terça-feira, 21 de março de 2023

A ensimesmada Hollywood: pitacos sobre o Oscar 2023


Assumo aqui a tarefa ousada de inaugurar, este ano, este blog que já se tornou bissexto, falando sobre algo que não seja cinema silencioso, coisa que há anos me assombra. Falando, mais especificamente, sobre os filmes indicados ao Oscar 2023, e sobre os vitoriosos; assunto que já gerou muito choro e ranger de dentes dentre meus amigos, colegas e conhecidos.
Revisitei en passant meus (vários) textos sobre o Oscar, escritos de forma passional desde que inaugurei o Filmes, filmes, filmes, em 2010. Textos longos e ponderados, o oposto do que me proponho a fazer aqui, nessas notas que não passarão de pitacos – como aponta o título – sobre a solenidade deste ano, e as obras e deidades que ela colocou em seu panteão. Concentro-me aqui nos filmes concorrentes ao prêmio de Melhor Filme.
Os Fabelmans
Vi-me em fevereiro assistindo, numa sanha louca, a praticamente todos os indicados do ano. Se não completei o álbum de figurinhas, estive muito perto: Nada de Novo no Front eu não vi anunciado nos cinemas; outras obras, como Elvis e Top Gun, já não estavam em cartaz; outras, como Avatar, preferi fingir que não estivessem – enquanto o primeiro filme da franquia surpreendeu pelo uso de tirar o fôlego da tecnologia em 3D (a trama, malgrado a sua visada socioambiental, era pífia), não consegui ver, no trailer ou no poster do segundo, elemento que transcendesse o primeiro do ponto de vista técnico ou narrativo. 
A relativa facilidade em passar pelas obras indicadas revela uma característica nefasta do Oscar – ou da Academia de Artes Cinematográficas, que o atribui: o fato de apenas uma dúzia de obras intercambiarem-se em nos quesitos de premiação. Fiz uma checagem rápida e encontrei, num artigo publicado pela Cláudia em 2019, a referência aos cerca de oito mil membros pertencentes aos quadros da Academia, que podem decidir quem devem indicar e, a partir daí, quem se sagrará vencedor (os meandros disso podem ser conferidos aqui). 
Tár
O fato de tantas cabeças ao redor do mundo poderem tomar esta decisão acenaria a uma teórica pluralidade, não fosse o ensimesmamento da indústria do cinema, centrada em Hollywood e nas obras dali saídas. O volume considerável de dinheiro gasto com marketing, por filmes que, às vezes, têm como principal qualidade isso mesmo, serem boas peças de marketing, cria essas unanimidades nocivas. 
Daí, por exemplo a raridade que é vermos a indicação a Melhor Filme de uma obra que não tenha o inglês como idioma principal. Uma das honrosas exceções, o leitor se lembrará, é o sul-coreano Parasita (2019), cujo feito inédito foi conquistar os prêmios de Melhor Filme e de Melhor Filme Estrangeiro em 2020 – mas, neste caso, a exceção vem marcada pelo exagero, já que, embora a obra tenha boa cinematografia, bloca de forma escolar os opostos, descambando, no âmbito do roteiro, para o artificioso/inverossímil. 
