quarta-feira, 6 de novembro de 2024

Um hino à liberdade: "Nabucco" (Giuseppe Verdi) em BH


Entre os dias 17 e 23 de outubro, o Palácio das Artes de Belo Horizonte reencenou, depois de 13 anos, a montagem de Nabucco (1842) idealizada por André Heller-Lopes, com cenografia de Renato Theobaldo. A obra de Giuseppe Verdi, com libreto de Temistocle Solera, é conhecida sobretudo por “Va, pensiero, sull’ali dorate”, quiçá o número coralista mais afamado de todos os tempos, repetido em todas as galas do gênero. 
Baseada no (melo)drama em quatro atos Nebuchodonoser (1836), de Auguste Anicet-Bourgeois e Francis Cornu, a obra operística faz emergir as características mais indeléveis deste gênero teatral: o traçado plano das personagens, que exibem à flor da pele as suas qualidades e os seus defeitos, e a dicotomização da trama, que se transforma numa luta do bem contra o mal, dos judeus contra os assírios –, mais especificamente, dos cristãos contra os não-cristãos. 
O gênero melodramático restitui à população francesa, no interior da cena teatral, o âmbito da religião, contestada durante a Revolução (quando muitos templos foram postos abaixo). A visada é conservadora, aproximando-se as personagens boas do ideário do cristianismo e vice-versa. Vertida para o gênero operístico, Nabucco, além de servir a já religiosa sociedade italiana, ganha um aspecto simbólico: 
Produzida durante o processo de unificação italiana, quando ainda inexistia o país que conhecemos hoje, e a Itália, em sentido lato, enfrentava o domínio austríaco, a obra torna-se um libelo à liberdade, entoado de forma contumaz no referido coro, no qual os hebreus escravizados dão asas aos pensamentos, já que seus corpos jazem submetidos ao jugo assírio: “Vá, pensamento, sobre as asas douradas/Vá, e pousa sobre as encostas e as colinas/Onde os ares são tépidos e macios/Com a doce fragrância do solo Natal!”. 
Embora construídas em contextos históricos específicos, as obras de arte se abrem a leituras múltiplas à medida que atravessam tempos e espaços. O gênero teatral, afetado pelas reflexões do pós-moderno e do pós-dramático, e o operístico, pelo Regietheater, quando tomam a peito a encenação de uma obra clássica, não raro intervêm nela até tornarem-na irreconhecível; pretendendo, assim, eliminar a carga de preconceito que nela veem – leitura anacrônica, que rejeita o fato de essas obras terem sido produzidas num tempo específico, e, portanto, trazerem impregnadas marcas desse tempo. A montagem de Nabucco capitaneada por André Heller-Lopes caminha a contrapelo disso, e é isso, suponho, que a torna tão bem-sucedida. 
Ao invés de bater de frente com a dicotomia colocada pelo libreto, desconstruindo-a e, portanto, desmontando a estrutura que põe a ópera em pé, o sempre competente Heller-Lopes, em consonância com o magistral Theobaldo, os belos figurinos de Marcelo Marques e a eficiente luz de Fábio Retti, resolve situá-la historicamente. Além de dar fluência ao âmbito musical, isso favorece a legibilidade do enredo intrincado por parte do público. 
Jerusalém, e depois a Assíria, são construídos por grandes e maleáveis molduras verticais revestidas por canudos de papelão que, amoldados, dão a ver, à medida que são manipulados, as silhuetas das divindades. Os fiéis cristãos e o exército de Nabuco, que em breve invadirá o templo, são claramente discerníveis. Os primeiros trazem kipás à cabeça e talits nos ombros – ambos os acessórios representam o respeito a Deus, e o segundo é usado como cobertura durante as preces. 
A representação da fé exacerba o desrespeito de Nabuco, que invade o templo montado num cavalo dourado – signo, de resto, da sua megalomania, como o bezerro dourado que será destruído quando o rei da Assíria põe fim à sua sanha, no desfecho da história. Temos aqui um manejo inteligente dos signos, que além de conseguirem avançar a história, dialogando com o repertório cultural, ainda chancelam a inteligência do público, permitindo que ele construa a sua interpretação sobre o que vê. 
