segunda-feira, 22 de setembro de 2025

III Festival Oficina da Ópera do Theatro Municipal do Rio de Janeiro (8-14 set. 2025)


Na semana de 8 a 14 de setembro, o Theatro Municipal do Rio de Janeiro foi palco do III Festival Oficina da Ópera, evento que apresenta os resultados de um trabalho voltado à formação de novos corpos técnicos e à integração entre musicistas da casa e solistas de envergadura na cena lírica brasileira. 
Ao longo de uma semana, a casa apresentou uma movimentação digna de um canteiro de obras. De segunda a domingo foram apresentadas, initerruptamente, três produções: as óperas Dido e Eneas, de Henry Purcell (1659-1695), com libreto de Nahum Tate, e O Afiador de Facas, de Piero Schlochauer (1997), libreto do autor e de Beatriz Porto, e a cantata Carmina Burana, de Carl Orff (1895-1982). Eu, que estive na cidade realizando pesquisa arquivística para um volume a ser publicado em breve, tive a oportunidade de prestigiar as três obras. Sobre elas, falo aqui de passagem, num tom menos resenhístico e mais cronístico, dada a azáfama recente, que já me distancia um par de semanas do evento. Cumpre, todavia, lembrá-lo e celebrá-lo, dado o seu papel fundamental de formação de talentos e de fomento à aproximação entre a música erudita e o público. 
O evento foi aberto pela mais relevante obra do grande compositor do barroco inglês Henry Purcell, a ópera Dido e Eneas. Sobre a gênese do título eu já discorri anos atrás, noutro texto aqui publicado, ao qual remeto os leitores. Trata-se, em linhas gerais, da história do amor cego e malfadado entre Dido, a rainha de Cartago, e Eneas, o troiano a quem cabe fundar uma nova civilização – seria a Itália, distante muitas milhas de Cartago –, finda a Guerra de Troia (séc. XIII-XII a.C.). Estamos nos domínios do mito, referido por Homero quatro séculos mais tarde, sobre o qual a ópera se debruça. 
O destino do casal protagonista é decidido pelos deuses, assevera-nos o prólogo da história. Mais especificamente pela deusa do amor, Vênus, e por um acólito cego seu, que os flecha quando Eneas, em trânsito, aporta na ilha de Cartago. Dido adentra a cena, no Ato 1 da obra, irremediavelmente presa pelo feitiço de Vênus, contra a qual qualquer luta é inglória. Belinda sugere que ela se entregue: “o hóspede troiano invadiu | teus ternos pensamentos; é a maior bênção | que o Destino pode dar para garantir nossa Cartago e reviver Troia.”. 
Se a dama de companhia lê o consórcio entre Dido e Eneas do ponto de vista tanto sentimental quanto político, é a essa última instância que a direção cênica de Daniel Salgado se inclina, o que é corroborado no programa do espetáculo, que recupera com consistência um quiproquó político contemporâneo à obra – o autor de seu libreto teria, num poema alegórico, aludido ao Duque de York (e futuro James II) como Eneas, convencido pela Feiticeira e seu séquito (o catolicismo romano) a abandonar Dido (os britânicos). 
Assim, em consonância com a cenografia de Mariana Marton, Salgado recriou a Sala dos Lordes da monarquia britânica do século XVII, espaço onde se dá a encenação de todo o espetáculo. Ao fazê-lo, calcou o mito na realidade. Desta forma, a união entre a rainha de Cartago e o futuro fundador da Itália torna-se um arranjo meramente político. Tal escolha também é responsável por transformar o realismo fantástico em metáfora: a feiticeira e as bruxas não mais oficiam numa caverna lúgubre, mas sim na sala em que se decide o destino da realeza – e, por extensão, de todo o povo. 
A visada realista foi atingida com competência pelos figurinos de Ana Luisa Castilhos, que deram uma imponência real a Denise de Freitas, e uma firmeza estoica a Johnny França. De acordo com a encenação, respaldada pelo poema alegórico de Tate, é a manipulação – cujo caráter hediondo é dado pela aparência da bruxa e de seu séquito –, e não um feitiço, que afasta Eneas de Dido, e que determina o esvaecimento da rainha. 