Este ano, aliás, discutiu-se sobre o sufocamento gerado pelo marketing de Hollywood, ao se colocar em pauta a indicação de Andrea Riseborough por To Leslie – alçada a este posto por um grupo independente e aguerrido. Nada mais digo a este respeito, já que não assisti à obra. 
Discutir o Oscar não é propriamente discutir cinema, mas sim os arranjos tramados na principal indústria de cinema do mundo, estabelecida numa das principais potências mundiais. A partir deste lugar, surpreende que alguns trabalhos dignos de nota sejam galardoados com a indicação ao prêmio. Vamos a eles – ou a alguns deles, a partir do lugar desta que vos fala. 
Comecemos pela obra mais premiada. Tudo em todos os lugares ao mesmo tempo, codirigida por Daniel Kwan e Daniel Scheinert, arrebatou, além dos prêmios de melhor atriz e de atriz e ator coadjuvantes, as láureas de roteiro original, montagem, diretor e filme. 
Sou, como cristã não praticante e comunista de coração, a favor de dividirem-se as benesses. Não sou do time cujos dentes rangeram com esta vitória – ao contrário, este, junto do Triângulo da Tristeza, foram os meus favoritos desta edição da premiação. Se roteiro e sobretudo montagem são os grandes trunfos desta obra, não seria de mau alvitre premiar-se o diretor Ruben Östlund, pela visada ácida – e tão verossímil – que lança às relações humanas em Triângulo da tristeza, ou mesmo Martin McDonagh, pelo pulso com que conduz esta obra quase que teatral que é Os Banshees de Inisherin
Os intérpretes vitoriosos foram muito bem escolhidos. Michelle Yeoh e Jamie Lee Curtis merecem os prêmios por cooperarem na sustentação da continuidade narrativa no ultra clipado Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo. Para além disso, ambas mergulham de cabeça na atmosfera de teatro do absurdo que emana da obra, que se centra na luta que Evelyn – imigrante chinesa de classe média-baixa – leva a cabo no multiverso para salvar o mundo; luta deflagrada, vejamos a identificação, no justo momento em que ela se digladia para concluir a sua declaração de imposto de renda... O mesmo trabalho impecável realiza Ke Huy Quan, que na obra desempenha o papel do marido da personagem de Michelle Yeoh, e de um sem-número de personagens afins, variados ad eternum, nas mais recônditas partes do multiverso. 
Criticou-se a pieguice de fundo da obra – já que, ao fim e ao cabo, a mãe viaja pelos universos paralelos para salvar a filha desgarrada transformada em arquivilã. Eu prefiro lê-la pelo viés do humor que tudo destrói: as tramas melodramáticas, a narrativa linear, as pretensiosas sagas que tematizam os meta/multiversos, etc. Os prêmios inéditos aos dois artistas orientais que participaram da produção é outro elemento que depõe a favor das escolhas – do rol de intérpretes vencedores, não saiu dos quadros de Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo apenas Brendan Fraser, deslumbrante em A Baleia


