quarta-feira, 18 de outubro de 2023

Giornate del Cinema Muto de Pordenone 2023 – Dia 8


Dia 8, sábado, 14 de outubro 

Outro programa duplo neste último dia da Giornate virtual, que coincide com o encerramento do evento físico: o longa alemão “Die Straẞe” (The Street, Karl Grune, 1923), e o longa norte-americano “Conrad in Quest of his Youth” (William C. de Mille, 1920), com acompanhamentos musicais, respectivamente, de Günter Buchwald e Neil Brand. 

Embora “Die Straẞe” gire em torno de uma porção de personagens, sua protagonista absoluta é, como aponta o título, a rua. A cidade é, no filme, o espaço do perigo, destaca Jay Weissberg na apresentação da obra, tanto que o filme constrói a cidade em estúdio numa perspectiva menor, de modo que os personagens se percam nela. 
Digno de nota também neste filme é o fato de ele flertar com as reflexões sobre o cinema como obra de arte per se, que prescinde os intertítulos – portanto, a literatura –, visando a contar as histórias unicamente a partir das imagens. Algumas obras desta seara resistiram ao tempo, a exemplo de “The last laugh” (F. W. Murnau, 1924), cuja drama gira em torno do drama psicológico do atendente de hotel que perde o emprego – e, consequentemente, o lugar social que vinha com a posição, embora modesta. 
A exemplo da obra de Murnau, “Die Straẞe” concentra-se na visualidade, lançando mão de boas estratégias para conceber e potencializar o burburinho urbano, a exemplo da dupla-exposição, que concentra num mesmo plano um conjunto de signos da metrópole. Lembra as sinfonias metropolitanas que seriam rodadas no final desta mesma década, em que o âmbito visual ganhava primazia ao verbo, o que era um respiro nos estertores deste cinema de que nos ocupamos aqui, que de mudo não tinha nada. 
O filme acompanha um dia da vida de um conjunto de indivíduos de classes populares: um par de escroques, uma prostituta, um velho cego e seu pequeno neto, um casal de meia-idade. O marido de meia-idade deixa a esposa para viver uma aventura extraconjugal, acabando na cadeia, enredado pelos escroques e pela prostituta, e quase comete suicídio – todavia, tão logo volta para casa vê a esposa repetir o gesto automático de servi-lo, sem emitir qualquer questionamento; um quiproquó faz o menininho denunciar o crime cometido pelo pai, salvando o inocente da prisão. 
A obra segue o enquadramento do gênero melodramático, tipificando os personagens para facilitar a sua legibilidade pelo público tão letrado neste gênero – estratégia seguida por Murnau em “The last laugh”, aliás, e na qual ele atingiria a excelência no absolutamente maravilhoso “Aurora” (1927). Como nessas obras, “Die Straẞe” procura fazer emergir a psicologia dessas personagens típicas, atingindo interpretações filigranadas. 
De cepa bem diferente, embora também beba da fonte do melodrama, é o ótimo “Conrad in Quest of his Youth”, dirigido pelo irmão do poderosíssimo Cecil B. de Mille. O Conrad do título é Thomas Meighan, que desempenha o papel do homem de cerca de quarenta anos que, voltando melancólico da guerra, vai em busca, como aponta o título da obra, da juventude perdida. O filme equilibra doses ideais de melancolia e humor. Encontrando no mausoléu em que habita o seu fiel mordomo, Conrad pergunta-se porque sobreviveu ao conflito, enquanto tantos amigos dele que tinham a quem voltar pereceram. Olhando-se numa fotografia da infância, em meio a um grupo de amigos, escreve-lhes nostalgicamente. 
A carta vai dar nas mãos de um leitor assíduo de romances “alegres” e de duas matronas, uma delas riquíssima. Não obstante, todos topam a aventura de reviver ipsis litteris a infância despreocupada, o que se revelará, como o leitor bem pode imaginar, um tiro no pé – nossos verdes anos são deleitosos porque a gente os olha pelas lentes cor de rosa da memória: “Ser adulto é chato, mas ser criança é horrível.”, dirá o aficionado em romances alegres pouco antes de fugir da experiência de Conrad, o qual, ato contínuo, embarcará atrás de alguns romances da juventude, com resultados negativos análogos. 
A obra revelará que fórmula da juventude não se encontra na ressureição do passado, mas na fruição do presente. Conrad curiosamente descobrirá isso ao conhecer a mocinha da história, uma jovem que empreendia uma viagem parecida com a dele – atriz que se casara dentro da nobreza e, recém-viúva, engaja-se novamente na trupe em que ela atuava, por não suportar a melancolia. 
Em meio aos longos intertítulos, “Conrad in Quest of his Youth” defenderá uma obviedade romanesca – independentemente da idade, o amor é o caminho para a juventude. A edição virtual da Giornate termina nesta visada agridoce ao passado, que permeia de nostalgia mesmo as sequências mais pragmáticas. É a nostalgia que me toma ao ouvir o acompanhamento musical da obra, que tão bem enlaça o drama ao riso. A música é de autoria de Neil Brand, o qual eu ouvi pela primeira vez na longuíssima e inolvidável exibição de “Les Misérables” (Henri Fescourt, 1925), na primeira vez em que estive em Pordenone, em 2015.