Os que me leem sabem que eu tenho absoluta adoração pelo barroco, e grande respeito por aqueles que resolvem encenar essas obras hoje, quase quatro séculos depois da sua concepção. Esta montagem de Dido e Eneas ficou a cargo do Ensemble Vocal CCTM e do Ensemble OSTM, os quais, sob a direção musical e a regência de Jésus Figueiredo, emolduraram as peripécias da Feiticeira Carla Rizzi e de seu séquito, a dedicação dúbia da Belinda de Loren Vidal, a doce firmeza do Eneas de Johnny França e a inolvidável e bem-vinda calidez da Dido de Denise de Freitas, em total convergência com a música sensual de Purcell. 
Nos dias 10 e 11 de setembro, foi a vez de subir à cena a ópera de Piero Schlochauer O Afiador de Facas, libreto dele e de Beatriz Porto, espetáculo cuja carreira começou com a vitória num concurso para novos compositores do Fórum Brasileiro de Ópera e Música de Concerto, e que, entre o ano passado e este, já ganhou montagens em Guarulhos, Santo André (SP) e na Central Técnica de Produções do Theatro Municipal de São Paulo. 
No Rio de Janeiro, a cenografia de Marcela Anjos procurou sublinhar o aspecto psicológico da temática, algo já bastante presente na encenação realizada na Central Técnica do TMSP. Assim, a desintegração da memória do protagonista, temática central da obra, resvala com densidade narrativa no âmbito da montagem. Seu único cenário é composto por uma parede repleta de nichos, nos quais convivem anarquicamente brinquedos de crianças, camisas de time de futebol, partituras, cartas, fotografias, enfim, recordações de um passado que o Alzheimer esfacela e mistura. 
Diante dela, estreitos tablados de alturas variadas são percorridos pelos personagens do Afiador de facas, da mãe, da filha e do filho; os quais equilibram-se na cena como se equilibram entre o passado e o presente, numa dramaturgia de surpreendente consistência, que abole a linearidade como espécie de metáfora da fragmentação cognitiva do personagem protagonista. Os figurinos de Bruna Falcão atuaram em convergência com a encenação, já que foram concebidos a partir do upcycling, técnica segundo a qual são aproveitadas peças de vestuário já utilizadas para a criação de novas, oriundas, assim, de fontes diversas – como as memórias que emergem na obra, cujas autorias nem sempre estão claras; que deslizam e são transmitidas entre os membros da família, em simbiose no amor e na dor. 
Em convergência com cenógrafa e figurinista, Schlochauer realizou uma direção cênica minuciosa, que fez emergir os dotes de atuação dos artistas em cena – aspecto fundamental para o sucesso desta produção, em que libreto e música têm um viés tragicômico que apenas se perfaz se o aspecto dramático for respeitado. A direção musical e regência desta montagem coube a Anderson Alves, e sua execução, novamente ao operoso Ensemble OSTM. 
Anderson Barbosa, que deu vida ao Afiador na estreia da produção em São Paulo, em 2024, recuperou em cena, no Theatro Municipal do Rio Janeiro, a firmeza e a imponência – ainda mais tocantes devido ao esfacelamento mental – que o tornaram um dos destaques daquela produção. Fernanda Schleder, a mãe, correspondeu às expectativas do papel, criando teatralmente uma mulher que crescentemente se desfragmentava, à medida que ia descosturando a tecelagem que era metáfora da história da família. Lara Cavalcanti e Santiago Villalba, os filhos, deram corpo de modo notável à obra de Schlochauer – ele com fúria, ela com doçura –, abraçando as ambiguidades de seus personagens, que, num mesmo ímpeto, acolhem as lembranças e querem se dissociar delas para construírem seus próprios percursos. 
Enfim, o Festival fechou-se com a apresentação da cantata Carmina Burana, em versão encenada. Sobre esta obra, também já tive a oportunidade de falar, por ocasião de sua apresentação paulistana no princípio de 2024, portanto, novamente não me estendo aqui detalhadamente a seu respeito. No Rio de Janeiro, a sua direção musical e regência couberam a Victor Hugo Toro, e a execução, à Orquestra Sinfônica do Theatro Municipal. 
