sábado, 19 de julho de 2014

O encanto de Campanella: de novo “O segredo de seus olhos”

Vivendo dias de ressaca, passados os derradeiros momentos de escrita da tese. Retorno ao fundamental “El secreto de sus ojos” (2009), que vi pela primeira vez quando havia acabado de ingressar no doutorado. Apesar da aparência empedernida, sou um bocado nostálgica e emotiva. O mundo novo descortinado pela cinematografia de Campanella, descoberta a partir de “O segredo...”, encontrou ressonâncias no trabalho de pesquisa que eu acabava de engatar. Daí a revisitar tantas vezes o filme, em meio às alegrias (muitas) e aos dissabores (ocasionais) da vida acadêmica. 
Não surpreende, portanto, a escolha do tema deste post. Tampouco meu olhar renovado ao filme, que da primeira vez bebi com voracidade e, resenhando-o no calor da hora, talvez não lhe tenha feito justiça a contento. Porque, apesar de meu enamoramento instantâneo, vi nele, sobretudo, a ingenuidade de uma love story não consumada – anacronia mal resolvida mesmo com o recuo temporal de parte da história – quando, ao contrário, o filme tece uma ode ao amor Romântico cuja delicadeza (e, não obstante, densidade) encontra par num dos maiores monumentos do cinema mundial, que é “Um corpo que cai”/“Vertigo” (outro filme cujos sentidos multiplicam-se, escorrem-nos pelos dedos, malgrado a gente tente abarcá-los; obrigando-nos a constantes revisões). 
Na obra de Campanella, como na de Hitchcock, o envolvimento amoroso comezinho pouco importa. Em ambos, amor e morte também estão indissoluvelmente imbricados. E é comum, ao diretor argentino e ao inglês, a inserção, na história, de um dispositivo claramente ficcional: a ficção é o cadinho no qual a realidade amalgama-se à ilusão, funcionando, a mistura, como refrigério ao mundo pragmático e vazio: 
O John Fergusson de James Stewart compra a história do falso amigo, cuja mulher estaria supostamente possuída pelo fantasma de uma ancestral insana. Burila-a ele mesmo, à medida que segue Madeleine-Kim Novak: pelas ruas de São Francisco, pela herdade longínqua, pelo milenar vale de sequoias... Para, cada vez mais, tornar-se (e a nós) personagem da ficção de outrem, acabando por reescrevê-la sombriamente, quando sua amada é morta. A ressurreição de Madeleine, a partir do corpo pouco convincente de Judy – necrofilia simbólica de incrível sutileza, já que ambas as mulheres tratavam-se de uma só, a atriz que dá corpo à história do bandido –, faz-nos lembrar outra grande história de amor do passado, de mal-encoberta bizarrice e considerável dose de insanidade: Inês de Castro é, depois de morta, coroada rainha de Portugal – com direito mesmo a um séquito a beijar suas mãos pútridas, como nos lembra Camões. 
Em “O segredo de seus olhos”, Benjamín-Ricardo Darín vive com Irene-Soledad Villamil um amor platônico que resultaria ridículo, se a gente não o situasse neste mesmo enquadramento romântico stricto sensu; quase um amor cortês segundo o qual se sublima a conjunção carnal não porque ela levaria ao abalo da estrutura social, como soia na Idade Média, mas porque nenhum prazer efetivo é tão sublime quanto o imaginado. A substância, mesma, da imaginação, retira o ato de sua trivialidade para elevá-lo aos píncaros de um “ideal” que é, como patenteia o vocábulo, obviamente inatingível. No dia-a-dia estressante, o sexo rareia; o amor fenece em meio às incontáveis obrigações práticas e às crescentes diferenças entre o casal: a criação dos filhos, o pagamento dos carnês, os roncos do marido, a irascibilidade da sogra, a futilidade da esposa, etc., etc., etc. 
Certas diferenças fundamentais para a separação do casal fazem-se presentes desde sempre, sendo escamoteadas no instante primeiro do arrebatamento amoroso. E são para sempre enterradas, caso o par tragicamente se separe (como é o caso da mocinha assassinada e de seu marido), ou, então, nunca venha, de fato, a se unir (como Benjamín e Irene). Benjamín, alter-ego do diretor, reencontra Irene passados vinte e cinco anos da separação abrupta. Ambos estão no inverno da vida: ele, um doutor honoris causa divorciado e sozinho, ela, uma magistrada em plena função, casada e infeliz no amor. 
