terça-feira, 5 de outubro de 2021

Giornate Del Cinema Muto de Pordenone 2021: Dia III


Ontem foi dia de cinema clássico americano na Giornate online: a comédia “An old fashioned boy” (1920), de Jerome Storm. Protagoniza a obra Charles Ray, estrela ascendente nos céus de Hollywood, talhado, graças ao seu rosto franco e sorriso melancólico, aos ingênuos dos melodramas campesinos. Ray fora revelado cinco anos antes por Thomas Ince – cujo estúdio roda este filme – depois de ter atuado como extra numa porção de produções da empresa. Aqui, ele desdobra novamente o papel que o fez notório. É David Warrington, o “garoto à moda antiga” do título, que tem como maior ambição casar-se e viver numa casa ajardinada de subúrbio com a sua eleita. Estamos, todavia, na aurora dos anos 20: a idade do jazz-band de que fala António Ferro. Logo a roteirista Agnes Christine Johnston mostrará ao público que esse ideal não será tão facilmente conquistado. 
 Outra mulher roteirista. Vejamos se há algum laivo de feminismo no encaminhamento que ela dá ao enredo. 
David se apaixona – e isso o descobrimos logo na abertura da obra, num close dos dois pombinhos pouco tempo depois de Betty Graves (Ethel Shannon) aceitar seu pedido de casamento. A câmera se distancia paulatinamente da sala de estar burguesa onde ambos se encontram e penetra no caótico quarto das crianças da casa de Herbert Smith (Wade Boteler) e Sybil (Grace Morse), onde o pedido é realizado. Nesses planos, temos num só tempo o enquadramento do sonho dourado de David e o pesadelo que dele pode advir. 
Como vemos, o roteiro de saída coloca diante dos olhos do público as agruras que se sucedem ao happy ending das fitas cinematográficas. Isso se ressalta quando, pouco depois, o rapaz confessa ao amigo Herbert que construíra uma idílica – para ele, claro – casa de campo onde poderá, juntamente com Betty, crescer e multiplicar. Depois de fazer ouvidos moucos ao repúdio do amigo no que diz respeito a esse modelo de felicidade conjugal, em meio à gritaria das crianças da casa, David vai buscar a noiva para lhe mostrar a casa. 
Mudamos agora de cenário. Em cena, o apart-hotel onde Betty vive com o pai. Um travelling pelos cômodos mostra que aquele não era um espaço talhado às crianças, e tampouco o era Betty, que, de saia longa, estola de marta e acompanhada constantemente de um french poodle, era o último modelo das modern girls vituperadas pelo rapazote enamorado. 
Betty conhece a casa bucólica sem saber que seria a sua futura proprietária, e ao sabê-lo, a rejeita. Sonha para si com a vida nas facilidades de um moderno apart-hotel, em detrimento do papel de dona de casa que o noivo desejava lhe impor. 
O entrecho pondera sobre um recente dilema social. Essas moradias determinavam uma guinada nos costumes, já que não aceitavam crianças e tampouco que se cozinhasse. O paraíso para muitas mulheres nascidas e criadas segundo os ideais feministas que então vicejavam era o inferno dos moralistas de costumes – dentre eles, porque não, o “ingênuo” David, que se esforça, com base em notícias de jornal, para provar a Betty que um casamento durável apenas seria possível numa casa como a que ele lhe construíra, tomada por crianças; enquanto apart-hotels e cachorros eram convites ao divórcio. 
O rapaz logo terá chances de testar os seus ideais. Abandonado peremptoriamente pela noiva, receberá de surpresa em casa os três diabinhos do casal de amigos, depois de mais um arranca-rabo de ambos. O cerne da trama ocorre enquanto ele está sozinho com esse encargo – uma vez que a governanta foge desesperada; afinal, ela esperava um bebê dali a 9 meses, e não três crianças de uma vez... E então, desastres se sucedem numa montagem extremamente dinâmica: o esforço do jovem para preparar às crianças uma bala puxa-puxa, na cozinha da casa; os problemas estomacais dos pequenos depois de ingerirem o doce e a corrida desse pai substituto atrás do médico que os socorrerá (por sinal, o pai de Betty) se sucedem numa impressionante fluidez. 
O médico irá à consulta juntamente com Betty, que agora está acompanhada de um novo pretendente, o lépido Ferdie Blake – o qual “marrily jazzes through life”, ou seja, caminha pela vida como num compasso de jazz, o que demonstra como aquele ritmo musical passava a definir a sociedade moderna. David intentará, ali, a reconquista da moça, com a conivência do pai dela, que usa de seu poder de médico para colocar a casa em quarentena devido a uma suposta infecção pelo sarampo. 
Os quiproquós que são o motor do gênero cômico se multiplicam enquanto o moço tenta reter a jovem e, depois, esconder do amigo que os filhos dele estão consigo, realizando um desejo da própria mãe das crianças, que quer dar uma lição no marido irascível. Numa montagem que entremeia a ternura e a loucura somos compelidos a ver o bom coração do moço que deseja reter a amada à força, ao mesmo tempo em que rimos às lágrimas do esforço que David faz para fugir de Herbert Smith (o pai das crianças) – trepando da cristaleira ao reposteiro, até colar no teto da casa – ou da tapona que Sybil, claramente mais forte que Herbert, imprime nele, indo socorrê-lo pouco tempo depois. 
David acabará salvo da acusação de traição pela própria Betty que antes o desdenhara, a qual, já se vê, acaba por preferir uma casa no campo à jazzear pela vida à fora. O happy ending frustra a nossa expectativa de emancipação feminina, no entanto, era a regra que o filme desejara antes de tudo defender, e não a exceção – tanto que as notas sobre a obra publicadas pela Giornate, escritas por April Miller, apresentam uma coletânea de entrevistas e reportagens concernentes à roteirista Agnes Christine Johnston: como ela costumava trabalhar cercada pela gritaria dos filhos, com um bebê sobre a escrivaninha; como fora numa pré-estreia poucas horas antes de parir, etc. 
Johnston, em suma, afirma que é melhor como mãe à medida que consegue ser uma boa profissional. Num primeiro olhar um old fashioned film, “An old fashioned boy” caminha o quanto pode, creio eu, em sua tentativa de mostrar que os anseios femininos se sobrepõem à maternidade. Mais que isso, seria condená-lo ao ostracismo já naquele momento, o que seria uma pena, uma vez que ele é uma obra-prima de comédia, com um delicioso timing vanguardista de screwball comedy.

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