Algumas palavras, agora, sobre as demais obras indicadas – saliento, que eu vi: 

O irlandês Os Banshees de Inisherin (Martin McDonagh) passa-se numa ilha na costa oeste da Irlanda. Centra-se na história dos amigos Padraic (Colin Farrell) e Colm (Brendan Gleeson), mais especificamente na ruptura ocorrida entre ambos depois que o segundo se recusa a continuar amigo do primeiro. Para além da visada metafórica do filme – que, conforme acenou a crítica, metaforiza a ruptura traumática entre as duas Irlandas –, ele seduz pela construção matizada das personagens de Padraic e de sua irmã. Farrell, excelente, faz emergir com contenção e profundidade o espantoso da ruptura. A beleza do cenário recôndito e da trilha sonora emolduram a trama teatral, em que a dialética é colocada em primeiro plano. 
Os Fabelmans (Steven Spielberg) é uma exegese bela, mas algo longa e arrastada, das memórias de seu diretor, desde que pela primeira vez ele coloca as mãos numa câmera cinematográfica, nos Estados Unidos dos anos de 1960. Michelle Williams, indicada ao Oscar de melhor atriz, é a mãe do menino – mulher típica da época, presa aos liames da maternidade e do casamento. Os amantes de cinema se identificarão com o menino que sonha em ser cineasta: sua primeira fascinação pela sala de exibição, sua formação como cinéfilo e realizador, a primeira vez que vê o seu ídolo diretor. No entanto, atravessa a obra um tom grandiloquente que me incomodou. 
Em Triângulo da Tristeza, Ruben Östlund centra-se nos personagens de um casal de top models internacionais. A narrativa principia esmiuçando com assertividade ímpar os meandros da indústria da moda: a coisificação dos corpos, a indústria da propaganda, a mercantilização das relações sociais. Tal e qual cobaias de laboratório, o jovem casal que principia a história travando uma disputa para decidir quem pagará a conta do restaurante de grife acaba solto num luxuoso cruzeiro e, enfim, numa ilha deserta, depois que o navio afunda. Östlund estabelece e redefine com maestria os lugares sociais do grupo com quem os jovens cruzam, nesta que é a mais disruptiva obra do Oscar. 
Por fim, dois filmes centrados em personagens femininas: Entre mulheres (Sarah Polley) e Tár (Tod Field). O primeiro, premiado com o Oscar de melhor roteiro adaptado, ficcionaliza em cima da história real de certa comunidade carola cujos homens isolavam as mulheres, impedindo-as de estudar e as intoxicando para submetê-las a violações sexuais que eles atribuíam ao sobrenatural. A premissa é dolorosa e precisa, as atuações densas, e a intenção – de se dar a voz exclusivamente aos dramas e lutas femininas, de forma dialética, num jogo teatral – é das melhores. No entanto, há falta candente de verossimilhança neste quadro: a densidade dos argumentos relativos à submissão feminina lançados à roda por essas mulheres não condiz com o seu lugar social. 
Tár toma como objeto uma sorte oposta de personagem feminina, ficcionalizando sobre os esforços da regente da reputadíssima Filarmônica de Berlim (escolha irônica, dado o notório preconceito de gênero daquele grupo) para se alçar e se manter neste posto. Alguma tinta foi gasta, especialmente por mulheres do ramo, criticando a vilania da personagem. No entanto, a câmera oscila entre objetivas diretas e subjetivas indiretas, mergulhando um bocado nos fantasmas interiores da mulher, daí à impossibilidade de cravarmos a sua vilania. A derrocada de Tár é tão altissonante quanto a sua ascensão: ela termina comandando uma orquestra de fundo de quintal asiática durante a projeção de um filme de super-herói. A inverossimilhança se sobrepõe à vilania, e a curva dramática forçada serve sobretudo à Cate Blanchett, maravilhosa como sempre.
Amado e odiado, o Oscar segue há quase 100 anos o prêmio mais relevante da indústria do cinema. Apesar das controvérsias que gera, que ele siga fomentando a frequentação das salas de exibição – que decai a olhos vistos frente ao streaming –, e retirando do ostracismo gente que o merece, a exemplo de Brendan Fraser.

