terça-feira, 13 de maio de 2014

Getúlio (2014)

Escrevo sobre o filme mais por solicitação de amigos que por motivação pessoal. Movem-me a escrever ou os filmes que detesto, ou os que amo. Sou passional, os leitores sabem... "Getúlio" não me levou a picos de entusiasmo. Minto. Drica Moraes o fez, todas as vezes em que esteve em cena: ela constrói uma Alzira Vargas tão matizada, tão cheia de densidade psicológica, que apaga tudo ao seu redor. Apaga, não, ilumina. 
“Getúlio” é um filme difícil. É uma obra de ficção que se quer documental, e daí precisa de um público com mente afiada ao tema – intangível à primeira vista, ao menos para mim. Abre com a voz do Getúlio Vargas cinematográfico, Tony Ramos, ótimo como sempre; mergulhando logo em imagens de arquivo que remetem à época que retrata – a saber, os últimos 20 dias de vida do presidente, do atentado da Rua Toneleiros (do qual foi vítima Lacerda, seu inimigo político) até seu suicídio. Oscila, portanto, entre os gêneros ficcional e documental. 
O público é apresentado a toda a fauna política que orbita Getúlio, fauna rotulada no rodapé das cenas, à moda dos documentários – estratégia necessária, já que quase a totalidade desses homens, embora fundamental para o desenlace político, é meramente episódica, subaproveitada na economia do drama: Lacerda (Alexandre Borges) é mais bem delineado; Alexandre Nero dá um interessante – ainda que convencional – coronel Scaffa; mas o “deputado da oposição” desempenhado por Daniel Dantas (o rótulo sugestivo da IMDB patenteia a inação da personagem) é limitado a lançar diatribes contra o presidente, nas mesas de reunião; enquanto que o vice Café Filho (?) ou Clarisse Vargas (Clarisse Abujamra) não falam três linhas, cada um, ao longo da película. 

Confesso que não compreendi muito bem a história. Demérito meu, mas não só. Careço do contexto histórico, meu conhecido apenas en passant. Mas era obrigação do drama fornecê-lo a contento, especialmente porque ele se quer um documentário linear. Cabe à obra situar o público com mais precisão no assunto que está a desvelar, sob a pena de ele se perder pelo caminho. 
Talvez ajudasse a redução da vasta gama de personagens coadjuvantes e a maior exploração dos restantes, no interior da ação. Fecho os olhos para redesenhar o plot em minha mente e vejo sequências sem fim de homens tensos, a subir e descer escadas, a caminhar entre o povo, a dar entrevistas bombásticas cujo conteúdo não retive. 
Vejo, em contrapartida, uma Drica Moraes luminosa, fechada num primeiro plano, toda emoção e toda sussurro, dirigindo-se à personagem de Getúlio: “Papai”. Uma palavra, e todo um mundo de emoção e de tensão se materializa em minha frente, cinematograficamente. Esse enquadramento emocional o filme atinge, infelizmente, poucas vezes – todas em que Moraes está em cena –, não obstante a ciranda de emoções que caracterizou todo o projeto (na Marília Gabriela de domingo, 11, a produtora do longa, Carla Camurati, debruçou-se longamente sobre o assunto), e a leitura afetiva da própria persona pública de Getúlio, o “pai” de toda uma nação nos idos de 50, e de uma parte considerável dela, mesmo hoje. 
Um elogio necessário ao roteiro de João Jardim (também diretor do filme), Tereza Frota e George Moura é que ele não rola pela ladeira íngreme da hagiografia. Caracteriza o biografado rastejante na sua carcaça imensa, baratinado frente à avalanche de ocorridos que lhe fogem ao controle. Getúlio não suporta a pressão e se suicida – todo o folclore em torno de suas duas últimas semanas e do fatídico ocorrido é abandonado, e com isso qualquer viés sensacionalista, o que é louvável. 
E mais: Tony Ramos dá corpo com brio à personagem. Não se parece com Vargas, mas tampouco consigo. Consegue, a despeito da maquiagem que lhe deforma a face, trabalhá-la de modo minucioso, exacerbando a gama de sentimentos à baila. Seus bate-bolas com Drica Moraes são excelentes (eles poderiam se multiplicar na trama). Encena-se aí a elaboração da personagem para além de sua faceta pública, um ensaio de submersão em seu psicológico que enriquece a tessitura cinematográfica do drama.
Já Drica Moraes está memorável em cena. Domina cada milímetro de sua expressão porque o rosto é todo seu, liberto das agressividades da medicina estética. Mostra cada um de seus anos, cada uma de suas rugas, provando cabalmente quanto as marcas do tempo e da história pessoal da mulher dão complexidade à atriz. Ela é o sumo do filme. Bravíssima. Não a percam por nada.

6 comentários:

Maira Albuquerque disse...