Isso não significa ausência de liberdade interpretativa. A encenação impregna as personagens – sobretudo as femininas – de alguma psicológica. Por exemplo, no momento em que Nabuco é tocado pela loucura, punição divina pela sua arrogância, atravessam os olhos de Fenena (Denise de Freitas), a sua filha legítima e a “mocinha” da história, um brilho ganancioso semelhante àquele que tem a sua irmã ilegítima Abigaille (Eiko Senda), a “vilã”. A sede de poder toca a todos. Também Abigaille ganha curva dramática, da ira, quando descobre que seu amado Ismaele ama a sua irmã, à tristeza, quando narra seus sonhos de felicidade ao lado dele, ao seu aparecimento derradeiro, moribunda diante do bezerro de ouro destruído. 
E mesmo Nabuco (Rodrigo Esteves), que migra do desejo cego de conquista – o tronco ereto com que invade o templo judaico – até o total despojamento de si, e, enfim, à tomada de consciência de sua sanha. Esse jogo de cena resulta de um trabalho de excelência do diretor cênico e da inteligência do elenco. Heller-Lopes conseguiu rendimento dramático também do Coral Lírico de Minas Gerais, que se mostrou circunspecto, belicoso e melancólico nos momentos certos. Enfim, estivemos, em BH, diante de teatro de verdade, que abordou com profundidade as relações humanas. 
Dirigido por Hernán Sánchez Arteaga, o coro realizou um belo trabalho. Timbrou admiravelmente no famigerado “Va, pensiero, sull’ali dorate”, cena, ademais, inesquecível, em que o grupo, sob o cárcere assírio, mimetizou fisicamente o movimento de seu pensamento, escalando as grades que o prendiam em terreno inimigo. Porém, igualmente amalgamou-se bem aos solistas, num número como o “Viva Nabucco!”, no final do primeiro ato, extremamente bem realizado também devido à regência segura de Ligia Amadio, a quem coube a direção musical da produção. 
Os papéis protagonistas couberam a alguns dos mais respeitados artistas do cenário lírico brasileiro. 
A soprano Fabíola Protzer, no pequeno papel de Anna, irmã do sumo sacerdote judaico Zaccaria, exibiu um belo timbre e também correspondeu, no aspecto cênico, às exigências do diretor. O papel do sacerdote coube a Sávio Sperandio, que já havia realizado, no mês anterior, um ótimo trabalho na produção paulistana da obra. Com seu timbre potente e sua dramaticidade sempre colocada a serviço da cena, Sávio passou com agudeza pelo seu número de entrada, em que ele apresenta Fenena como escrava aos seus asseclas, e tinge de ira a oração “Tu sul labbro”, quando, no 2. ato da ópera, já se encontra sob domínio de Nabuco. 
O tenor Giovanni Tristacci criou um Ismaele suave e passional. Seu timbre brilhante fez-se ouvir no trio “Fenena! O mia diletta!”, no qual ele, ademais, se mostrou um responsivo parceiro cênico para sobretudo Denise de Freitas, de quem foi o par romântico, mas também para Eiko Senda, cuja personagem nutria por ele um amor pouco abnegado. 
Na parte de Fenena, a mezzosoprano Denise de Freitas fez emergir as superlativas qualidades de atriz e de cantora que são uma constante em seus trabalhos. Do ponto de vista teatral, foi uma Fenena extremamente convincente e humana, somando entrega abnegada (ao amor, aos seus oponentes) e assertividade. Com sua conhecida potência vocal, destacou-se nos ensembles – a exemplo do Finale do 2. ato., e demonstrou domínio vocal e profundidade dramática ao entoar, num misto de tristeza e esvaecimento, a ária “Oh, dischiuso è il firmamento”. 
Coube a Eiko Senda o papel de Abigaile, e ela deu corpo com competência à ambiciosa assíria que paulatinamente vê o seu mundo ruir. A leitura do documento em que descobre que é filha não do rei, mas de escravizados (“Anch’io dischiuso un giorno”), a sua disputa com Nabuco, no 3. ato (“Donna, chi sei?”) e, enfim, a sua conversão, no recitativo final, foram cantadas de forma passional. 
O papel-título coube ao barítono Rodrigo Esteves, que o desempenhou com maestria. Ótimo ator, imprimiu com destreza análoga a heráldica da personagem do rei, na primeira parte do espetáculo, e construiu com delicadeza a sua insânia, na segunda parte. Seu timbre potente, mas também quente e aveludado, resultaram numa performance notável. 
A coesão do conjunto, acompanhado pela ótima Orquestra Sinfônica de Minas Gerais, resultou num espetáculo emocionante. Este resultado denota algo que deve ser diretriz numa montagem operística: a escolha de vozes apropriadas para os papéis e o respeito do encenador pela obra que tem em mãos, e pela carga cultural que, para o bem ou para o mal, ela carrega.

