Estou vivendo dias nostálgicos desde o começo da semana passada. Uma amiga de longa data defendeu uma tese de Doutorado escrita paulatinamente ao longo de dez anos – caso sui generis; quem conhece o âmbito universitário sabe que as exigências amontam e os prazos escasseiam. Enquanto eu a via diante da banca, cheia da maturidade e da segurança que a gente só conquista com o tempo, pus-me a lembrar dos anos da graduação, dos professores mortos e aposentados, das aulas densas de literatura, do bom e velho IEL que não volta mais.
A decalagem temporal nos obriga a colocar as coisas em perspectiva. Caso análogo acontece quando hoje vemos o recém-lançado “Chatô, o rei do Brasil”, de Guilherme Fontes, filme vítima de tantas pauladas ao longo de vinte anos.
A trivia a seu respeito é notória demais para nos estendermos longamente sobre ela. O diretor e produtor do longa-metragem levantou financiamento para rodá-lo nos idos de 1995, época da retomada do cinema nacional. Estouro de verba e dubiedade na prestação de contas culminaram no engavetamento do projeto e no envolvimento de Fontes nas malhas da Justiça.
Hoje, passada tanta água por debaixo da ponte, descobre-se que o filme existe enquanto obra completa. Tendo sido rodado de cabo a rabo, ao que tudo indica, foi agora montado (os detalhes do processo me escapam, já que não encontrei dados suficientemente explicativos a esse respeito) e está aí, mostrando com que euforia os artistas cinematográficos de meados dos 90 se recolocavam na cena de onde haviam sido bruscamente retirados graças à treva na qual o país mergulhou durante a Era Collor.
Além da nostalgia de ver uma Leandra Leal adolescente atuando como gente grande (ela é Lola, a espanholita recém-saída dos cueiros com quem o protagonista se casa); além das então balzaquianas Andréa Beltrão e Letícia Sabatella e do juveníssimo Gabriel Braga Nunes, está a qualidade empírica do filme. Grande qualidade. “Chatô” é uma obra de pulso e, agora saído a lume, mostra que não causou barulho em vão.
Prova de que o filme é bom são os haters virtuais – com os quais o “Chatô” dos anos 90 nem sonharia em conviver – que o filme conquistou. Acusaram-no de falsear a biografia de Assis Chateaubriand, magnata da comunicação que passou os últimos anos entrevado devido a um acidente vascular. Acusaram-no de romper com a cronologia na narrativa da vida do homem, como se uma obra cinematográfica de sopro biográfico fosse obrigada à linearidade e à apreensão estritamente factual da vida do biografado. Acusaram-no da pretensão de querer o respaldo artístico do poderoso Francis Ford Coppola, desdenhando da obra porque ela não o conquistou.
No jornalismo, como na Academia, há cada vez mais a dificuldade de o analista se debruçar sobre a obra artística, preferindo tratar de seu contexto em detrimento de tomá-la a peito. Já que não sou nem colunista de fofocas, nem burocrata, nem técnica da Receita Federal, não pretendo fazer isso aqui.
No que toca à questão financeira, cumpre a ressaltar, aqui, o bom emprego da verba dirigida ao projeto. A história do folclórico milionário Assis Chateaubriand ganha contornos de festa do rei do camarote. Há ali uma estética do exagero com alto potencial crítico, que prenuncia as culminâncias do funk ostentação e do novo-riquismo: há de se ter de tudo, e muito, e já, e se publicizar largamente a respeito.
Tento puxar pela memória de que descende a estética de “Chatô”. Talvez de “All that jazz” (Bob Fosse, 1979), ótima biografia disfarçada do diretor e coreógrafo de Bob Fosse na qual se implode não só a linearidade como os limites entre a Terra e o Céu (ou o inferno). O homem que dá a vida pelo show biss acabará dando-se a si próprio em espetáculo: as cenas de sua derradeira comédia musical misturando-se aos delírios vivíssimos que ele protagonizava na cama de hospital.
Há disso no “Chatô” de Guilherme Fontes, já que Chateaubriand não era apenas fruto do show biss, como era um de seus articuladores brasileiros – ele é, lembremo-nos, o responsável pela chegada da TV no Brasil, e o dono da TV Tupi (1950), primeira emissora nacional.
O filme (não li o livro do qual a obra de originou, de Fernando Morais) costura-se subjetivamente: um Chatô (Marco Ricca, ótimo) preso a uma cama de hospital tece os liames entre o presente e o passado que narra (a infância pobre, a formação, o casamento, a fome louca que tinha de sucesso/riqueza/mulheres/amor...). Seu passado costura-se à história do Brasil: seu casa-e-separa com Getúlio, suas intervenções nos programas de sua emissora de TV.
Para além da “verdade histórica” daquilo que ele narra – já de saída minada, uma vez que quem conta o caso é um homem cuja saúde se deteriora –, está o gesto crítico do diretor. “Chatô” é a alegorização da política e da cultura nacionais. O Assis Chateaubriand cinematográfico é uma espécie de Chacrinha – só agora, do distanciamento temporal, conseguimos abarcar completamente a dimensão crítica daquele carnavalesco animador, por décadas a figura de maior destaque da TV brasileira. O nosso ridículo, a nossa macaqueação deleitosa do estrangeiro são postas em cena com escárnio, com Chacrinha como com “Chatô”.
Ademais, a distância de 20 anos entre a rodagem da trama e a sua aparição pública lhe dá sentidos novos, um pouco pela nova conjuntura histórica, um pouco pelo poder mágico da máquina cinema de congelar o tempo.
Ao mesmo tempo em que o filme espelha magistralmente a pornografia política nacional – que hoje atingiu os píncaros –, abre-se como um baú de tesouros e liberta caras e vozes com as quais a nossa memória afetiva já nos acostumou.
Prometi uma análise de pulso do filme e só toquei a sua superfície – em casa de ferreiro o espeto é de pau... Mas a noite de Natal se aproxima e a resenha, de tão comprida, provavelmente será lida poucas vezes até o fim. Fica aqui um registro mais nostálgico que crítico. No frigir dos ovos, festejo o fato de o filme ter demorado tanto a sair. Li as primeiras notas sobre ele nalguma revista Querida, quando era uma moleca mal saída da infância. Eu precisava dessas duas décadas para digeri-lo como ele merece.
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