segunda-feira, 11 de julho de 2011

“Sunset Boulevard”, Gloria Swanson e algumas notas sobre fama e ostracismo

“Crepúsculo dos Deuses” (1950) compõe um dos capítulos mais elucidativos do studio system hollywoodiano. Se, como thriller, ainda enreda o espectador contemporâneo que busca diversão – por sua sólida construção cinematográfica, pelo tratamento psicológico das personagens e pela surpreendente história de amor que acaba por definir o destino do protagonista – a atenção às suas nuances trará ao espectador um entendimento agudo da indústria do cinema. Isso fez com que a obra-prima de Billy Wilder colecionasse, desde seu lançamento, defensores ferrenhos e críticos contumazes. O diretor foi acusado por alguns de cuspir no prato que comeu, já que não economizou nas tintas para pintar a insânia da riquíssima ex-estrela de cinema, a qual, ao invés de conseguir um retorno triunfal ao écran, acaba por ganhar destaque nas páginas policiais das gazetas de Los Angeles.
Norma Desmond – magnificamente criada por Gloria Swanson, sem dúvida no papel de sua carreira – é metáfora dos stars que se deixavam possuir pelo mundo de faz-de-conta criado pela sétima arte. A mulher endinheirada e excêntrica, habitante de uma mansão no bairro que leva a alcunha de Sunset Boulevard – “bulevar do pôr-do-sol”, numa ácida referência à decadência de seu estrelato – faz remissão a tantas rainhas das telas que tiveram fim semelhante: riqueza e solidão. A cutilada na indústria do cinema é ainda mais incisiva porque o diretor escolhe uma grande estrela dos anos 20 para dar corpo à atriz louca – o que só faz ressaltar o lastro que sua história tem com a realidade.
Swanson foi uma das atrizes mais bem pagas, belas e badaladas de meados dos anos 10 até fim dos 20. Como Chaplin e Mary Pickford, começou nos curtas-metragens. Fez primeiramente slapstick comedy, mas cedo se descobriu moldada à comédia elegante com toques dramáticos. Àqueles que desejarem conhecer sua história, recomendo fortemente a Parte 6 do documentário “Hollywood: a celebration of the American silent film” (1980), que soma uma rememoração sucinta da trajetória da atriz ao depoimento dela e de seus contemporâneos sobre os tempos em que multidões jogavam-se aos seus pés.
É impressionante como a rememoração do passado pelos entrevistados no documentário se aproxima da reconstrução desse mundo feita por Wilder na película. Gloria relembra extasiada da recepção grandiosa que ganhou do povo de Los Angeles ao retornar da Europa em meados dos anos 20, casada com um nobre, depois de anos afastada da capital do cinema. Ela constata ter rapidamente percebido que a histeria coletiva devia-se mais ao lugar que a indústria do estrelismo lhe dera que ao seu valor como intérprete. Devemos, no entanto, olhar com cuidado para esse aguçado senso crítico, que parece ser produto da distância temporal. Outras vozes do documentário pintam uma mulher apegada a produtos de luxo e aos rótulos, ao ponto de comprar o mais caro dos automóveis com seu primeiro salário e, depois de casada, ordenar que seus conhecidos a chamassem de "Madame la Baronesse". Não é de se estranhar que, de tanto ser taxada como um ser de exceção, a atriz tenha, naquele momento, passado a se comportar como tal.

Gloria Swanson: bela e exótica na sequência de "Stage Struck" (1925) em que ela sonha ser Salomé