quinta-feira, 13 de outubro de 2022

Giornate del Cinema Muto de Pordenone 2022 - Dia 8, parte 2


Dia 8: sábado, 8 de outubro de 2021 

Último programa da Giornate. Como anunciado na resenha anterior, vimos a comédia norte-americana Up in Mabel’s Room (1926, Mason Hopper, 79 min.), preservada pela UCLA Film & Television Archive, de Los Angeles. Um grande fecho, que coroou escolhas no geral bem feitas – sei que prego no deserto sempre que ressalto a necessidade de filmes latino-americanos na Mostra, quase de todo ausentes nos eventos presenciais, em que o programa é mais extenso, e completamente ausentes na secção virtual da mostra. Mas vamos aos apontamentos sobre a obra de Hopper. 
Up in Mabel’s Room é uma ótima comédia da Companhia de Al Christie cujos laivos farsescos são ressaltados pelo excelente trabalho realizado em colaboração entre o pianista e violinista/violista Günter A. Buchwald e a Zerorchestra – orquestra de pegada jazzística nascida em Pordenone no centenário do cinema, em 1895, e que presta a ele um tributo inquestionável, já que suas colaborações anuais na Giornate são sempre pontos altos do evento. Esse trabalho conjunto explicita o papel fundamental da música na “cena muda” – é claro que a condição ótima encontrada na Giornate não se observava usualmente, na época, nos cinemas do redor do mundo. Sobretudo neste caso, em que o éthos da Zerorchestra se casa tão bem com Up in Mabel’s Room, sublinhando o tom chistoso do filme. 
A obra se trata de uma comédia de boudoir protagonizada por Mabel Ainsworth (Marie Prevost). Apanhamo-la a princípio a bordo do navio que a leva da França aos Estados Unidos, perseguida por um grupo de marmanjos que disputa a sua atenção. O intertítulo bem-humorado dá o tom do filme: “No passado, um navio era abalado por um rabo de baleia. Hoje, basta a presença de uma bela mulher para que isso aconteça”. 
Mais que bela, Marie Prevost é uma luz; uma ótima e carismática atriz cômica que, de saída, faz todos os olhos convergirem para si. Convence-nos plenamente quando coloca no bolso o galã Harrison Ford, que na obra desempenha o papel de Garry Ainsworth, um reservado arquiteto norte-americano o qual se casa com essa fresca mocinha num rompante em Paris – casamento e divórcio ocorrem de forma tão rápida e tumultuosa que o marido decide obliterá-los de sua vida, apresentando-se a todos como solteiro. 
Mabel, todavia, decide se reapresentar na vida do ex-marido – “Garry, eu te achava tão danadinho, mas descobri que você é tão bom”, ela confidencia para a foto do ex-marido depois da perseguição que sofre a bordo. O mote do divórcio, e também a mola propulsora dos quiproquós da comédia, é a sensualíssima (até para os nossos dias) lingerie com que Garry presenteia a esposa; presente que ela decide abrir apenas depois de concluído o processo de divórcio, só aí descobrindo o motivo pelo qual ele guardara tanto sigilo quando ela o encontrou adquirindo um apetrecho suspeito numa loja feminina. 
Ao gosto do gênero cômico, orbita este casal uma série de personagens tipificados que vão se encontrar na casa da matrona Henriqueta (Maud Truax), onde se situa o tal quarto de Mabel em que todos os reveses têm lugar: além de Garry, a jovem Sylvia (Phyllis Haver), mulher que o ama e da qual ele se torna noivo apenas para se ver livre de Mabel; o abnegado apaixonado Paul Nicholson, que malgrado ame Sylvia empresta a Garry o anel de noivado que daria à moça, pois sabe que ela ama o amigo e não ele; o jovem casal Jimmy Larchmont (Harry Myers) e Alicia (Sylvia Breamer), que deseja comemorar um mesversário de casamento por saber que muitos casais não duravam um ano (e que vê o seu casamento perigar devido à vamp farsesca Mabel); Hawkins (William Orlamond), o criado de Garry – que procura sem sucesso manter o porte de mordomo londrino frente às mais absurdas situações (os esconderijos debaixo da cama e dentro do baú, o entra e sai pela janela, o banho inopinado depois que um cano de água estoura, etc.). 
Escrito por F. McGrew Willis a partir da peça cômica de Wilson Collison & Otto Harbach (de 1919), Up in Mabel’s Room parece ter sido engendrado por Nöel Coward, tão ágeis são seus cortes e sofisticado é o seu jogo de cena. O filme é ainda uma brisa de ar fresco no que diz respeito ao modo como encara as imposições sociais. O gênero cômico historicamente usa como arma a sátira para reformar os costumes. O sexo, visto nos dramas como vício, e que serve de mote para o descaminho dos indivíduos, é aqui lido com humor. O arquétipo da vamp, em voga ainda nas portas dos anos 30, é aqui lido de soslaio – a assertividade de Mabel para reconquistar o marido é vista com bom-humor pela câmera, visada repercutida pela música, uma vez que a Zerorchestra faz uso com precisão dos sopros para criar não apenas os sons incidentais, mas o comentário irônico da ação. Também os gêneros sociais são botados à bulha no filme – o personagem “frágil” aqui é indubitavelmente Garry, que chega mesmo a vestir um sexy peignoir em cena, satirizando, a partir da inversão, a sensualidade imposta então pelo cinema ao sexo feminino. 
Momento luminoso dos estertores do cinema dito “silencioso”, com o consórcio de Günter A. Buchwald e da Zerorchestra Up in Mabel’s Room ressurge-nos, hoje, em todo o seu esplendor, mostrando que este cinema que prescindia da palavra não é um item de museu, mas sim é substância viva, que pode dialogar com força com a nossa sociedade contemporânea – que, malgrado tenha tido 100 anos de tempo para evoluir, conserva-se tão assustadoramente carola.