Boa noite, Danielle! Que bom que você comentou esse filme rsrs Eu também gostei de alguns fatores e de outros nem tanto! Drica Moraes ( ainda bem que ela está renovada depois da batalha pessoal) excelente sempre! Mesmo já sabendo do fim do presidente, minhas lágrimas foram inevitáveis!! Tony Ramos, excelente ator! Também não sei muito a respeito da Era Getúlio, e confesso que recorri à Wikipedia logo que cheguei em casa para me informar mais.. Meu Deus, é tanta riqueza de detalhes nesse governo que fica muito difícil mesmo retratar tudo ( apesar de que eu queria ter visto mais fatos históricos). Eu não consegui ler nem um terço do que fala sobre ele na wikipedia rsrsrs Por isso também é praticamente impossível falar sobre todo o aspecto político, mas achei, mesmo assim, que poderia ter sido melhor explorado! Beijooos

Danielle Crepaldi Carvalho disse...

Boa noite, Maira!

E que bom que você leu a resenha!
Eu também me envolvi com aquela cena final. Ambos arrasam juntos.
Concordamos, então, a respeito da opacidade da trama. Foi minha impressão, e queria testá-la nos leitores do blog! Os anos Getúlio foram super movimentados, daí a escolherem esse momento final do homem, cheio de elementos cinematográficos por si só... Acho que um passeio por um bom livro de História nos ajudaria a clarear o que o filme não o fez ;D

Bjinhos e até logo.
Dani

Edison Eduardo d:-) disse...

Oi, Dani... Tentei postar do iphone mas creio que algo está travado lá, sei lá... Segunda vez q não entra a postagem...

Bom, Getúlio... Eu fui ver depois de já ter lido o que vc tinha escrito, de que o filme se resumia a duas palavras: Drica Moraes.

Gostei muito! Mesmo quem não viveu a época consegue acompanhar bem a história principalemnte pq, no início, ele explica o filme todo. O fanatismo pelo grande "pai" do Brasil poderia ter sido mais explorado, de repente... Só é mostrado no final.

Lembrei muito da série de TV "Agosto" que acompanhei da sua 1ª exibição, as cenas do atentado a Carlos Lacerda são muito parecidas com as da série... Não sei como mas eu dava uma pirada!

O Tony Ramos é o grande destaque do filme. Fico imaginando ele debaixo daquele monte de roupa e enchimento e maquiagem e tudo.

A Drica é maravilhosa... A tão esperada cena do suicídio é mesmo dela. Pensei que seria exagerada mas o diretor acertou o tom.

É isso, aquele bjo!
Edison

Anônimo disse...

Oi Dani, sou eu uma das ¨pedintes¨ dessa resenha! rsssss... Estou vendo várias propagandas chamando para o filme e, depois que uma amiga o viu fiquei meio desanimada. Numa conversa com essa amiga, fiquei sabendo que o filme foi muito superficial, só valeu mesmo os personagens da Drica e Tony, citados aqui por vc também! Sem ¨rasgação de seda¨ VOCÊ É SHOW NAS RESENHAS!!! Ansiosa por GATA VELHA AINDA MIA!!! Uhúúúúúú... Marcia Elizei

Danielle Crepaldi Carvalho disse...

Edison, Márcia, olá!

Muito bom receber feedback de vocês sobre a resenha!

Bem, vamos lá:

Edison, vi o filme com uma amiga, que também viu "Agosto" - minissérie da qual só tomei conhecimento por causa dela. Talvez o contexto histórico, mais bem explorado ali, tenha te dado ferramentas para preencher os gaps que ficam no filme. A melhor coisa do filme ainda acho que seja a relação pai e filha, o jogo entre Drica e Tony. Acho que por ali daria para construir uma metáfora da força simbólica que o Getúlio tinha com o povo brasileiro. Mas talvez quem esteja viajando agora seja eu...
E a cena do suicídio coroa o trabalho lindo que a Drica Moraes faz ao longo do filme. O Tony é ótimo, mas continuo achando que o filme seja dela...

Márcia, seu comentário é uma bela retribuição pelo pedido :D. Olha, vá ver o filme. Eu concordo com o Antonio Candido, nosso principal crítico literário, quando ele diz que temos que amar nossa literatura simplesmente pelo fato de sermos brasileiros. Temos que ver os filmes nacionais acima da média para que eles continuem a existir, e nosso cinema não se reduza aos blockbusters acéfalos...

"A Gata Velha..." será dona do próximo post. #miaguarde

Bjinhos pra vocês!
Dani

Danielle Crepaldi Carvalho disse...

Quero salvar aqui o comentário da prima Lulu. Tivemos uma avó/bisavó que viveu até outro dia, durou 104 anos e acompanhou os dois governos de Vargas:

Lucinia Crepardi disse... Dani quando assisti ao filme lembrei-me da nossa querida noninha. Ela foi da época do Getúlio, acompanhou todos os momentos e lembro que ela falava muito bem dele. Confirmei o que ela falava quando vi o povo no seu enterro. Cenas reais acredito. O povo gostava dele....mesmo sendo um ditador.....parabéns pelo texto. Bjs