As imagens foram retiradas das redes sociais dos participantes da encenação.

quinta-feira, 31 de outubro de 2024

Giornate del Cinema Muto de Pordenone 2024: parte 8

“La Bohème” (1926)

Por fim, o programa Il canone rivisitato/The canon revisited [O cânone revisitado] abordou obras no geral já conhecidas do público amante do cinema silencioso. De novo, destaques são a qualidade da cópia disponível, a possibilidade de vê-la na tela grande, ou ainda a inventividade do acompanhamento musical. ´
Este último caso aplica-se à deliciosa obra alemã “Saxophon-Susi” (1928), de Carl/Karel Lamač, que respinga, em sua temática e em sua montagem, a sinuosidade do jazz, mimetizada maravilhosamente pelo trio Neil Brand, no piano, Frank Bockius, na bateria, e Francesco Bearzatti tecendo o leitmotif de Susi no saxofone. 

Desempenhada por Anny Ondra, a protagonista é uma jovenzinha da elite econômica que, por muito amar o jazz e o teatro ligeiro, seu palco principal de expressão, acaba trocando de lugar com a amiga pobre, juntando-se a uma companhia teatral mambembe, enquanto a amiga é internada numa escola de boas-maneiras – local contrapontístico à vivacidade que poreja da trupe alimentada por este gênero musical que então era considerado o epítome da modernidade. Susi torna-se, às barbas da família, dançarina e saxofonista da moda. 
Uma cena impagável é quando a jovem, retornando à sisuda casa onde crescera, é convencida pelos pais a convidar as amigas da suposta escola de boas-maneiras para um chá, e alguns acordes da música da moda – não por acaso, tocada por Susi – soam no gramofone da família, levando todo o grupo a abandonar-se aos irresistíveis requebros do jazz, sob os olhares perplexos dos pais da jovem e de toda a ancestralidade que preenche as paredes do local. 
Mas o “cânone revisitado” em Pordenone este ano foi sobretudo o dramático. A começar pelo dinamarquês “Blade af Satans Bog” (Leaves from Satan’s Book, 1920), de Carl Th. Dreyer, rodado pela afamada Nordisk – longo, porém, também belo, no esforço enciclopédico comum àqueles tempos de englobar toda a história do mundo no espaço de uma película. 
Nele, quatro episódios separados são atravessados pela personagem de Satanás, anjo caído que recebe de Deus a condenação de tentar os humanos. O filme cobre os últimos momentos de Jesus, depois da traição de Judas, a inquisição espanhola, a Revolução francesa e, finalmente, a guerra civil finlandesa, no ano de 1918. Neste último episódio, uma jovem funcionária do telégrafo é tentada a cometer um ato de traição. A resistência da moça faz com que o ciclo fatal se quebre. 
