Na semana passada, fui ver Claudia Raia incorporar Sally Bowles em “Cabaret”, produção cuja trilha sonora eu amo há tanto tempo – muito antes de ter visto pela primeira vez o filme protagonizado por uma extraordinária Liza Minnelli, merecidamente premiada com Oscar de Melhor Atriz em 1972. Saindo do espetáculo, decidi tirar do baú das memórias o post que há tanto planejava escrever sobre o filme, desta vez incluindo a peça no imbróglio: para convidar (fortemente) o leitor a assistir ao filme e à peça; nem que seja para vê-los por detrás de meus olhos...
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“Cabaret” (Bob Fosse, 1972) é um dos grandes filmes de todos os tempos. Épico pelo modo como reconstrói a Alemanha pré-nazista, atolada em dívidas e em vias de uma conflagração social que acaba por se realizar no plano da política, com a subida de Hitler no poder. A história se passa em 1931, ano em que o partido nazista estava prestes a alcançar a maioria de assentos no parlamento alemão, acontecimento que garante a Hitler o posto de chanceler – primeiro passo do trajeto certo rumo à presidência do país. O momento histórico tomado por Joe Masteroff para a escrita do libreto de “Cabaret” (1966) é escolha certeira.
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A época era de incertezas para a Alemanha. Desde uma década antes, em “Mein Kampf”, Hitler já dera provas de suas tendências antissemitas. No poder, começaria a levá-las às vias de fato, guiando um atentado contra a comunidade judaica que deu a gente sabe onde. Por outro lado, a mão de ferro do líder nazista conduzia o país para fora da crise econômica, enquanto que seu carisma impelia-o cada vez mais para o centro da arena política: eventos como a convenção de Nuremberg de 1935, cinematografada no assustador “
O Triunfo da Vontade” (1936), dão mostras de onde ele chegaria não muito tempo depois.
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A atmosfera de 1931 prenunciava a catástrofe. Nada melhor que tomá-la como recorte temporal para uma obra cujo título remete ao gênero de entretenimento historicamente conhecido por sua intervenção política, o
cabaré. Em Paris, onde nasceu, o gênero esteve sempre imbricado na política. Isabelle Marinone, no ótimo “Cinema e anarquia” – livro que o acaso acabou de fazer cair em minhas mãos – traça o percurso dos militantes do movimento anarquista por cabarés como o
Cabaret du Chat Noir, espaços em que a crítica ao governo tinha como meio de expressão os teatros de sombras, ventríloquos e números musicais.
A ruptura com o status quo é característica que norteia a intervenção dessas casas: daí o humor ferino voltado aos governantes e aos símbolos de identidade social que eles impunham aos cidadãos, como o amor à Pátria e a terra; daí a negação da moral burguesa, efetivada na defesa dos foras-da-lei e reversão dos hábitos e dos símbolos impostos às pessoas. Migrando para a Alemanha no início do século XX, o gênero conservou a sátira política. Vestiu-a, no entanto, de humor negro. Essa ânsia de se fazer graça com as situações desesperadoras, comum ao humor negro, encontra lugar perfeito para sua realização naquele momento histórico escolhido por Masteroff.
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Sally Bowles é o retrato perfeito da parcela da classe artística que encontra, no cabaré, solo fértil para plantar sua ojeriza pelos “bons-costumes”. É mulher liberta dos ditames da sociedade burguesa do início do século – sexualmente exacerbada e possuidora de uma incontrolável inclinação para a bebida.
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A Sally que brilhou por anos na produção da Broadway (foram 1165 apresentações entre 1966 e 1969, segundo o IBDB) eu não conheci. No entanto, conheço bem a de Liza Minnelli, que consegue ser irresistível em sua molequice, rebeldia, revolta e calor humano. Liza desincumbiu-se com perfeição da, já naquele tempo, célebre personagem. Tinha 26 anos na época e passara boa parte deles cantando, incentivada pela mãe Judy Garland, de quem herdou a voz poderosa e o talento como intérprete. No momento em que dá vida à Sally Bowles, já tinha total domínio de voz e de palco – fora treinada, em grande medida, na mesma Broadway onde nascera sua personagem. No entanto, a Sally de Liza nasceu para as telas. A naturalidade que ela imprime à protagonista – característica patente nas parcelas dramática e musical do filme – coaduna-se bem com o cinema, que clama por uma menor amplidão dos gestos.
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Seu desempenho cai como uma luva quando contraposto ao do caricato mestre de cerimônia (desempenho magnífico de Joel Grey, que deu vida à personagem do M.C. durante todo o percurso da peça na Broadway), embora o desenho dos caracteres de ambos – e de todos os artistas do cabaré – sejam tributários dos teatros de marionetes que nasceram junto com os cabarés parisienses. Igualmente acertada é a configuração de seu par romântico, estudante americano (um louro e
angelical Michael York) que, de mudança para Berlim, encontra Sally e logo é atado pelo condão de prazer, liberdade e desvirtuamento que emana dela.
O mundo de Sally é o cabaré Kit Kat Club, espaço no qual ela se molda para agir nos palcos da arte e da vida – metáfora que encontrará sua final verbalização na canção-tema do filme, misto de declamação ácida e alegria de viver. Cadê adjetivos pra eu me referir a essa música, deus do céu... Ao cantá-la, Liza repete a sua performance que teria arrepiado os cabelos de Charles Aznavour – como ele faz questão de ressaltar em sua autobiografia – quando ele a ouviu numa casa de shows. Além disso, sua interpretação contém toda a irônica suavidade que ela faz sua personagem exalar durante todo o filme.
