Na semana de 8 a 14 de setembro, o Theatro Municipal do Rio de Janeiro foi palco do III Festival Oficina da Ópera, evento que apresenta os resultados de um trabalho voltado à formação de novos corpos técnicos e à integração entre musicistas da casa e solistas de envergadura na cena lírica brasileira.
Ao longo de uma semana, a casa apresentou uma movimentação digna de um canteiro de obras. De segunda a domingo foram apresentadas, initerruptamente, três produções: as óperas Dido e Eneas, de Henry Purcell (1659-1695), com libreto de Nahum Tate, e O Afiador de Facas, de Piero Schlochauer (1997), libreto do autor e de Beatriz Porto, e a cantata Carmina Burana, de Carl Orff (1895-1982). Eu, que estive na cidade realizando pesquisa arquivística para um volume a ser publicado em breve, tive a oportunidade de prestigiar as três obras. Sobre elas, falo aqui de passagem, num tom menos resenhístico e mais cronístico, dada a azáfama recente, que já me distancia um par de semanas do evento. Cumpre, todavia, lembrá-lo e celebrá-lo, dado o seu papel fundamental de formação de talentos e de fomento à aproximação entre a música erudita e o público.

O destino do casal protagonista é decidido pelos deuses, assevera-nos o prólogo da história. Mais especificamente pela deusa do amor, Vênus, e por um acólito cego seu, que os flecha quando Eneas, em trânsito, aporta na ilha de Cartago. Dido adentra a cena, no Ato 1 da obra, irremediavelmente presa pelo feitiço de Vênus, contra a qual qualquer luta é inglória. Belinda sugere que ela se entregue: “o hóspede troiano invadiu | teus ternos pensamentos; é a maior bênção | que o Destino pode dar para garantir nossa Cartago e reviver Troia.”.

Assim, em consonância com a cenografia de Mariana Marton, Salgado recriou a Sala dos Lordes da monarquia britânica do século XVII, espaço onde se dá a encenação de todo o espetáculo. Ao fazê-lo, calcou o mito na realidade. Desta forma, a união entre a rainha de Cartago e o futuro fundador da Itália torna-se um arranjo meramente político. Tal escolha também é responsável por transformar o realismo fantástico em metáfora: a feiticeira e as bruxas não mais oficiam numa caverna lúgubre, mas sim na sala em que se decide o destino da realeza – e, por extensão, de todo o povo.
A visada realista foi atingida com competência pelos figurinos de Ana Luisa Castilhos, que deram uma imponência real a Denise de Freitas, e uma firmeza estoica a Johnny França. De acordo com a encenação, respaldada pelo poema alegórico de Tate, é a manipulação – cujo caráter hediondo é dado pela aparência da bruxa e de seu séquito –, e não um feitiço, que afasta Eneas de Dido, e que determina o esvaecimento da rainha.


No Rio de Janeiro, a cenografia de Marcela Anjos procurou sublinhar o aspecto psicológico da temática, algo já bastante presente na encenação realizada na Central Técnica do TMSP. Assim, a desintegração da memória do protagonista, temática central da obra, resvala com densidade narrativa no âmbito da montagem. Seu único cenário é composto por uma parede repleta de nichos, nos quais convivem anarquicamente brinquedos de crianças, camisas de time de futebol, partituras, cartas, fotografias, enfim, recordações de um passado que o Alzheimer esfacela e mistura.

Em convergência com cenógrafa e figurinista, Schlochauer realizou uma direção cênica minuciosa, que fez emergir os dotes de atuação dos artistas em cena – aspecto fundamental para o sucesso desta produção, em que libreto e música têm um viés tragicômico que apenas se perfaz se o aspecto dramático for respeitado. A direção musical e regência desta montagem coube a Anderson Alves, e sua execução, novamente ao operoso Ensemble OSTM.


Vale, no entanto, destacar que a obra foi concebida na Alemanha de 1936 – durante, portanto, o governo nazista. Porém, se a obra originalmente encampava o ideário do Terceiro Reich, de construir um presente isento de “degeneração” a partir do mergulho na cultura nórdica (neste caso, nos textos produzidos num convento da Baviera entre os séculos XI e XIII), ao longo dos anos ela ultrapassou o seu contexto histórico reacionário, compondo indelevelmente o imaginário do público ocidental.
Tal fato ficou patente na forma como a obra foi apreendida neste Festival. Carmina Burana, que normalmente é apresentada sem encenação, recebeu uma montagem disruptiva, a cargo dos coreógrafos Bruno Fernandes e Mateus Dutra, os quais fizeram emergir uma característica fundamental das obras de arte – o fato de que elas podem ser ressignificadas, e os seus sentidos originais, ultrapassados.

A cenografia de Fael Di Roca e os figurinos de Carlos Almeida e Carla Gleide também convergiram nesse intento, recuperando a iconografia dos bestiários compostos na Idade Média (momento em que os textos da cantata foram redigidos), voltados à descrição e à ilustração de seres reais e fantásticos com cunho religioso e moralizante – todavia, numa leitura laica e iconoclasta – e as obras do pintor renascentista holandês Hieronymus Bosch. Assim, o Destino, que emerge na mais conhecida das canções da obra, a formidável “O Fortuna, Imperatrix Mundi”, foi transformado num grande moedor de carne, alinhado à direita da cena, o qual devorava todos os seres que nele entravam, depois de atravessarem o palco em fila indiana – recuperação imagética do notável videoclipe de Pink Floyd “Another Brick in the Wall”, outro diálogo contundente entre a cena operística e a cultura popular.
Os achados cênicos se multiplicaram na obra, a exemplo da gaiola rococó de que o Cisne de Guilherme Moreira, um híbrido de homem e bicho, concepção dos figurinistas Carlos Almeida e Carla Gleide, sai antes de narrar melancolicamente o seu futuro lúgubre – estava sendo assado e em breve seria devorado. Seu resvalar pelo palco nesta montagem carioca lembra o trítico de Bosch “As Tentações de Santo Antão” (circa 1505), já que consigo contracenam dançarinas de pole dance e burlesco, uma drag queen e dançarinos de street dance; leitura criativa dos deleites e tentações das metrópoles contemporâneas.

Por fim, o Coro do Theatro Municipal, responsável por porção preponderante da obra, esteve vocalmente à altura da tarefa de que foi incumbido. Além disso, alinhado nas laterais ao fundo da cena, em duas arquibancadas horizontais, e trajado de preto, criou um potente contraste com a esfuziante encenação, calcando os descalabros do mundo na trágica máxima exacerbada na canção principal da obra: “Sorte imensa e vazia. Tu, roda volúvel, és má. Vã é a felicidade. Sempre dissolúvel, nebulosa e velada”.
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