



Impressões sobre filmes, óperas, espetáculos teatrais e afins.
Chegamos na metade da Giornate. O programa do dia (com cerca de 50’ de duração) é composto pela exibição de um conjunto de filmes britânicos preservados pela Filmoteca da Catalunha nos primeiros quinze anos da cinematografia: “Early British films from the Filmoteca di Catalunya, 1897-1909”. O acompanhamento musical é de John Sweeney.
Estamos aqui diante de um medium que se descobria e explorava todas as suas inúmeras potencialidades; na égide do “cinema de atrações”, que tanto fascínio despertou desde o público frequentador dos entretenimentos disponíveis nos maiores ou menores centros urbanos, até uma variada sorte de literatos do redor do mundo. Num diapasão dramático, em 1896, o escritor soviético Maxim Gorky refere-se a este cinema como o reino das sombras, lugar sem som e sem cor, habitado por espectros silenciosos e moventes (trecho mais longo desta bela crônica encontra-se aqui).
Um ano mais tarde, o cronista carioca Figueiredo Coimbra apreende este mundo com mais deleite. Encenando uma conversa de um jovem casal que assiste a uma sessão do “Animatógrafo Super Lumière”, no centro da cidade, ele procura destacar pelo viés do humor o que faltaria a este novo entretenimento:
— Viste bem essa rua de Londres?
— Vi!... É uma fotografia. Mas notei pouca animação, apesar das carruagens.
— Havia mais povo do outro lado.
— Que lado?
— O lado que se não via.
— Eu tinha desejo de ir lá, quando de repente a rua acabou.
— Foi um relâmpago, mas bastou, filhinha, para se poder calcular o que é Londres. Uma grande cidade, uma cidade enorme...*
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Animatógrafo Super-Lumière, A Notícia. Rio de Janeiro, p. 4, 11-12 dez. 1897. |
Ao meter-se no meio dos acontecimentos, o este cinema recupera uma premência que é aquela da modernidade. Mais que isso, mostra que, embora seja um espetáculo que se venda muitas vezes dentro dos recintos teatrais, supera o teatro, ao sinalizar ao público a existência de um fora de campo. O cinema apontava para a existência daquilo que não podia ser visto. O objeto que fugia das vistas do público denotava a dimensão do mundo de modo muito mais contundente do que o teatro fizera até então.
Os primeiros anos da década de 1890 viram o nascimento de experimentos voltados a dar moção à imagem fotográfica, dentre os quais se incluem o Kinetoscópio de Thomas Edison e o Cinematógrafo dos Irmãos Lumière. O inventor inglês Robert W. Paul é outro desses homens. Seu “Animatógrafo” percorreu o mundo – embora o dispositivo comentado por Figueiredo Coimbra em 1897 denomine-se “Animatógrafo Super-Lumière”, provavelmente tratava-se de um exemplar do aparelho concebido por Paul.
O escopo temático dos registros de Paul assemelhava-se bastante àqueles colhidos pelos irmãos Lumière, mais conhecidos do público, e sinalizavam, como apontei acima, para uma série de caminhos: sketches cômicas, trucagens, phantom rides – cenas tomadas da frente dos veículos, que furavam o burburinho urbano –, desfiles e demais acontecimentos do dia a dia, panorâmicas de sítios históricos (a exemplo de Veneza) ou, ainda, de longas travessias de trem, a tomarem o cinema como o veículo de uma viagem sem sair do lugar.
* Fonte: F. C. (pseud. de Figueiredo Coimbra). Diálogos. A Notícia, Rio de Janeiro, p. 1, 11-12 dez. 1897.
O programa do quarto dia da Giornate é exclusivamente por “Rivalen” (“The Miracle of Tomorrow”, Harry Piel, 1923), com acompanhamento musical de Gabriel Thibaudeau.
Segure-se, público, para conhecer Harry Piel agora de corpo e espírito, já que ele não apenas dirige, mas protagoniza o estonteante longa alemão “Rivalen”, segundo de uma trilogia. Aqui, as aventuras das duas primeiras obras apresentadas no primeiro programa voltado ao artista, dois dias atrás, multiplicam-se e ganham estofo simbólico.
Os contornos da trama são enformados pelo gênero filme de aventura. Aqui, no entanto, o entrecho romântico ganha urgência. Piel mal esconde a associação entre a sua persona cinematográfica e o personagem que desempenha: ele faz o papel de si mesmo, do homem belo, forte e esbelto por quem a arfante jovenzinha Evelyn Evans (Inge Helgard) apaixona-se perdidamente. O pai dela é contra o relacionamento, considerá-lo (vejam-se as semelhanças com “The adventure of a journalist”) um desocupado. Ela, no entanto, o faz entrar furtivamente num baile à fantasia que organizava na residência da família.
O baile, no qual o filme se centra, é antológico. Um grande salão tem esculpida em seu fundo uma criatura das trevas cujos olhos são duas janelas, e cujas pálpebras são toldos que se abrem e fecham à medida que seus frequentadores querem privacidade. Pelo salão desfilarão convivas vestidos de diabos e demais seres sombrios. Um frenesi preside a filmagem do baile, desde a chegada dos convidados até a entrada de Piel e do “Rival” do título: cientista inescrupuloso que tenta de tudo para se casar com Evelyn. Um crescendo dramático sucede-se ao deboche inicial, quando o lugar se assemelhava a uma sucursal da Babilônia.
A ânsia recupera o epíteto de “anos loucos” atribuídos aos anos de 1920. Pouco depois de Piel exibir seus dotes acrobáticos e pedir a mocinha em casamento, um robô – o primeiro jamais presente num longa-metragem, segundo Jay Weissberg, diretor da Giornate – adentrará pela bocarra da criatura esculpida nos fundos do salão de festas e submeterá o pai da mocinha. Neste meio tempo, um dos pouquíssimos exemplos de sororidade que jamais vi no cinema desta época aparece na pele de Julieta Carnera (Maria Wefers), amante do “Rival”, que principia adentrando a festa para persegui-lo e acaba ajudando Evelyn a se safar. O nome e o tipo hispânico da jovem são mimetizados, pelo compositor Gabriel Thibaudeau, por um tango, no primeiro momento em que ela surge em cena, num trem, no princípio da obra – esse contorno meio étnico, meio cômico presidirá as suas entradas, que tanto darão leveza à história quanto sublinharão o caráter assertivo da jovem.
Julieta troca de lugar com Evelyn, e é sequestrada pelo próprio amante. Sem se dar conta da troca, Piel segue-os. Os signos da técnica, que visitaram os filmes rodados por ele uma década antes, multiplicam-se aqui, dentre os quais a cápsula de vidro onde ele ficará preso pelos criminosos, a qual será mergulhada no mar (a cena em que os comparsas do vilão param de bombear oxigênio para dentro da cápsula, e o ar vai rareando, são efetivamente agônicas).
Nessas alturas, Evelyn já viera de descobrir o destino do amado, e já aceitara casar-se com o “Rival” para salvá-lo. Uma montagem paralela ilustra, de um lado, o esforço de Piel para resgatá-la, depois de se desvencilhar da arapuca, e do outro, o sofrimento dela pelo destino que a esperava. Há um equilíbrio muito bom, aqui, entre a ânsia e o sofrimento, os fortes e os pianos, que se alternam para um final surpreendentemente infeliz, considerando-se a cinematografia da época e especialmente este gênero de filmes: Piel chega a salvar a jovem, mas não impede o casamento – o desfecho da história o público, já então cativado pelas personagens, não conhecerá, já que ele se desenrolará apenas na terceira e última obra da trilogia.