Norma Desmond é uma versão do que Gloria Swanson fora no auge do estrelato. Por certo é uma versão grotesca, porém, é isso o que dá envergadura crítica ao filme de Wilder. A semelhança entre a atriz e sua criação se estende para outros elementos da trama. Na película, Norma ensaia um revival com Cecil B. De Mille, seu diretor predileto. Gloria também voltava às telas depois de um longo período de ostracismo: desde seu malogrado “Queen Kelly” (1932), suas chances de atuar foram escasseando – “Crepúsculo dos Deuses” foi seu primeiro filme rodado em nove anos. De Mille, que desempenha a si mesmo no filme, teve tanta importância na trajetória de Swanson como na de sua personagem de “Crepúsculo dos Deuses”: ele tirara a atriz do slapstick e lhe vestira com figurinos fabulosos, dando-lhe o ar num só tempo de ingênua e de femme fatale que a tornou duradouro objeto de desejo do público – remeto quem estiver curioso para saber mais dessa fase ao post que escrevi sobre ela num passado pregresso...
O símile entre realidade e ficção se estende a outros personagens da trama. O roteirista boa pinta e com poucos escrúpulos Joe Gillis é desempenhado à perfeição por William Holden, que também via esmorecer seus anos dourados de galã. O mesmo se dá com Buster Keaton - já muito distante dos tempos áureos em que era comparado a Chaplin. No filme ele faz ponta como o ex-colega de profissão de Norma: era uma das “figuras de cera” – segundo o cínico Gillis – que jogavam carteado com ela. E, por fim, Max Von Mayeling – o ex-marido, ex-diretor e atual mordomo da atriz – é interpretado de modo igualmente perspicaz por Erich Von Stroheim, ninguém menos que o diretor responsável pela falência de Gloria Swanson e pelo malogro de “Queen Kelly”.

Foto publicitária do filme

O que poderia se resumir a um acerto de contas de stars decadentes com a indústria do cinema torna-se um dos maiores êxitos artísticos da era do star system. Se o conhecimento das referências permite ao espectador compreender mais profundamente a dimensão da crítica, seu desconhecimento em nada interfere na fruição da obra, competente nos mínimos detalhes. Billy Wilder, que além de comandar a batuta co-assina o roteiro, está em sua melhor forma. Dirigia desde 1942, data do sensacional “The major and the minor”, porém, roteirizava desde 1930. Apenas entre 39 e 45 co-escreveu três obras-primas da screwball comedy, “Midnight” e “Ninotchka” (1939) e “Ball of Fire” (1941), e o contundente drama "Farrapo humano" (1945) – o que significa que ele conhecia bastante bem tanto a carpintaria cinematográfica quanto os bastidores de Hollywood. A escalação dos artistas é sensacional não apenas pelo seu valor simbólico, mas porque cada um se encaixa perfeitamente nas exigências do roteiro.
William Holden mescla com competência charme e cinismo, introduzindo na mistura, no decorrer do filme, uma imprevista dose de romantismo que faz com que a gente se apiede do fim que acaba por levar – fim que conhecemos desde o princípio, já que é ele, morto, que nos narrará a história. A novata Nancy Olson se sai bem como a jovem roteirista responsável por fazer aflorar o lado íntegro da personagem de Holden. Stroheim aproveita seu físico robusto e rosto impassível para construir um personagem ambíguo: como um cão de guarda, permanece ao lado da mulher que ama, mesmo que para isso tenha de conviver com a presença do jovem amante dela.

Todavia, o filme pertence mesmo à Gloria Swanson. A atriz repete a mulher longilínea que envergava a moda exótica de Cecil B. De Mille, injetando na personagem a dose exata de insânia. Ainda bonita, comove como a mulher de meia idade que se submete a intensos tratamentos estéticos para novamente estrelar um feature – e ela quer ser “Salomé”, a jovem filha de Herodíades, o que a torna mais digna de piedade. Seu desejo é vão; Hollywood repudiava a velhice – ao menos no que tocava à sua constelação de estrelas. O ostracismo faz a atriz viver das glórias do passado. Revê os filmes de quando era jovem, junto do mordomo que lhe insufla o ego e do jovem amante roteirista que, em troco de boa casa e comida, pretexta dar corpo ao impossível texto de “Salomé” que ela escrevera.