terça-feira, 17 de outubro de 2023

Giornate del Cinema Muto de Pordenone 2023 – Dia 7


Dia 7, sexta-feira, 13 de outubro 

O programa do sétimo dia da Giornate foi duplo, a exemplo do que ocorre aos finais de semana. A primeira obra exibida denomina-se “9 ½ (Film In 9.5mm, 1923-1960s)” e se trata de um compilado de filmes rodados com a câmera Pathé Baby ao redor do mundo, ao longo do escopo temporal anunciado no título. Já a segunda obra é “Circe the Enchantress” (Robert Z. Leonard, EUA, 1924), veículo da MGM à estrela Mae Murray. O acompanhamento musical de cada uma das obras ficou a cargo, respectivamente, do sexteto Ensemble Conservatorio G. B. Martini Bologna e de Donald Sosin. 


“9 ½...” continua os festejos em homenagem ao centenário da Pathé Baby, iniciados pela edição presencial da Giornate em 2022. O dispositivo de filmagem e projeção foi produzido pela Pathé a partir de 1922 tendo como objetivo os registros caseiros. Embora ainda fosse custosa, penetrava um público consumidor bastante mais amplo que os dispositivos anteriores – o escritor paulista António de Alcântara Machado denomina “Pathé Baby: Panoramas internacionais” a série de artigos que ele faz publicar, em 1925, no paulistano Jornal do Comércio, atinente à viagem que ele faz ao velho mundo. A pena do cronista torna-se uma câmera de cinema amador, a flagrar ágil os recortes de realidade que ele escolhe tomar. 
A curadoria do programa fica a cargo de Anna Briggs, Michele Manzolini e Mirco Santi. É importante nomeá-los porque, ao optarem por recortar o filme segundo temas específicos e organizá-los de modo a dar relevo a alguns elementos em detrimento de outros, elaboram um novo filme, cujo valor artístico supera os filmetes muitas vezes familiares donde tais recortes saíram. A Pathé Baby forjou uma porção de sucedâneos dos irmãos Lumière, além de flagrar os primeiros passos de um conjunto de cineastas experimentais. 
Se a cena colorida das duas jovens mães anônimas, com os bebês nos braços, a comerem cerejas na atmosfera primaveril, já encanta por si só, ela adquire transcendência ao dialogar com uma série de imagens familiares rodadas do Japão ao Canadá, ao Chile e ao Brasil (há mesmo um par de filmes familiares saídos da UFF-RJ). O filme é composto de três partes, conforme detalha o programa da Giornate – o qual, aliás, oferece informações detalhadas de cada uma das obras: travelogues, interações com seres amados e experimentos. O sexteto a quem coube o acompanhamento musical da obra compôs uma peça amorosa e idílica, provocando no público o mergulho sentimental ocorrido quando mergulhamos no baú de fotos de família. 