terça-feira, 11 de outubro de 2022

Giornate del Cinema Muto de Pordenone 2022 – Dia 8, parte 1


Dia 8: sábado, 8 de outubro de 2021 

Derradeiro dia da Giornate. Duas obras do período final da arte muda nos foram exibidas em dois programas diferentes, ambas norte-americanas, um drama e uma comédia: The Lady (de 1925, dirigido por Frank Borzage, 85 min.), acompanhada ao piano por Daan Van Der Hurk, e Up in Mabel’s Room (1926, Mason Hopper, 79 min.), que teve acompanhamento musical de Günter A. Buchwald e da Zerorchestra. Antes do drama de Borzage foi igualmente exibido o curta Japan I Fest (Japan festivals, circa 1914-16). Cada programa será aqui apresentado numa resenha separada. 
Como destaca Jay Weissberg, diretor do festival, o curta faz parte dos 4% da produção silente japonesa que resistiu ao tempo. Trata-se, portanto, de uma preciosidade, a qual foi localizada na Nasjonalbiblioteket, em Oslo/Mo i Rana – nem o título, nem a data de sua produção remanescem, tendo sido ambos atribuídos pela instituição que localizou a obra. 
Duas cerimônias nos são apresentadas, o ritual de encontro dos sacerdotes budista e Shintō e a procissão Tayū Dōchū. A segunda delas tem um destaque incontornável – foi a partir da data deste desfile, documentação que resistiu ao tempo, que se pôde datar o filme. Trata-se do desfile das Oirans, cortesãs de categoria mais elevada que as gueixas, que poderiam oferecer favores sexuais – com exceção da Tayū, a mais elevada categoria entre elas –, além de serem cultivadas nas artes tradicionais. Assim, moças e menininhas que mal se sustentam nas pernas sucedem-se umas às outras, desfilando maquiagens que as assemelham às bonecas de porcelana e belos e pesados trajes. Suas chinelas de altas plataformas e seus passos cruzados terminam por as destacar dos demais mortais que as observam aos milhares, muitas vezes maltrapilhos e encardidos. O Japão que se perdeu na poeira dos tempos surge aqui com todo o seu esplendor e o exotismo que tanto atraiu as plateias ocidentais à época. 
Em seguida exibiu-se The Lady, a segunda obra protagonizada por Norma Talmadge (atriz homenageada pelo festival) apresentada na versão digital da Giornate. Dirige-a Frank Borzage, competente diretor do gênero dramático, a quem cabe a batuta, por exemplo, da obra-prima Seventh Heaven (1927). Na obra, Talmadge desempenha o papel de Polly Pearl, a jovem atriz de Teatro de Variedades na França dos estertores da Belle Époque. A obra se constrói a partir de flashbacks. O passado de desventuras ressurge dos lábios da já madura Polly, na mesa de seu bar, enquanto ela desfia a sua vida pregressa a um frequentador. Aqui conhecemos outras facetas da atriz que nos surpreendeu em Yes or no. Norma Talmadge não à toa era bem reputada – ela se tratava de uma das mais talentosas atrizes da Hollywood dos anos de 1920. 

