta de um trabalho de excelência do diretor cênico e da inteligência do elenco. Heller-Lopes conseguiu rendimento dramático também do Coral Lírico de Minas Gerais, que se mostrou circunspecto, belicoso e melancólico nos momentos certos. Enfim, estivemos, em BH, diante de teatro de verdade, que abordou com profundidade as relações humanas. 
Dirigido por Hernán Sánchez Arteaga, o coro realizou um belo trabalho. Timbrou admiravelmente no famigerado “Va, pensiero, sull’ali dorate”, cena, ademais, inesquecível, em que o grupo, sob o cárcere assírio, mimetizou fisicamente o movimento de seu pensamento, escalando as grades que o prendiam em terreno inimigo. Porém, igualmente amalgamou-se bem aos solistas, num número como o “Viva Nabucco!”, no final do primeiro ato, extremamente bem realizado também devido à regência segura de Ligia Amadio, a quem coube a direção musical da produção. 
Os papéis protagonistas couberam a alguns dos mais respeitados artistas do cenário lírico brasileiro. 
A soprano Fabíola Protzer, no pequeno papel de Anna, irmã do sumo sacerdote judaico Zaccaria, exibiu um belo timbre e também correspondeu, no aspecto cênico, às exigências do diretor. O papel do sacerdote coube a Sávio Sperandio, que já havia realizado, no mês anterior, um ótimo trabalho na produção paulistana da obra. Com seu timbre potente e sua dramaticidade sempre colocada a serviço da cena, Sávio passou com agudeza pelo seu número de entrada, em que ele apresenta Fenena como escrava aos seus asseclas, e tinge de ira a oração “Tu sul labbro”, quando, no 2. ato da ópera, já se encontra sob domínio de Nabuco. 
O tenor Giovanni Tristacci criou um Ismaele suave e passional. Seu timbre brilhante fez-se ouvir no trio “Fenena! O mia diletta!”, no qual ele, ademais, se mostrou um responsivo parceiro cênico para sobretudo Denise de Freitas, de quem foi o par romântico, mas também para Eiko Senda, cuja personagem nutria por ele um amor pouco abnegado. 
Na parte de Fenena, a mezzosoprano Denise de Freitas fez emergir as superlativas qualidades de atriz e de cantora que são uma constante em seus trabalhos. Do ponto de vista teatral, foi uma Fenena extremamente convincente e humana, somando entrega abnegada (ao amor, aos seus oponentes) e assertividade. Com sua conhecida potência vocal, destacou-se nos ensembles – a exemplo do Finale do 2. ato, e demonstrou domínio vocal e profundidade dramática ao entoar, num misto de tristeza e esvaecimento, a ária “Oh, dischiuso è il firmamento”. 
Coube a Eiko Senda o papel de Abigaile, e ela deu corpo com competência à ambiciosa assíria que paulatinamente vê o seu mundo ruir. A leitura do documento em que descobre que é filha não do rei, mas de escravizados (“Anch’io dischiuso un giorno”), a sua disputa com Nabuco, no 3. ato (“Donna, chi sei?”) e, enfim, a sua conversão, no recitativo final, foram cantadas de forma passional. 
O papel-título coube ao barítono Rodrigo Esteves, que o desempenhou com maestria. Ótimo ator, imprimiu com destreza a heráldica da personagem do rei, na primeira parte do espetáculo, e construiu com delicadeza a sua insânia, na segunda parte. Seu timbre potente, mas também quente e aveludado, resultaram numa performance notável. 
A coesão do conjunto, acompanhado pela ótima Orquestra Sinfônica de Minas Gerais, resultou num espetáculo emocionante. Este resultado denota algo que deve ser diretriz numa montagem operística: a escolha de vozes apropriadas para os papéis e o respeito do encenador pela obra que tem em mãos, e pela carga cultural que, para o bem ou para o mal, ela carrega.

As imagens foram retiradas das redes sociais dos participantes da encenação.

quinta-feira, 31 de outubro de 2024

Giornate del Cinema Muto de Pordenone 2024: parte 8

“La Bohème” (1926)

Por fim, o programa Il canone rivisitato/The canon revisited [O cânone revisitado] abordou obras no geral já conhecidas do público amante do cinema silencioso. De novo, destaques são a qualidade da cópia disponível, a possibilidade de vê-la na tela grande, ou ainda a inventividade do acompanhamento musical. ´
Este último caso aplica-se à deliciosa obra alemã “Saxophon-Susi” (1928), de Carl/Karel Lamač, que respinga, em sua temática e em sua montagem, a sinuosidade do jazz, mimetizada maravilhosamente pelo trio Neil Brand, no piano, Frank Bockius, na bateria, e Francesco Bearzatti tecendo o leitmotif de Susi no saxofone. 