Da Dinamarca de 1921 para a Itália de 1917. A obra em questão é “Rapsodia Satanica”, de Nino Oxilia, rodado pela Cines e protagonizado por esse epítome de diva que foi Lyda Borelli; filme sobre o qual já tive a oportunidade de escrever no início de 2021. Naquele momento eu o havia visto num canal num link do Youtube, numa versão que passou pelo crivo do laboratório bolonhês L’Immagine Ritrovata – o qual devolveu toda a pujança original deste filme feito com as mais diversas técnicas de coloração da imagem. Vê-lo na tela grande, numa experiência tão próxima àquela vivenciada pelo público de cem anos atrás, foi uma experiência inesquecível. Borelli, Oxilia e a Cines concorrem para criar, de forma absolutamente sedutora, um veículo para a exacerbação dos dotes físicos (e metafísicos) de sua estrela, mulher feita de luz. “Rapsodia Satanica” coloca exemplarmente à baila o funcionamento do star system. O fio de enredo que o sustenta é mera desculpa para o desfile da diva em cena, tingida pelas cores as mais estupefacientes. 
E, enfim, esta revisita do cânone brindou-nos com uma obra maior da maior de todas as atrizes do cinema silencioso: a película norte-americana “La Bohème” (1926), protagonizada por uma Lillian Gish em estado de graça, e pelo sempre satisfatório galã John Gilbert. Dirigida pelo grande King Vidor, a obra é menos baseada na ópera de Puccini que no romance “La Bohème: scenes de la vie de Bohème”, de Henri Murger. 
Enquanto a obra operística apressa o idílio amoroso e o interrompe bruscamente, no filme a história caminha mais a passo, e tecem-se de forma detalhada não apenas a boemia dos rapazes de vida airada do Quartier Latin, mas a vida de labor da bordadeira Mimi – leitura, aliás, que desce às raias do realismo neste último caso, pela interpretação cuidadosa, pormenorizada, realmente inacreditável de Lillian Gish. Atriz inteligente, Gish constrói a sua personagem como um ser etéreo, quase que descolado deste mundo, mesmo quando ela, vestindo seu vestido de gaze primaveril, corre feliz pelos campos, ao lado do amado Rodolphe, ou narra com vivacidade, a um possível investidor do namorado, os episódios da peça de teatro que ele estava escrevendo. 
Marcada pelo signo da abnegação, como tantas mulheres, caberá a Mimi o paulatino esvaecimento, até que uma carruagem a arrasta como trapo ao reduto dos boêmios, onde ela morrerá nos braços dos seus. Que honra vê-la na tela grande, com os acordes da amada “Bohème” pucciniana vez por outra atravessando o acompanhamento que Donald Sosin realizou para a obra!

terça-feira, 29 de outubro de 2024

Giornate del Cinema Muto de Pordenone 2024: parte 7

La Sultane de l'amour (1919)