Uma das grandes cenas do filme nascem de um desses encontros de Norma consigo mesma. Depois de se deleitar com seu rosto tomado em primeiro plano – “ela parecia uma fã”, diz a personagem de Holden -, a atriz ressalta quanto os filmes silenciosos são superiores aos falados: Ainda parece maravilhoso. E sem diálogos. Nós não precisávamos de diálogos, nós tínhamos rostos. Não há mais rostos como esse. Talvez um: Garbo.. Argumentos desse teor foram deveras repetidos até no começo dos anos 30 – quando se formaram hostes bem marcadas contra e a favor do cinema falado.
Retomada no começo dos anos 50, a assertiva da atriz soa anacrônica. Tanto, aliás, quanto sua remissão a Garbo, que se ausentara das telas desde 1941. A ironia final repousa no filme escolhido para deleitar a estrela decadente: não outro que "Queen Kelly", que, na vida real, fomentara a decadência de Gloria Swanson.
Outra cena igualmente notável é aquela em que Norma Desmond e Joe Gillis se conhecem. Você é Norma Desmond. Você fazia filmes silenciosos. Você era grande., diz ele, e ela com altivez lhe responde: Eu sou grande. Os filmes é que ficaram pequenos. Em ambos os momentos a câmera lhe toma em severos planos americanos que lhe dão a aparência de monumento – glosando o modo como a personagem se via.
Cenas como essas poderiam, em mãos pouco hábeis, soar farsescas ou ofensivas. Gloria Swanson afasta o perigo, vestindo com ousadia sua personagem de uma sublime bizarrice. Aqueles que se lançaram em discussões sobre o teor lesivo da obra de Wilder – Greta Garbo e Cecil B. De Mille cortaram relações com ele depois de verem o resultado final da empreitada – se esqueceram de atentar para o tour de force que a atriz executou. Ao invés de compor uma sátira de si mesmo – como supuseram alguns – Swanson deu corpo à sua personagem mais complexa, a uma das personagens mais complexas do cinema de estúdio e, o principal, rompeu com as regras vigentes na indústria ao desempenhar um papel completamente avesso àqueles aos quais estava acostumada. Norma Desmond foi seu primeiro passo para romper com as amarras de Hollywood, e o decisivo para ela se aventurar em paragens estrangeiras: recomendo aos curiosos o insólito “Mio figlio Nerone” (1956), em que ela, divertidíssima como a mãe de Nero, atua ao lado de Brigitte Bardot, uma das amantes do imperador louco.

Agrippina (Gloria) e Nero (Alberto Sordi)

Infelizmente tivemos poucas chances de desfrutar da afiada veia cômica da atriz. Perguntada por Brownlow (aproximadamente em meados de 1960) sobre quanto de “Crepúsculo dos Deuses” se aproximava de sua história, Gloria responde - segundo ele, adotando a prosódia de Norma Desmond:

All of it, dear. I really am the greatest star of them all. But I hide away from people. I live in the past. And if you take a quick look in the bathroom, you’ll find a body floating face downward right now. (The parade’s gone by, 1968).

Nós só saímos perdendo com o fato de a indústria cinematográfica ter reconhecido o valor do filme tão tardiamente. Indicado para todos os Oscars principais, o filme levou para casa o prêmio de Melhor Direção de Arte e Melhor Música. Wilder ainda dividiu com os roteiristas de "A Malvada" a estatueta de Melhor Roteiro (escrito em parceria com Charles Brackett e D.M. Marshman Jr.). "A Malvada" foi, aliás, o grande vencedor da noite. Sem dúvida o longa de Mankiewicz é um ótimo filme. Aliás, curiosamente os temas de ambos os filmes se aproximam. Neste tematiza-se os bastidores do mundo teatral. A grande diferença é que nele o vilão está bem marcado, o que concentra a crítica numa personagem específica ao invés de transferi-la para as bases da indústria do espetáculo, como faz "Crepúsculo dos Deuses". Tivesse o filme e Gloria Swanson sido premiados e talvez teríamos um desdobramento muito diferente na história da sétima arte. Especialmente se Gloria tivesse seu trabalho na película reconhecido, desfrutaríamos com mais frequência de seu talento.