Já a segunda obra do programa é, como sublinha Jay Weissberg, um achado. Julgada perdida, “Circe the Enchantress” (1924) foi encontrada num arquivo de Praga (numa versão que, embora incompleta, é bastante compreensível). 
A obra é um veículo típico do estrelismo norte-americano, dando espaço para que a estrela desdobrasse ad nauseam o seu tipo artístico. Mae Murray, dançarina profissional além de atriz – ela fora estrela, entre outros, do Ziegfeld Follies –, é nele uma cria da idade do jazz-band, nada devendo à “Mademoiselle Cinema” talhada pela literatura do escritor brasileiro Benjamin Costallat um ano antes. A trama a associa a Circe, que na “Odisseia” é a filha do Sol, feiticeira que habita a ilha de Eana, transforma homens em porcos e enreda Ulisses na viagem de volta do herói depois da guerra de Troia. 
Surpreende a remissão clássica que a obra constrói logo em seu prelúdio, no qual Murray torna-se a Circe da fábula, que com uma etérea túnica helenística transforma os homens em feras, depois de saciar-se deles – a produção literária e teatral desta época mostra que o público de então estava muito mais escolado na mitologia grega que o de hoje. 
Mae Murray, Sally Milgrim no filme, é uma descendente à altura de Circe. Loura platinada, de cabelos curtos, boca vermelha, joias caras e vestido colante, ela entretém um séquito de homens que, no geral, valem menos que os porcos de sua legendária ascendente – malgrados eles se vistam segundo a última moda das altas rodas norte-americanas. Um tipo destoa do conjunto, o Dr. Wesley Van Martun (o rígido e pouco encantador James Kirkwood), homem que encara com sobranceria os desatinos da jovem, desviando-se de seus encantos. É obviamente por ele que ela se apaixonará. 
Ao ser repudiada pelo médico, o público descobrirá o outro lado dela: a jovem tresloucada habitara quando menina um convento, para o qual retorna, depois de sumir das vistas de seus antigos convivas sem deixar rastos. Ali, sofre um atropelamento ao tentar salvar uma orfãzinha, sendo internada com o risco de tornar-se paraplégica. Sally refaz o périplo que cabe a todas as personagens transviadas que pleiteiam a salvação. A essas alturas, o Dr. Wesley encontrara o diário da moça e descobre o seu paradeiro. Ao vê-lo, ela caminha em sua direção – cambaleante, porém a caminho da cura. 
Se o entrecho é mesquinho, como o leitor se deu conta, a realização é digna de nota. A montagem do filme alterna um ritmo sincopado bastante tributário do jazz, usado em sua primeira parte, com uma lassidão melancólica, nas cenas em que a jovem deixa o frenesi e ruma ao reencontro com a infância. A música de Donald Sosin mimetiza com inteligência esta ambivalência: é a princípio jazzística, entregando-se, na metade final da obra, ao idílio. 
No que concerne à temática, é igualmente digna de nota a fauna humana que circunda Sally, que faz emergir de modo modelar a loucura dos roaring twenties – a qual o cinema ajudou a construir. Destaque-se a banda de jazz (nessas alturas o piano de Sosin dá lugar à composição de um ensemble, que recupera o frenesi das jazz-bands da época) e o homem que, em travesti, anuncia-se como “a fada madrinha que vai realizar todos os desejos” da protagonista – ele não consegue; a salvação da mocinha estava na volta a um (aborrecido) passado livre de tentações.