Algumas sessões noturnas da Giornate, exibidas a partir das 20h45-21h00, são apresentadas como Eventi Speciali/Special Events [Eventos Especiais], em geral com acompanhamento musical de grupos orquestrais maiores. Destaco, este ano, a exibição dos norte-americanos “3 Bad Men” (1926), de John Ford, e “Girl Shy” (1924), de Fred Newmeyer, e do francês “La sultane de l’amour” (1919), de Charles Burguet e René Le Somptier. 
“3 Bad Men” (1926) teve acompanhamento da Orchestra da Camera di Pordenone e regência de Timothy Brock, também autor do acompanhamento musical. Trata-se de um western que já apresenta todas as principais características de Ford – que depois se celebrizaria por, entre outros, “No tempo das diligências” (1939) e “Rastros de ódio” (1956). Como sói aos filmes do gênero, toma num diapasão heroico a conquista, pelo branco, do Oeste norte-americano, terra indígena. 
As longas cenas de batalha pela disputa do território, uma constante nesta cinematografia, também não faltam aqui. Numa delas morre o pai da mocinha – mulher assertiva que se ombreava ao velho na Marcha para o Oeste. Algo não tão típico no cinema clássico, embora comum na cinematografia de Ford, é a construção de tipos matizados, não totalmente bons, nem totalmente ruins, como é o caso desses “3 homens maus”, que, depois da morte do velho, se tornarão braços direitos da mocinha. 
Girl Shy” (Fred C. Newmeyer, Sam Taylor, 1924) foi gloriosamente acompanhado pela pordenonense Zerorchestra, de levada jazzística, e a sua partitura foi escrita por Daan van den Hurk. Protagonizado por Harold Lloyd, o filme faz uma impagável piada do tipo de machão clássico. Lloyd, ator cômico bem conhecido do público por caminhar na contracorrente deste tipo, é o tímido aprendiz de alfaiate que resolve escrever um livro para enriquecer. Na viagem em que submeteria a obra ao editor, ele encontra a personagem de Jobyna Ralston, e o sucesso profissional passa, então, a ter para si uma finalidade especial: ele deseja desposá-la. 
A comicidade brejeira dos filmes de Lloyd – por exemplo, a cena em que ele, dentro do trem em movimento, resgata, com o cabo da bengala, o cachorrinho da jovem, que escapa dela e salta na via férrea – soma-se à crítica social (e também cinematográfica) ao homem que submete às suas vontades todos os tipos femininos existentes (os quais foram também, em grande medida, construídos pela cinematografia): a flapper, a vamp, etc. 

“La sultane de l’amour” (Charles Burguet e René Le Somptier, 1919) teria, originalmente, um acompanhamento musical de artistas libaneses, os quais, todavia, segundo Jay Weissberg, diretor da Giornate, não puderam aceitar a incumbência graças ao conflito em seu país. A música, então, ficou a cargo de um trio de musicistas da Giornate, Mauro Colombis (piano), Frank Bockius (bateria), Elizabeth-Jane Baldry (harpa). 
O filme francês lê os usos e costumes árabes de forma romantizada e exotizante. A história é um fio, pretexto para o desfile de festins e a apresentação de danças protagonizadas por homens e mulheres ricamente vestidos, os quais ganham ainda mais relevo porque o filme é colorizado por meio de várias técnicas – as cores e a música são elementos que negam a imagem que o grande público tem deste cinema, mudo e em preto e branco. 
“La sultane de l’amour” conta a história do filho do sultão que, ao se fingir de reles pescador, se apaixona por uma jovem que ele encontrara na praia. A obra narra o périplo deste rapaz para encontrá-la, e os esforços de um velho e pusilânime sultão para desposá-la. A obra está coalhada de números de dança, perseguições e expedientes mágicos – como a luneta graças à qual o mocinho descobre onde a jovem fora escondida, conseguindo, assim, salvá-la. Malgrado a obra se arraste e o seu enredo seja inane, ela é uma festa para os olhos.