Vale, no entanto, destacar que a obra foi concebida na Alemanha de 1936 – durante, portanto, o governo nazista. Porém, se a obra originalmente encampava o ideário do Terceiro Reich, de construir um presente isento de “degeneração” a partir do mergulho na cultura nórdica (neste caso, nos textos produzidos num convento da Baviera entre os séculos XI e XIII), ao longo dos anos ela ultrapassou o seu contexto histórico reacionário, compondo indelevelmente o imaginário do público ocidental. 
Tal fato ficou patente na forma como a obra foi apreendida neste Festival. Carmina Burana, que normalmente é apresentada sem encenação, recebeu uma montagem disruptiva, a cargo dos coreógrafos Bruno Fernandes e Mateus Dutra, os quais fizeram emergir uma característica fundamental das obras de arte – o fato de que elas podem ser ressignificadas, e os seus sentidos originais, ultrapassados. 
Isso porque a obra, cuja monotonia musical cumpria um programa estético voltado à distração, recebeu um ressaltado viés crítico, ao fazer convergirem em cena gente de todas as cores, e representantes dos mais diversos gêneros musicais e expressões artísticas, do ballet clássico ao passinho, passando pelo burlesco e pelo break
A cenografia de Fael Di Roca e os figurinos de Carlos Almeida e Carla Gleide também convergiram nesse intento, recuperando a iconografia dos bestiários compostos na Idade Média (momento em que os textos da cantata foram redigidos), voltados à descrição e à ilustração de seres reais e fantásticos com cunho religioso e moralizante – todavia, numa leitura laica e iconoclasta – e as obras do pintor renascentista holandês Hieronymus Bosch. Assim, o Destino, que emerge na mais conhecida das canções da obra, a formidável “O Fortuna, Imperatrix Mundi”, foi transformado num grande moedor de carne, alinhado à direita da cena, o qual devorava todos os seres que nele entravam, depois de atravessarem o palco em fila indiana – recuperação imagética do notável videoclipe de Pink Floyd “Another Brick in the Wall”, outro diálogo contundente entre a cena operística e a cultura popular. 
Os achados cênicos se multiplicaram na obra, a exemplo da gaiola rococó de que o Cisne de Guilherme Moreira, um híbrido de homem e bicho, concepção dos figurinistas Carlos Almeida e Carla Gleide, sai antes de narrar melancolicamente o seu futuro lúgubre – estava sendo assado e em breve seria devorado. Seu resvalar pelo palco nesta montagem carioca lembra o trítico de Bosch “As Tentações de Santo Antão” (circa 1505), já que consigo contracenam dançarinas de pole dance e burlesco, uma drag queen e dançarinos de street dance; leitura criativa dos deleites e tentações das metrópoles contemporâneas. 
No que diz respeito aos aspectos vocais e dramáticos, houve homogeneidade entre o trabalho dos solistas e do coro. Moreira representou a sua desafiadora canção (“Olim lacus colueram”) com desenvoltura. Outra presença contundente foi a de Vinícius Atique, cujas canções invariavelmente retratam monges vagabundos voltados mais à libertinagem que às orações, e que, na montagem carioca, foi associado ao personagem do “Louco” – o qual, na Idade Média, era o grande responsável por dizer as verdades do mundo. A visada irreverente de praticamente toda a obra, que mimetiza o périplo humano, e fomenta a entrega ao deleite, é interrompida pela presença da soprano, que representa a jovem pura que descobre o amor, e foi interpretada com beleza e força dramática por Michele Menezes. 
Por fim, o Coro do Theatro Municipal, responsável por porção preponderante da obra, esteve vocalmente à altura da tarefa de que foi incumbido. Além disso, alinhado nas laterais ao fundo da cena, em duas arquibancadas horizontais, e trajado de preto, criou um potente contraste com a esfuziante encenação, calcando os descalabros do mundo na trágica máxima exacerbada na canção principal da obra: “Sorte imensa e vazia. Tu, roda volúvel, és má. Vã é a felicidade. Sempre dissolúvel, nebulosa e velada”.
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Imagens: Divulgação/Daniel Ebendinger.