domingo, 26 de junho de 2011

Meia-noite em Paris (2011): comediazinha simpática para público cult

Woody Allen volta com maior fôlego depois de dois fiascos artísticos, o over the top “Tudo pode dar certo” (Whatever works, 2009) e o amargo “Você vai conhecer o homem dos seus sonhos” (You will meet a tall dark stranger, 2010). É certo que a fase dourada da carreira do diretor ficou nos anos 70 e 80 – com brilhos esparsos pontuando trabalhos posteriores, como “Vicky, Cristina, Barcelona” (2008), que julgo ser o seu filme mais interessante dos últimos cinco anos. O que não quer dizer que ele esteja completamente fora de forma. Artista prolífico e digno, Allen consegue imprimir sua marca em suas obras. Nunca produz filmes medíocres tendo em vistas unicamente o lucro – prova disso é o fracasso de bilheteria de muitas de suas produções em sua terra natal. Neste caso, não é diferente. “Meia-noite em Paris” é um típico Woody Allen – para o bem e para o mal. É um Allen acima da média – portanto, vale a visita no cinema – sem, todavia, ser uma obra-prima. Seu público fiel poderá se divertir, pois revisitará, neste filme, o melhor que o diretor já produziu para a sétima arte.
Allen ainda produz uma obra “autoral” nesta época em que parâmetros meramente mercadológicos norteiam o grosso da produção cinematográfica americana: os conflitos amorosos, a visão apaixonada e nostálgica à arte, a cidade vista como protagonista da história, o humor filosófico. Esses elementos são como peças de um quebra-cabeça, ordenados e reordenados pelo diretor em cada produção. O problema é que a ideia de “autoria” é muitas vezes usada como muleta, transformando a criação artística no emprego de uma série de procedimentos em direção a um fim já conhecido. Inegavelmente isso é seguro. Porém, tirar a ousadia da equação não faz o jogo ficar sem graça? Conjecturas como estas acabarão tomando conta do cinéfilo que conhece um pouco da produção de Allen assim que ele se deparar com “Meia-noite em Paris”.
O filme abre com planos gerais da cidade de Paris enquanto a banda sonora pespega no público uma canção antiga tocada numa vitrola. Ao fim da música, uma tomada da personagem de Owen Wilson – roteirista cinematográfico de sucesso irremediavelmente apaixonado por Paris – e da namorada recostados na amurada de uma das famosas pontes parisienses: “Essa cidade é uma maravilha. Você não acha Paris maravilhosa? Eu queria viver aqui” é mais ou menos o que ele diz.
Os sucessivos planos gerais de pontos turísticos da cidade, o trabalho do protagonista, o teor do discurso com que abre o filme, a música antiga, tudo isso remete claramente a “Manhattan” (1979). Em “Manhattan”, Isaac (Woody Allen) é um roteirista televisivo frustrado que joga para o alto seu emprego seguro para se tornar romancista; em “Meia-noite em Paris”, Gil (Owen Wilson) é um roteirista cinematográfico frustrado que idem. As canções do norte-americano George Gershwin costuram “Manhattan”; as canções do norte-americano Cole Porter costuram “Meia-noite...”.
Mais que um trabalho “autoral”, Allen faz aqui cópia de si mesmo. Se não é um problema para quem desconhece a filmografia do autor, isso deveras desconcerta quem a conhece. Eu fui uma das desconcertadas, não porque persiga sua obra, mas porque casualmente havia revisto seu canto de amor à Nova York um dia antes de ver seu canto de amor a Paris. Não fiquei muito confortável com a sensação de déjà-vu que reiteradas vezes me acometeu, talvez porque a melodia maravilhosa que soa do filme de 79 torna-se, neste, impostação inócua: como se Ella Fitzgerald, depois de entoar um de seus melhores Cole Porters, passasse seu microfone para mim (eu sou super desafinada).
Seguindo o paralelo entre ambos os filmes – Allen obriga-me a fazê-lo – Owen Wilson é, em “Meia-noite em Paris”, alter-ego do diretor. Corrijo-me: Wilson é o próprio Allen, que tenta transformar o autor em versão perfeita do que ele fora em seus melhores papéis (“Annie Hall” e “Manhattan”). Sejamos sensatos: como Woody Allen, só Woody Allen. E olhe lá... Perdoamos o tipo casmurro e nerd por meio do qual, nesses dois grandes filmes, conhecemos os conflitos sexuais da intelectualidade dos anos 70, porque Allen conseguiu através deles se transformar num personagem por vezes cativante. Owen Wilson não tem esse mesmo poder, não porque ele seja pior ator que Allen, mas porque o tipo que socialmente consolidou (de personagem tola de farsas tolíssimas) não dá credibilidade ao papel. Wilson não é tão bom ao ponto de fazer o público se esquecer das personagens que anteriormente desempenhou. Seu Gil torna-se uma colagem do cômico tolo com o casmurro nerd. Pelas mãos dele, Allen torna-se pastiche de si. Isso coopera para dar ao filme um tom farsesco que se estende para outros âmbitos.