segunda-feira, 28 de outubro de 2024

Giornate del Cinema Muto de Pordenone 2024: parte 6

O programa voltado às Riscoperte/Rediscoveries [Redescobertas] apresentou uma seleção bastante heterogênea de filmes: comédias e farsas, filmes naturais (alguns dos quais flertavam com a encenação), aventuras nas montanhas, na guerra e submarinas. 
“Peg o’ the mounted” (Alfred J. Goulding, 1924) é uma comédia desopilante protagonizada pela adorável Baby Peggy, atriz realmente vocacionada para o métier – que partiu faz um par de anos e recentemente esteve na Giornate, apresentando uma retrospectiva de sua obra –, uma vez que se tratava de um bebê quando a série de filmes que ela protagonizava foram rodados. Neste ela é a responsável por prender uma quadrilha de bandidos que leva o pânico – construído, claro, do ponto de vista cômico, levando-se em consideração o próprio papel inusitado da criança transformada em polícia – às redondezas onde ela vive. 
“Mr. Jack ducks the alimony” (C. J. Williams, 1916) foi o filme escolhido pela David Selznick School para ser preservado na Eye Film Institute este ano – o consórcio entre o Film Institute de Rochester, a instituição holandesa e a Giornate já data de algumas décadas. Trata-se de uma farsa verdadeiramente hilária que gira em torno do homem que decide se tornar soldado depois de descobrir que não precisaria pagar pensão à ex-mulher caso o fosse. A obra toma como foco os esforços, claro, canhestros deste inusitado combatente. É um bom exemplo de obra que volta uma visada cômica à sanguinária 1ª Grande Guerra, conflito contemporâneo ao momento em que ela foi rodada. 
Denominado “Undersea Adventures”, uma porção do programa de redescobertas deste ano trouxe à baila filmes tematizando aventuras subaquáticas, rodadas em períodos e com técnicas e objetivos distintos. “Dans le sous-marin” (1908), por exemplo, é um filme de atrações que bebe consideravelmente da obra de Méliès. O filme tem início com o mergulho de uma maquete em cartolina de um submarino. No fundo do mar, uma trucagem mostra os peixes atravessando mergulhadores que tentavam destruir o veículo: tudo rodado no seco, como fazia Méliès (sequências soberbas dessas filmagens são reproduzidas no maravilhoso “A aventura de Hugo Cabret”, de 2012). Ao contrário das obras do mago-cineasta, este filme tende ao drama: os tripulantes do submarino se despedem de forma altissonante ao descobrirem que sucumbirão. 
Já o norte-americano “Wonders of the sea” (1922), de Ernest Williamson, é uma obra surpreendente por vários motivos. Pela apresentação didática que faz do método de filmagem submarina do diretor, unindo as características do documental àquelas da fábula, já que a apresentação do fundo do mar é costurada pelos mergulhos de uma mergulhadora que o filme lê como uma sereia moderna. Pela leitura abertamente colonialista, a qual, ao mesmo tempo em que endeusa a jovem, objetifica o negro nativo das plagas onde o filme é rodado – a quem cabe, no filme, tarefas braçais como a de mergulhar em busca do peso que ela utilizara para conseguir chegar mais rápido às profundezas. Pela intervenção pouco ecológica que faz da vida marinha, já que precisa iluminar profusamente o fundo do mar para poder filmá-lo. E, não obstante, pela técnica surpreendente graças à qual o fundo do mar pôde se tornar conhecido do público. 
Por fim, “The land of promise” (Yaackov Ben Dov, 1924) é um filme israelense exasperante, quando lido, hoje, à luz da invasão de Israel aos territórios palestinos, e da matança daí oriunda. Rodada no princípio dos anos de 1920, a obra faz alusão ao trecho bíblico concernente à terra prometida. Mostra a penetração paulatina de Israel pelo território que as escrituras sagradas consideravam seu por direito: a construção de acampamentos transformados, depois, em suntuosas residências. Sublinha o desenvolvimento industrial. 
Deslinda os costumes do povo, as festas e danças típicas, a alegria típica desses eventos. Malgrado a histórica diáspora dos judeus e o holocausto que aconteceria nos anos subsequentes, não há como não observarmos este filme em relação com o que acontece hoje. 
A música de José María Serralde Ruiz, pianista que acompanhou esta sessão, foi precisa; dramática e grave, caminhando mesmo a contrapelo da obra, nos momentos mais desopilantes dela, o que julgo um gesto crítico necessário: o acompanhamento musical produzido hoje em dia para o cinema silencioso, se por um lado precisa se historicamente informado, dialogando com o que se fazia durante a voga deste cinema, nem por isso deve deixar de ser crítico.