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No que toca à cinematografia, Bob Fosse arrasa ao trazer para a forma do filme toda a revolta política historicamente atrelada ao gênero de espetáculos que ele tematiza. A câmera começa por mostrar, numa montagem intercalada, a chegada de Brian Roberts à Alemanha e o
mundo que ele encontrará, mundo metaforizado pelo efervescente Kit Kat Club, com suas mulheres pintadas e seminuas, suas libações, sua sexualidade dúbia e seu humor negro que a todo o tempo bota em cena, parodisticamente, os desmandos do partido nazista. Do encontro entre Sally e Brian nasce o atípico (anti-burguês) romance, que depois se torna um triângulo amoroso tendo como o terceiro vértice um patriótico ariano, membro orgulhoso do
status quo.
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Através das andanças dos três por uma Alemanha em vias de aderir maciçamente ao nazismo, vemos metaforizada com agudeza a imagem do homem nazista - indivíduo num só tempo charmoso, sedutor e perigoso: imagem igualmente impressa pelos soldadinhos louros e rosados que entoam um sugestivo “Tomorrow belongs to me”, seguido da saudação nazista (e me emocionam a cada vez que os vejo, o que patenteia a ambiguidade que o diretor propõe criar para o grupo).
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Imagens fragmentárias de dentro e fora do cabaré são costuradas de modo a dialogarem ou se chocarem umas com as outras, reforçando o explicitado na letra da canção-título, de Fred Ebb: “Life is a Cabaret, old chum. So come to the Cabaret.”. Letra cantada por uma Liza Minnelli já a essa altura sublime, coroando cabalmente um desempenho que foi brilhante durante todo o espaço do filme. Rosada, altiva e grandiosa, Sally provará ao mundo a máxima defendida na canção: ao invés de um marido aburguesado, de um filho enfadonho, e de uma vida de lavar fraldas, escolhe os palcos, onde poderá realizar aquela existência artística explicitada pela música que canta.
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Ao tomar nos ombros a personagem imortalizada por Liza Minnelli, Cláudia Raia assume uma empreitada de risco. Ela se sai muito bem. Sua Sally tem pouco da de Liza – o que está longe de ser uma crítica. Sendo menos jovem, é igualmente menos cheia de vida, mais sombria e perturbadora. Não conheço a peça da Broadway, não sei se isso foi algo pensado ou casual, mas penso que caiu bem o viés decadentista que uma Cláudia Raia sobejamente maquiada e assustadoramente magra dá à sua criação.
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No palco, ela parece uma gigante quebradiça; ébria todo o tempo e de uma intensidade um tanto quanto assustadora. Provocadora. Assim como seu M.C., um sensacional Jarbas Homem de Mello, que transforma o assexuado M.C. de Joel Grey num homem que exala sexo por todos os poros – e exala uma sexualidade ambígua, bem pouco burguesa, tão bem cabível num
show de cabaré. O traçado da personagem de Sally pontua sua decadência no seu mais alto grau. Ela não é a moça esvoaçante de Liza, é claramente uma prostituta, moradora de um quartinho apertado do Kit Kat Club. É lá que começa a se envolver com um Brian Roberts que desde logo já deixa claro seu homo(bi)ssexualismo. Na peça não há tempo para o trabalho cuidadoso com a sexualidade do personagem de Brian, como acontece no filme. O personagem do ariano sai igualmente esvaziado de sua ambiguidade. Mas o soldadinho mirim é muito bem composto, numa das melhores cenas da peça e, na, creio eu, melhor versão musical dela. A paulatina interferência do nazismo na vida dos alemães é construída com eficácia e beleza na cena do noivado da dona da pensão com o judeu; a crítica social demolidora fomentada pelo cabaré é patenteada na (ótima) cena em que M.C. simbolicamente interfere na paz do novo casal – sem contar a cena do M.C. com a macaca, pra mim uma das mais venenosas críticas de todos os tempos, que conserva na peça toda a força que tem no filme.
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A peça é de alta qualidade e vale a visita no teatro. Porém, penso que uma Sally menos submetida ao vício e à prostituição – ou seja, menos vítima do
status quo, aumentaria seu poder de crítica social. A Sally de Liza era agente de seu destino; a de Cláudia parece ser sua vítima. Gostaria igualmente de ver a banda aparecendo mais – a iluminação resolveria nos momentos em que ela precisasse ser ocultada, se bem que eu a quereria todo o tempo em primeiro plano, pra fazer essa costura entre palco e vida proposta no filme. E adoraria ver Cláudia Raia entoando, de lambuja, a versão original de Cabaret (isso não faz parte do escopo do espetáculo, eu sei...). As versões brasileiras das canções, criadas por Miguel Falabella, são surpreendentemente boas. Mas a trilha sonora de "Cabaret" é a trilha sonora de "Cabaret"... Incomparável.
E agora sim, fechando, meu bolso de estudante não consegue assimilar um ingresso tão absurdamente caro (vá o leitor ao site do Ingresso Rápido e
confira por si só). Além de ser proibitivo para a maciça maioria da população, é um contra-senso que uma peça com esse tom crítico – tematizando um gênero de espetáculos nascido historicamente entre a empobrecida classe artística dos Novecentos -, seja feita hoje só para os endinheirados. Meia dúzia de ingressos populares por sessão não bastam num teatro tão grande quanto o paulistano Procópio Ferreira.
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A primeira imagem é do pôster que anuncia as primeiras encenações de Cabaret. Depois do Broadhurst Theatre o musical ainda iria para o Imperial Theatre e o Broadway Theatre.