O catalisador da narrativa da senhora é a chacota que ela sofre de um frequentador do seu estabelecimento quanto diz a ele que é uma lady. A partir dos flashbacks, observamos que ela passou uma vida tentando atingir o status de dama, desde quando, ainda jovem, foi rechaçada pelo sujeito com o qual se casara (um típico almofadinha, formado nos rapapés da sociedade, mas raso como um pires e de moral claudicante) porque ela não compreendia o jogo social. Polly pare um filho deste relacionamento no reles boteco de beira de cais no qual ela passa a trabalhar. 
O bebezinho comove a dona do estabelecimento – e a gente, e as pedras...–, que ajuda a malfadada jovem quando o avô da criança surge para reavê-la, e a mãe teme que o menino tenha o mesmo fim do pai no aspecto moral. Depois de entregá-lo a uma velha senhora inglesa pertencente à alta sociedade se afeiçoara a ele, Polly encetará durante anos um périplo pelas ruas da cidade, como uma gasta vendedora de flores nas ruas de Londres, procurando em todas as crianças o menino que se fora. 
Todavia, quererá o destino, essa entidade tão querida ao melodrama, que a mulher o encontre quando termina de contar a história, em seu próprio bar, após um tiroteio ter lugar ali. O dispositivo de reconhecimento, outra tópica do gênero, é aqui bastante criativo: o rapaz jaz desmaiado nos braços da mãe incrédula, sendo reconhecido pela pulseira com o seu nome que ele traz no pulso, já que faz parte de um batalhão. Quando ele acorda, ela procura, sem se desvelar, assumir para si o tiro que, na confusão, ele dera no próprio amigo. É uma “perfeita lady”, afirma-lhe o seu interlocutor, atribuindo a si o epíteto que a vida toda lhe fora negado. Também o menino fora criado para ser um cavalheiro, ela constata, já que não aceita que ela purgue pelos seus erros. 
O enredo da obra, adaptado por Frances Marion da peça de Martin Brown, é um bom exemplar do gênero melodramático, construindo caracteres e ação de modo verossímil – sempre lembrando-nos de que aqui se trata de verossimilhança de melodrama, em que invariavelmente se injeta uma dose de fantástico. Há ótima reconstituição de época, especialmente do fim da Belle Époque, período de barreiras sociais mais rígidas – para além de seus glamurosos espetáculos de vaudeville, os eventos sociais frequentados pela nata na Riviera francesa, que apenas aceitavam os iniciados. 
O páthos melodramático é mobilizado com eficácia notadamente por Norma Talmadge, que, num desempenho contido, não só é a dama como é a mãe arquetípica. O talentoso pianista Daan Van Der Hurk mimetiza-a, desenhando a ação musicalmente com calidez despida de pieguice. Esses dois filmes protagonizados por Norma Talmadge foram um convite assertivo ao público da Giornate para que a obra desta ótima atriz da arte muda seja conhecida em sua extensão.