Desempenhada por Anny Ondra, a protagonista é uma jovenzinha da elite econômica que, por muito amar o jazz e o teatro ligeiro, seu palco principal de expressão, acaba trocando de lugar com a amiga pobre, juntando-se a uma companhia teatral mambembe, enquanto a amiga é internada numa escola de boas-maneiras – local contrapontístico à vivacidade que poreja da trupe alimentada por este gênero musical que então era considerado o epítome da modernidade. Susi torna-se, às barbas da família, dançarina e saxofonista da moda. 
Uma cena impagável é quando a jovem, retornando à sisuda casa onde crescera, é convencida pelos pais a convidar as amigas da suposta escola de boas-maneiras para um chá, e alguns acordes da música da moda – não por acaso, tocada por Susi – soam no gramofone da família, levando todo o grupo a abandonar-se aos irresistíveis requebros do jazz, sob os olhares perplexos dos pais da jovem e de toda a ancestralidade que preenche as paredes do local. 
Mas o “cânone revisitado” em Pordenone este ano foi sobretudo o dramático. A começar pelo dinamarquês “Blade af Satans Bog” (Leaves from Satan’s Book, 1920), de Carl Th. Dreyer, rodado pela afamada Nordisk – longo, porém, também belo, no esforço enciclopédico comum àqueles tempos de englobar toda a história do mundo no espaço de uma película. 
Nele, quatro episódios separados são atravessados pela personagem de Satanás, anjo caído que recebe de Deus a condenação de tentar os humanos. O filme cobre os últimos momentos de Jesus, depois da traição de Judas, a inquisição espanhola, a Revolução francesa e, finalmente, a guerra civil finlandesa, no ano de 1918. Neste último episódio, uma jovem funcionária do telégrafo é tentada a cometer um ato de traição. A resistência da moça faz com que o ciclo fatal se quebre. 
Da Dinamarca de 1921 para a Itália de 1917. A obra em questão é “Rapsodia Satanica”, de Nino Oxilia, rodado pela Cines e protagonizado por esse epítome de diva que foi Lyda Borelli; filme sobre o qual já tive a oportunidade de escrever no início de 2021. Naquele momento eu o havia visto num canal num link do Youtube, numa versão que passou pelo crivo do laboratório bolonhês L’Immagine Ritrovata – o qual devolveu toda a pujança original deste filme feito com as mais diversas técnicas de coloração da imagem. Vê-lo na tela grande, numa experiência tão próxima àquela vivenciada pelo público de cem anos atrás, foi uma experiência inesquecível. Borelli, Oxilia e a Cines concorrem para criar, de forma absolutamente sedutora, um veículo para a exacerbação dos dotes físicos (e metafísicos) de sua estrela, mulher feita de luz. “Rapsodia Satanica” coloca exemplarmente à baila o funcionamento do star system. O fio de enredo que o sustenta é mera desculpa para o desfile da diva em cena, tingida pelas cores as mais estupefacientes. 
E, enfim, esta revisita do cânone brindou-nos com uma obra maior da maior de todas as atrizes do cinema silencioso: a película norte-americana “La Bohème” (1926), protagonizada por uma Lillian Gish em estado de graça, e pelo sempre satisfatório galã John Gilbert. Dirigida pelo grande King Vidor, a obra é menos baseada na ópera de Puccini que no romance “La Bohème: scenes de la vie de Bohème”, de Henri Murger. 
Enquanto a obra operística apressa o idílio amoroso e o interrompe bruscamente, no filme a história caminha mais a passo, e tecem-se de forma detalhada não apenas a boemia dos rapazes de vida airada do Quartier Latin, mas a vida de labor da bordadeira Mimi – leitura, aliás, que desce às raias do realismo neste último caso, pela interpretação cuidadosa, pormenorizada, realmente inacreditável de Lillian Gish. Atriz inteligente, Gish constrói a sua personagem como um ser etéreo, quase que descolado deste mundo, mesmo quando ela, vestindo seu vestido de gaze primaveril, corre feliz pelos campos, ao lado do amado Rodolphe, ou narra com vivacidade, a um possível investidor do namorado, os episódios da peça de teatro que ele estava escrevendo. 
Marcada pelo signo da abnegação, como tantas mulheres, caberá a Mimi o paulatino esvaecimento, até que uma carruagem a arrasta como trapo ao reduto dos boêmios, onde ela morrerá nos braços dos seus. Que honra vê-la na tela grande, com os acordes da amada “Bohème” pucciniana vez por outra atravessando o acompanhamento que Donald Sosin realizou para a obra!