segunda-feira, 16 de outubro de 2023

Giornate del Cinema Muto de Pordenone 2023 – Dia 6


Dia 6, quinta-feira, 12 de outubro 

Nos últimos anos a Giornate vem homenageando a “Ruritania”, referência ao reino fictício da Europa central que foi palco do romance “O Prisioneiro de Zenda”. Esta fábula pariu outros tantos reinados igualmente fantasiosos dali por diante (curiosos, busquem pela palavra-chave neste blog para acessarem os demais textos a respeito dos filmes exibidos na Mostra com esta temática), a exemplo do principado de Silistria, onde se passa a história do longa alemão “Eine Frau Von Format” (“A Lady of Quality”, Fritz Wendhausen, 1928). Antes do longa foi exibido o curta francês “Ankunft Des Fürsten Wilhelm I. Zu Wied In Durazzo (Albanien) März” (1914), tematizando a família real dos Balcãs, espaço geográfico no qual se situam os filmes da “Ruritania” – daí o caminho de mão-dupla entre a ficção e a história que esses programas da Giornate procura estabelecer. A música ficou a cargo de Elaine Loebenstein. 
“Ankunft Des Fürsten Wilhelm I…” é composto por algumas tomadas da chegada do príncipe Wilhelm I na Albânia que não surpreendem pela criatividade, quando consideramos os filmes do tipo rodados então: a câmera toma verticalmente uma fileira de oficiais que esperam o príncipe para cumprimentá-lo, reverenciando-o quando ele se aproxima, etc. 
A ele seguiu-se a obra principal do programa, “Eine Frau Von Format”, que apresenta outro desses raros exemplos de sororidade no cinema dos anos de 1920, a respeito do que falei ao resenhar “Rivalen”, dois dias atrás. A trama é oriunda da opereta homônima de Michael Krasznay-Krausz, que estreou em Berlim em fins de 1927. 
 A dama do título é Dschillu Zileh Beu (uma encantadora Mady Christians), embaixatriz da Turquísia, a qual disputará uma ilha nas imediações de Silistria – que a princesa Petra (Diana Karenne) venderá para que possa renovar o seu guarda-roupa (“Você quer que eu ande nua”, ela questiona candidamente o seu ajudante de ordens quando anuncia-lhe a venda) – com o Conde Gézza von Tököly, o embaixador de Illyria. Malgrado o filme tenha início com a panorâmica de um mapa detalhando a localização de todos esses países, todos eles são ficcionais. 
A trama é repleta de quiproquós. Chega primeiro a Silistria o conde Gézza, de peito estufado, testa larga e bastos bigodes – o clássico tipo galanteador. Sua diplomacia se baseará em seus atributos físicos, o público logo verá. Ao descobrir que a princesa é uma jovem espevitada da idade do jazz-band, procurará conquistá-la a todo custo. 
Todavia, o conde não conta com a chegada à cidade de uma oponente à altura – aliás, superior a ele –, Dschillu Zileh Beu. Mulher moderna, que chega ao reinado sozinha e de carro, hospedando-se sem-cerimônia num pardieiro local. “Eu sou a diplomata”, ela diz ao ajudante de ordens da rainha quando ele lhe pergunta pelo marido dela. O filme flerta com a onda feminista que então chegava às costas da Europa e das Américas – flerta mas lamentavelmente não a desposa, já que a jovem terminará apaixonada pelo conde galante e decidida a largar o ofício, ensinando-o, todavia, a se transformar num diplomata tão aparatado quanto ela. 
No entanto, antes do desfecho temos a chance de observar o mais bem-humorado toma-lá-dá-cá entre os dois diplomatas, em que há mesmo uma notável cena em travesti, colocando em primeiro plano a fluidez entre os gêneros sociais, coisa que os figurinos e os cortes de cabelo da época já principiavam a fazer: procurando atrapalhar o conde na conquista da princesa, Dschillu, que já tem os cabelos cortados à la garçon, finge-se de camareiro do conde durante um jantar que ele oferece à jovem. 
Antes de Dschillu trocar a carreira pelo casamento, caberá a ela conquistar a ilha em disputa, não sem antes salvar Petra, fingindo aos presentes que a echarpe que a princesa incautamente esquecera na residência do Casanova de Illyria não pertencia mais a ela, mas sim fora um presente dela a Dschillu, a futura esposa do rapaz. 
Para além do entrecho interessante, o filme encanta pelas externas tomadas em Dubrovnik, na deslumbrante costa da Dalmácia.

domingo, 15 de outubro de 2023

Giornate del Cinema Muto de Pordenone 2023 – Dia 5


Dia 5, quarta-feira, 11 de outubro 


Chegamos na metade da Giornate. O programa do dia (com cerca de 50’ de duração) é composto pela exibição de um conjunto de filmes britânicos preservados pela Filmoteca da Catalunha nos primeiros quinze anos da cinematografia: “Early British films from the Filmoteca di Catalunya, 1897-1909”. O acompanhamento musical é de John Sweeney. 