domingo, 27 de outubro de 2024

Giornate del Cinema Muto de Pordenone 2024: parte 5

Song (1928)

Dois programas desta Giornate foram dedicados a personalidades, Anna May Wong e Ben Carré. 
O primeiro, na lógica de análise crítica dos estereótipos construídos pelo cinema, procurou jogar luz na atriz norte-americana de ascendência chinesa Anna May Wong. A exemplo dos já mencionados mexicanos, coube aos orientais e seus descendentes uma leitura exotizante, esvaziando-se as suas especificidades em prol de uma visada que procurava classificar tudo a partir da superficialidade. 
Um conjunto de filmes, a apresentação da palestra “Anna May Wong: Her Transcontinental Career”, ao longo do Collegium, e o lançamento do livro To Be an Actress. Labor and Performance in Anna May Wong’s Cross-Media World, de Yiman Wang, procuraram caminhar na contracorrente disso, mergulhando numa análise vertical da atriz a quem coube papéis de amantes de marginais orientais, em filmes nos quais o Oriente era reinventado ao gosto ianque. 
Yiman Wang comentou, durante a apresentação do seu livro, o esforço da atriz de se descolar da máscara que lhe pregavam, impondo-se como individualidade, para além do esforço da indústria de colocá-la num balaio segundo o qual a origem determinaria o caráter. 
Efetivamente, a profundidade que a atriz conferia à interpretação das personagens que lhe cabiam, quando ela tinha espaço para tal, superava os enredos inanes. Isso acontece menos em “Driven from Home” (James Young, 1927), em que ela faz uma ponta, e mais em “Song” (Richard Eichberg, 1928), que ela protagoniza. 
A primeira obra oscila entre a comédia leve e o dramalhão. É a fábula da mocinha rica que decide se casar com um jovem honesto e pobre, a contragosto do pai, que lhe vira as costas. A sua mãe adoece gravemente e a governanta, que cobiça o posto de senhora da casa, faz de tudo para afastar mãe e filha, procurando apressar a partida daquela. O núcleo chinês entra nesta história heterogênea para conferir a ela um caráter aventuresco. O jovem casal, comemorando o emprego que o moço conseguira, vai jantar num restaurante em Chinatown, onde conhece o proprietário oriental mafioso e a companheira dele, interpretada por Anna May Wong. O homem sequestrará a moça, quando ela retorna para aceitar o emprego que ele lhe oferece, cabendo a Wong salvá-la. A ojeriza da mocinha “americana” ao ver o quimono que deveria usar para se apresentar, e a sua recusa em vesti-lo, denotam o preconceito. 
Já “Song” é um filme dilacerante, devido sobretudo ao trabalho matizado de Wong. O filme cria uma dicotomia entre o ambiente portuário, voltado à estiva, e os clubes noturnos de alto e baixo estamento. Song conhece à beira-mar o homem a quem ela dedicará a vida de forma abnegada. Ele é um artista circense, atirador de facas, e ela se tornará a sua parceira. O filme é superior pelo modo como ele constrói o encontro do casal, anunciando a tensão que sustentará o enredo: este personagem obscuro a colocará contra a parede, e o que a princípio parece ao espectador o preâmbulo de um ato de violência acabará por se tornar uma exibição artística. Ambos fazem sucesso, e a devoção dela a ele cresce a olhos vistos. 
Ele se apaixona por uma artista imoral, graças à qual fica literalmente cego. Song se humilha para conseguir junto a ela o dinheiro da cirurgia que o curaria. Transforma-se numa dançarina de sucesso, na boate pra-lá-de-exotizante tocada por outro sujeito equívoco oriental, ao mesmo tempo em que finge ser a outra para que o homem não se sinta abandonado. A visada etnocêntrica do filme se soma ao machismo. Song é coisificada por ser oriental e mulher. 