Benjamín olha para Irene, mas vê a advogada em início de carreira por quem se apaixonara à primeira vista. Deseja fazer literatura sobre o caso da mocinha estuprada, mas recria um passado embebido no presente: em que o amor prematuramente interrompido enlaça-se àquele nunca revelado – os olhos do criminoso passional e os do colega de trabalho enamorado misturados, num mesmo enlevo. Morte e amor unidos. Campanella, em entrevistas, faz eco ao que Benjamín reverbera no filme. Glosando seu personagem, surpreso com a intensidade do amor do jovem viúvo pela esposa morta (Um amor infenso à passagem do tempo, aos problemas cotidianos, para sempre imenso.), o diretor sublinhou interessarem-lhe, sobretudo, os sentimentos não realizados. 
A ficção é, desta vez, tecida de saída pelas mãos do protagonista. Cabe a si coordenar passado e presente, recompostos, ambos, na velha máquina de escrever quebrada que embalara o cotidiano da repartição e o nascimento do amor platônico. O instrumento dará corpo ao redescobrimento do tempo e à derradeira confissão do amor – velada aos olhos do público, piscadela de olhos matreira do diretor, a convidar também o espectador à ficcionalização; afinal, nada que o casal fizesse diante das câmeras seria mais intenso que o enlace antegozado do outro lado da tela, por quem acompanha a história. 
O encanto do filme está na originalidade com que ele desenvolve o tema. Campanella equilibra-se, como sempre, na corda bamba que separa o drama febriciante da comédia escrachada. Desliza entre acontecimentos e sentimentos com doses de autoironia, sensibilidade e surpresa notáveis: A cena inicial, das imagens nebulosas da estação e dos amantes a se separarem – terminando pelo rasgar da página manuscrita e pela censura de Benjamín a si próprio, por estar sendo piegas demais; os desdobramentos que levam o protagonista ao estádio de futebol – onde funde-se a paixão coletiva à do personagem e à do diretor –, cena das mais bem realizadas da cinematografia contemporânea; o papel dilacerante que cabe ao marido, obrigado pelas circunstâncias a revisitar diariamente a sua debacle, já que se torna carcereiro perpétuo do assassino... 
Para o sucesso da tessitura do drama, desempenha papel fundamental o glorioso elenco arrolado: comedido, sincero, entregue à proposta do diretor. Para além da estratégia acertada de se colocarem os mesmos artistas a desempenharem-se a si próprios, no passado e no presente – efetivação cabal da permanência de um tempo sobre o outro – está a qualidade do conjunto a tornar verossímil o tour de force. Notadamente de Villamil e Darín, dos quais sou fervorosa devota desde então. 
A tensão implantada pelo violento desaparecimento da jovenzinha é arejada por um bem-vindo humor portenho, que, se não desdenha do drama, também não se joga de cabeça nele. Por isso o desfecho luminoso, a acenar com a promessa de uma intraduzível felicidade. Daí, Campanella distancia-se do pessimismo hitchcockiano, a negar salvação à pecadora no alto do campanário, a contar uma história que ironicamente denuncia os perigos da ficção.

Um comentário:

Vitor Costa disse...

Uma análise digna da excelência da obra.
Realmente Danielle, o "Segredo dos Seus Olhos" é um filme repleto de qualidades notáveis e que nos convida a refletir, sobretudo, acerca da fusão perene entre passado e presente.
O modo como o terceiro ato é cautelosamente construído para nos dadivar com um clímax estupendo e totalmente coerente com as minúcias da trama.
A sequência do estádio é deveras magistral, fico imaginando a pertinácia do diretor para elaborar tamanha preciosidade.
Muito perspicaz o liame que você realizou com "Vertigo". :-)

A gente quer fugir, mas não consegue, parece que algo nos impede.
A gente permanece querendo fugir, permanece na vontade, mas nada concreto acontece e a gente vira parte do nosso meio.

Gostei da forma como usou as palavras, é o que, muitas vezes, eu sinto também.

O Mundo Em Cenas

Beijos