segunda-feira, 10 de outubro de 2022

Giornate del Cinema Muto de Pordenone 2022 - Dia 7


Dia 7: sexta-feira, 7 de outubro de 2021
 

A Giornate abre espaço para a sua primeira vamp, neste seu penúltimo dia. 
Em cena, a divina Brigitte Helm dá corpo a Cleo na dinamarquesa Manolescu (Viktor Tourjansky, 1929). O personagem-título da obra (desempenhado por Ivan Mosjoukine) é um boêmio que desce a ladeira da criminalidade por amor à tentadora personagem de Helm. Estamos aqui no terreno pantanoso da mítica do cinema silencioso dos anos de 1920, que bebe daquela oriunda da literatura (que, por sua vez, espelha o cristianismo), a qual atribuía laivos nocivos à mulher que se desviava minimamente do status quo. Era exíguo, então, o espaço à fêmea sexualmente assertiva, personagem dominante da relação, a qual era invariavelmente fadada à perdição, à solidão ou à morte. 
Na abertura da obra, flagramos o notívago Manolescu despertando à hora de ir ao cassino. Após receber do local uma carta de desconvite, uma vez que ele já devia muito à casa, vê, nos dizeres brilhantes do teatro mais próximo, a chave de seu destino: “Nova revista Adeus Paris: Rumo a Monte Carlo”. O personagem embarca na mesma noite, encontrando, no vagão-dormitório vizinho, Cleo (Brigitte Helm): loura, longilínea, nariz e lábios finos, todo o arquétipo da vampira impregnado num corpo de mulher. Ela escapa do companheiro, cuja violência teme. Escondendo-se no vagão de Manolescu para fugir à apresentação do passaporte, acaba enredada por ele, numa cena suficientemente elíptica para fugir à censura, mas que acena para um estupro clássico. Portanto, o fato de ambos encetarem um relacionamento romântico ato contínuo choca os nossos olhos contemporâneos. 
À medida que o casal percorre a Riviera francesa, seus interlúdios românticos entremeiam-se aos crimes que passam a cometer para manterem o status social. Logo Manolescu já se torna conhecido da polícia como ladrão e falsificador. Na lógica construída nessa cinematografia, à exemplo da literatura da qual ela bebe, a culpa é sempre da mulher, da “Bela dama sem misericórdia” da balada de John Keats e de toda uma vertente literária que remonta aos tempos medievais: Cleo equilibra-se entre Manolescu, o amante do qual ela outrora fugira e todos os homens que podem lhe representar qualquer chance de retorno pecuniário. Embora contada em terceira pessoa, a história é simpática ao protagonista, cujo turning point se dá a partir do momento em que se vê entre a vida e a morte no hospital, depois de ter sido agredido pelo antigo amante de Cleo – o qual, por sinal, invadira o quarto dela para subjugá-la. 
Num pesadelo, Manolescu se vê pequenino sendo massacrado por um júri que lhe apresenta em alto e bom som os seus crimes. “Foi tudo sua culpa, Cleo”. Quem o acalma é Jeanette (Dita Parlo), em tudo o contraponto da vamp: morena, dóceis olhos amendoados, rosto corado – a enfermeira que o trata e que ele carrega para um refúgio nos Alpes para, por ordens médicas, terminar de se reestabelecer. 
Repudiada por Manolescu quando o visita, Cleo apenas irá reencontrá-lo quando ele já pediu a outra em casamento, e o casalzinho enceta com a criada uma florida relação familiar em que esta torna-se a mãe substituta de ambos. A “família tradicional” desde sempre tão incensada exibe-se aqui em sua mais perfeita forma. 
Mesmo que (a deusa) Brigitte Helm despeje no antigo amante a sua ira – denunciando a Jeanette o passado dele –, o espectador ansioso apenas o verá atrás das grades após testemunhar, junto com os dois policiais que o vão prender, a mais pungente cena de harmonia familiar, em que este bandido moralmente reformado celebra a virada do ano com a jovem noiva. A Cleo cabe o retorno ao seu primeiro violento amante e, após a rejeição dele, o abandono. 
Trata-se, como se vê, de uma trama datada, rançosa, de caracteres delineados à flor da pele, de bem e mal claramente discerníveis... Enfim, de um espetáculo que usa o maquinário da possante indústria do cinema para nutrir a sanha da sociedade machista. No entanto, a performance de Brigitte Helm eleva-o desse preconceito rasteiro até a uma altura insuspeitada. Que excepcional atriz era esta mulher, que concebe com inteligência uma personagem esférica quando tudo o que se esperava do tipo que desempenhava era a planura: seu queixo altivo se projeta enquanto as suas pálpebras tremem, e vemos a fragilidade que precisa ser escamoteada frente à necessidade de se impor num mundo masculino. Helm porta os trajes da vamp, porém, subverte o tipo, construindo uma personagem que anuncia haver profundidade debaixo da aparência. Ela vale o filme.