Estamos aqui diante de um medium que se descobria e explorava todas as suas inúmeras potencialidades; na égide do “cinema de atrações”, que tanto fascínio despertou desde o público frequentador dos entretenimentos disponíveis nos maiores ou menores centros urbanos, até uma variada sorte de literatos do redor do mundo. Num diapasão dramático, em 1896, o escritor soviético Maxim Gorky refere-se a este cinema como o reino das sombras, lugar sem som e sem cor, habitado por espectros silenciosos e moventes (trecho mais longo desta bela crônica encontra-se aqui). 

Um ano mais tarde, o cronista carioca Figueiredo Coimbra apreende este mundo com mais deleite. Encenando uma conversa de um jovem casal que assiste a uma sessão do “Animatógrafo Super Lumière”, no centro da cidade, ele procura destacar pelo viés do humor o que faltaria a este novo entretenimento: 


— Viste bem essa rua de Londres? 

— Vi!... É uma fotografia. Mas notei pouca animação, apesar das carruagens. 

— Havia mais povo do outro lado. 

— Que lado? 

— O lado que se não via. 

— Eu tinha desejo de ir lá, quando de repente a rua acabou. 

— Foi um relâmpago, mas bastou, filhinha, para se poder calcular o que é Londres. Uma grande cidade, uma cidade enorme...*


Animatógrafo Super-Lumière,
A Notícia. Rio de Janeiro,
p. 4, 11-12 dez. 1897.


O casal comenta os filmes procurando dar um sentido para aquilo que lhes falta. Falamos aqui de filmes curtos, com cerca de um minuto de duração. Muitos deles tratam-se de cenas tomadas do natural, em que a câmera flagra um acontecimento que principia antes de o registro começar, e termina quando o registro já se findou. 

Ao meter-se no meio dos acontecimentos, o este cinema recupera uma premência que é aquela da modernidade. Mais que isso, mostra que, embora seja um espetáculo que se venda muitas vezes dentro dos recintos teatrais, supera o teatro, ao sinalizar ao público a existência de um fora de campo. O cinema apontava para a existência daquilo que não podia ser visto. O objeto que fugia das vistas do público denotava a dimensão do mundo de modo muito mais contundente do que o teatro fizera até então. 

Os primeiros anos da década de 1890 viram o nascimento de experimentos voltados a dar moção à imagem fotográfica, dentre os quais se incluem o Kinetoscópio de Thomas Edison e o Cinematógrafo dos Irmãos Lumière. O inventor inglês Robert W. Paul é outro desses homens. Seu “Animatógrafo” percorreu o mundo – embora o dispositivo comentado por Figueiredo Coimbra em 1897 denomine-se “Animatógrafo Super-Lumière”, provavelmente tratava-se de um exemplar do aparelho concebido por Paul. 

O escopo temático dos registros de Paul assemelhava-se bastante àqueles colhidos pelos irmãos Lumière, mais conhecidos do público, e sinalizavam, como apontei acima, para uma série de caminhos: sketches cômicas, trucagens, phantom rides – cenas tomadas da frente dos veículos, que furavam o burburinho urbano –, desfiles e demais acontecimentos do dia a dia, panorâmicas de sítios históricos (a exemplo de Veneza) ou, ainda, de longas travessias de trem, a tomarem o cinema como o veículo de uma viagem sem sair do lugar.


Fonte: F. C. (pseud. de Figueiredo Coimbra). Diálogos. A Notícia, Rio de Janeiro, p. 1, 11-12 dez. 1897. 

sábado, 14 de outubro de 2023

Giornate del Cinema Muto de Pordenone 2023 – Dia 4


Dia 4, terça, 10 de outubro 


O programa do quarto dia da Giornate é exclusivamente por “Rivalen” (“The Miracle of Tomorrow”, Harry Piel, 1923), com acompanhamento musical de Gabriel Thibaudeau. 