O desenlace deixa patente essa visada torta, ao voltar uma visada benevolente ao jogador de facas, mesmo sendo ele o responsável por matá-la: ela se fere numa de suas apresentações, ao ouvir a voz dele e desconcentrar-se; ele, ao invés de levá-la ao hospital, leva-a para a casa, e cultua o seu corpo moribundo, num final pseudo-romantizante que apenas reafirma preconceitos. 
O programa voltado ao diretor de arte Ben Carré apresenta uma interessante retrospectiva do cinema francês entre os anos de 1910 e 1920. Filmes como “Aux lions les chrétiens” (1911) e “La Mort de Mozart” (1909) fazem parte do rol dos “filmes de arte” rodados pela Pathé quando a França era centro do cinema mundial. As cenas flertam claramente com o âmbito teatral – arte na qual aquele cinema se apoia para conferir relevância a si –, o gestual bebe da pantomima, e a temática é elevada: a passagem bíblica do cristão que vence a fera em meio à perseguição religiosa do império romano, no primeiro caso; e os momentos derradeiros de Mozart, no segundo. 
Outros elementos caros ao cinema deste período podem ainda ser observados. No primeiro caso, o cuidado na colorização da película, uma atividade, então, artesanal. No segundo, a exploração do âmbito sonoro. Nos seus estertores, Mozart pede a um discípulo que toque os trechos mais significativos de sua obra. Num filme-dentro-do-filme, alcançado graças à dupla-exposição, as cenas das obras em questão aparecem – enquanto o trio responsável pelo acompanhamento musical do filme em Pordenone apresentava arranjos musicais desses trechos, à maneira como se fazia nos anos de 1900-1910. Compassos do “Réquiem” mozartiano soam nos estertores do filme, enquanto o artista os compõe, pouco antes de expirar. 
No que toca às produções rodadas um pouco posteriormente, este programa apresentou também alguns filmes de qualidade acima da média, considerando a cinematografia do período, a exemplo de “Trilby” (1915) e de
“The Blue Bird” (1918), ambos dirigidos pelo dotado Maurice Tourneur, obras em que, para além da qualidade da mise-en-scène, pode-se observar a competente direção de fotografia de Carré. 
Os filmes tratam de duas fábulas. A primeira diz respeito à jovem comezinha que é transformada numa diva graças ao toque mágico de Pigmalião – do desenho dela se apropriaria Bernard Shaw para escrever a peça teatral Pigmalião, posteriormente adaptada para o cinema e para o âmbito do teatro musical, onde tornou-se o célebre “My Fair Lady”. O filme constrói de forma bem-sucedida o fascínio recíproco entre Trilby e Pigmalião, e os esforços vãos do apaixonado da mocinha para retirá-la do feitiço. De nada adianta: uma vez morto Pigmalião, é o seu retrato que adquirirá caráter mágico, enfeitiçando por uma última vez a mocinha, que morre para se tornar lenda. 
“The Blue Bird”, enfim, baseia-se na obra homônima do escritor simbolista Maurice Maeterlinck. Centraliza-se em duas crianças, casal de irmãos que roda o mundo em busca do pássaro azul, a ave da felicidade, apenas para encontrá-lo em sua casa. Embora um tanto moralizante, a obra é comovente. Auxiliados pela velha vizinha, transformada em fada benfazeja, conduzindo-os para uma aventura física que se torna uma viagem dentro de si mesmos. A chegada da dupla no reino dos mortos, onde eles jantarão com os avós que partiram e dos quais já estavam se esquecendo, e encontrarão os inúmeros irmãozinhos mortos, é de arrancar lágrimas das pedras. Na apresentação da obra em Pordenone, essa característica foi ressaltada pelo acompanhamento musical do pianista John Sweeney, pontuado pelas intervenções precisas da harpista Elizabeth-Jane Baldry. De volta em casa, o passarinho doméstico que, na verdade, era o pássaro da felicidade, passará de mão em mão até ganhar a liberdade, gesto simbólico.