domingo, 9 de outubro de 2022

Giornate del Cinema Muto 2022 - Dia 6

Dia 6: quinta-feira, 6 de outubro de 2021 

Derradeiros dias da Giornate. A obra exibida hoje foi a comédia The Runaway Princess (Priscillas Fahrt ins Glück, de Anthony Asquith), rodado, nos estertores da era silente (em 1929), em coprodução entre a Grã-Bretanha e a Dinamarca. Vimos uma cópia de bastante boa qualidade oriunda da londrina BFI National Archive, com acompanhamento musical de Phil Carli. 
Trata-se, a exemplo de His Majesty the Barber – exibido dois dias antes –, de um excelente exemplar do gênero cômico, embora tenha um roteiro mais óbvio que aquele. Inspirada no romance The Princess Priscilla’s Fortnight (1905), de Elizabeth von Arnim, a obra narra a história de Priscilla (Mady Christians), a princesa de um reino fictício da Europa que se vê enredada num casamento arranjado com certo príncipe de um reinado vizinho. Ela o desconhece e tampouco deseja conhecê-lo. Procurando fugir da violência da imposição, foge do país no dia da apresentação oficial do noivo, acompanhada pelo velho mestre. Ambos vão dar na buliçosa Londres dos roaring twenties, de todo diferente do lugar bucólico donde saíram. 
Outro filme, portanto, cujos cerne e caracteres são centrados nas tópicas da “Ruritania”. Outras características dessas obras presentes nesta é o travestimento. A princesa surge incógnita em Londres. Ali, procurará a todo custo viver uma vida comum, como o fazem tantas de sua estirpe espalhadas pela cinematografia antes e depois dela, a exemplo da (amada) Audrey Hepburn em Roman Holiday (A Princesa e o Plebeu, 1953). 
Características originais dão frescor à tópica. São elas menos o galanteador (Paul Cavanagh) que Priscilla conhece ainda em sua terra – e por quem se apaixona reciprocamente –, o qual passa a persegui-la tão logo a encontra no trem, do que o trio de falsificadores de moeda que entrecruza os caminhos dos personagens. A moeda falsa que uma das moças da quadrilha desova nas mãos do mestre de Priscilla ainda no trem que os tira do reino de Priscilla pontuará a história, que é também costurada pela presença do “Detetive” atrapalhado (Claude H. Beerbohm), o qual erroneamente tomará Priscilla por uma das meliantes, colocando-se no encalço dela juntamente com o cortejador da jovem, que apenas a persegue com intuitos românticos. 
Gags sucedem-se umas às outras, enquanto Priscilla procura (em vão) provar ao rapaz que pode ganhar a sua vida sozinha – recebendo como resposta dele (hélas) invariavelmente um paternalista riso de canto da boca. Num desses momentos – o mais hilário da Giornate até agora –, enquanto procura emprego numa loja de departamentos, a jovem acaba confundida com uma patinadora famosa, descobrindo o engano apenas quando é literalmente empurrada na pista onde ocorria certo desfile de moda, quase destruindo o lugar. Noutro, Priscilla termina contratada por uma das meliantes (atriz sensacional cujo nome me foge) depois de entregar ao trio de escroques um par de chapéus estropiados que vinham de ser “atropelados” no centro da cidade – já que a mocinha, embora princesa, era uma autêntica caipira no que concernia ao burburinho urbano. 
O desfecho é, como já adiantei, óbvio: levada em juízo depois de ser tomada como membro da quadrilha, Priscilla é obrigada a desvelar a sua identidade; o seu par romântico – a quem a essa altura ela já se havia declarado – faz o mesmo e descobrimos (ohhh!) que ele não é outro senão o príncipe a quem ela fora prometida. Aqui, como em The Roman Holiday, não há espaço para o questionamento da tradição. Todavia, ao contrário do outro filme, não o há também para a melancolia, daí a semelhante arranjo da ação. 
Em The Runaway Princess, no entanto, o percurso vale mais que o destino. Anthony Asquith é um grande artífice de gênero cômico, conduzindo a ação sempre com graça. Há aqui ainda uma excelente direção de atores, com destaque para o trio de escroques (sobretudo as moças, que atuam com uma ironia chistosa) e o par romântico (destaque incontornável para a deslumbrante Mady Christians). 
Igualmente, se falta originalidade ao mote, o roteiro de Ian Campbell-Gray e Hermann Warm é repleto de cenas graciosas (a exemplo daquela em que a criada se finge gripada para que a condessa Distahl não suspeite de que Priscilla, que espirra, está escondida dentro do armário). 
The Runaway Princess é também curioso porque, em suas tomadas documentais da Londres dos estertores dos anos 20, acena às tópicas das “Sinfonias Metropolitanas” rodadas contemporaneamente. E ao estabelecer como contraponto o bucolismo do reino fictício e a feérica cidade de Londres, joga luzes de forma acariciante à própria condição da Inglaterra, em que ambas as realidades poderiam coexistir.