Segure-se, público, para conhecer Harry Piel agora de corpo e espírito, já que ele não apenas dirige, mas protagoniza o estonteante longa alemão “Rivalen”, segundo de uma trilogia. Aqui, as aventuras das duas primeiras obras apresentadas no primeiro programa voltado ao artista, dois dias atrás, multiplicam-se e ganham estofo simbólico. 

Os contornos da trama são enformados pelo gênero filme de aventura. Aqui, no entanto, o entrecho romântico ganha urgência. Piel mal esconde a associação entre a sua persona cinematográfica e o personagem que desempenha: ele faz o papel de si mesmo, do homem belo, forte e esbelto por quem a arfante jovenzinha Evelyn Evans (Inge Helgard) apaixona-se perdidamente. O pai dela é contra o relacionamento, considerá-lo (vejam-se as semelhanças com “The adventure of a journalist”) um desocupado. Ela, no entanto, o faz entrar furtivamente num baile à fantasia que organizava na residência da família. 

O baile, no qual o filme se centra, é antológico. Um grande salão tem esculpida em seu fundo uma criatura das trevas cujos olhos são duas janelas, e cujas pálpebras são toldos que se abrem e fecham à medida que seus frequentadores querem privacidade. Pelo salão desfilarão convivas vestidos de diabos e demais seres sombrios. Um frenesi preside a filmagem do baile, desde a chegada dos convidados até a entrada de Piel e do Rival do título: cientista inescrupuloso que tenta de tudo para se casar com Evelyn. Um crescendo dramático sucede-se ao deboche inicial, quando o lugar se assemelhava a uma sucursal da Babilônia. 

A ânsia recupera o epíteto de “anos loucos” atribuídos aos anos de 1920. Pouco depois de Piel exibir seus dotes acrobáticos e pedir a mocinha em casamento, um robô – o primeiro jamais presente num longa-metragem, segundo Jay Weissberg, diretor da Giornate – adentrará pela bocarra da criatura esculpida nos fundos do salão de festas e submeterá o pai da mocinha. Neste meio tempo, um dos pouquíssimos exemplos de sororidade que jamais vi no cinema desta época aparece na pele de Julieta Carnera (Maria Wefers), amante do “Rival”, que principia adentrando a festa para persegui-lo e acaba ajudando Evelyn a se safar. O nome e o tipo hispânico da jovem são mimetizados, pelo compositor Gabriel Thibaudeau, por um tango, no primeiro momento em que ela surge em cena, num trem, no princípio da obra – esse contorno meio étnico, meio cômico presidirá as suas entradas, que tanto darão leveza à história quanto sublinharão o caráter assertivo da jovem. 

Julieta troca de lugar com Evelyn, e é sequestrada pelo próprio amante. Sem se dar conta da troca, Piel segue-os. Os signos da técnica, que visitaram os filmes rodados por ele uma década antes, multiplicam-se aqui, dentre os quais a cápsula de vidro onde ele ficará preso pelos criminosos, a qual será mergulhada no mar (a cena em que os comparsas do vilão param de bombear oxigênio para dentro da cápsula, e o ar vai rareando, são efetivamente agônicas). 

 Nessas alturas, Evelyn já viera de descobrir o destino do amado, e já aceitara casar-se com o “Rival” para salvá-lo. Uma montagem paralela ilustra, de um lado, o esforço de Piel para resgatá-la, depois de se desvencilhar da arapuca, e do outro, o sofrimento dela pelo destino que a esperava. Há um equilíbrio muito bom, aqui, entre a ânsia e o sofrimento, os fortes e os pianos, que se alternam para um final surpreendentemente infeliz, considerando-se a cinematografia da época e especialmente este gênero de filmes: Piel chega a salvar a jovem, mas não impede o casamento – o desfecho da história o público, já então cativado pelas personagens, não conhecerá, já que ele se desenrolará apenas na terceira e última obra da trilogia.