O filme nos apresenta, grosso modo, dois núcleos: a Paris contemporânea e a Paris dos anos 20.
Do primeiro tomam parte a namorada do protagonista e os pais dela; a guia turística (Carla Bruni) e a vendedora de discos de Cole Porter. O segundo é composto por uma dúzia de artistas de todo o mundo que povoaram Paris depois da 1ª G.M.: Porter, Hemingway, Scott e Zelda Fitzgerald, Dalí, Bruñuel, Gertrude Stein etc. Os cenários da efervescente Paris dos 20 são magnificamente compostos. Há um cuidado quase que documental na composição da casa de Gertrude Stein (Kathy Bates) tal qual a descreveu Hemingway em “Paris é uma festa” (balanço nostálgico da juventude do escritor e da juventude da arte moderna concluída nos anos 60). Isso se estende para as frenéticas festas ao ar livre e libações noturnas ao som de composições musicais do período: o charleston dançado no parque de diversões e o bar no qual um Cole Porter safadinho canta a deliciosa “Let’s do it. Let’s fall in love” são verdadeiros festins para os nossos olhos (e ouvidos).
No entanto, isso nem sempre se revela num ganho dramático, já que tais ambientes não são suficientemente aproveitados para o desenrolar da história. Allen não transfere para sua película a importância que esse grupo teve na Paris daquele tempo. Esses artistas lançaram bases para a vanguarda cinematográfica – que objetivava fazer frente à produção convencional norte-americana; um tanto razoável da produção literária da época foi decidida em meio à algazarra, nos bares e festas e em casa da Madame Stein – que Hemingway pinta em todas as suas contradições em “Paris é uma festa”. Tais elementos estão ausentes do filme, que transforma os artistas em tipos caricaturados em traços grossos: Hemingway (Corey Stoll) parece a todo o momento estar posando para o retrato impresso em suas obras completas, além de repetir como mantra, ridiculamente, características definidoras de seu trabalho (“A linguagem tem de ser seca.” etc.); Dalí (Adrien Brodi) é uma perfeita casca dentro de um conteúdo que esvazia ao máximo o rótulo de “surrealista” dado à sua obra.
É curioso de se ver – ao menos para o público que conhece as referências; na sessão a que assisti, muitos abandonaram o barco antes do final e outros tantos saíram reclamando de terem perdido tempo – só isso. Do grupo, se salva Adriana, personagem fictícia desempenhada por uma ótima (como sempre) Marion Cotillard, mas sua delicadeza não consegue dar suficiente humanidade ao conjunto, já que ela pouco aparece em cena – e aparece nuns diálogos pouco inspirados.
O galho contemporâneo da história é composto por uma Rachel Mc Adams tão pobremente composta como os pais dela. Personagem plana, desagradabilíssima como a loira chata que, como seus progenitores, humilha o namorado de cabo a rabo da história: e ele estranhamente a segue como um cachorrinho.
A vivência empírica nos anos 20 – aliás, altamente tributária de “Rosa Púrpura do Cairo”, pois torna literal a metáfora da viagem no tempo proporcionada pela arte, como faz o filme de 1985 ao tratar do cinema – é costurada com razoável eficiência com o presente. A noção, implícita ao longo da história, de que o presente só é compreendido na distância temporal – o que o torna tão sedutor às próximas gerações – é escolarmente explicitada no desfecho, na cena em que a personagem de Marion bota ponto final à amizade colorida com o protagonista (a única coisa a dar calor humano à história) para viver na belle époque de 1890 – passado que tanto a seduzia.
Se isso está longe de compor um todo completamente descartável, compõe um em grande medida frustrante. Faltou ao diretor imprimir a “Meia-noite em Paris” o ritmo da cidade-luz do mesmo modo como ele fez em “Manhattan” com a cidade homônima. O apego a um passado de sucesso artístico perigosamente mostra um Allen que tem pouco a oferecer no futuro.

sábado, 18 de junho de 2011

Festival Varilux de Cinema Francês 2011: várias boas realizações e uma obra-prima

Nessa semana, um pouco da cultura francesa desembarcou no Brasil no Festival Varilux de Cinema Francês 2011 - que nos trouxe 10 filmes recentemente produzidos e alguns nomes consagrados que deles tomaram parte.
Em Campinas, o festival encontrou seu espaço de divulgação no Cinema Topázio, que graciosamente se divide entre a exibição da produção cinematográfica comercial e da alternativa - algo cada vez mais difícil de se ver - e, aleluia, está fincado logo na entrada da cidade, bem perto daqui. Não dá para falar da mostra sem mencionar a casa que a hospedou - que é, aliás, minha segunda casa, como a de tantos outros cinéfilos que temporariamente se mudaram para lá junto com os filmes franceses. O resultado foi proveitoso - salas cheias, algumas vezes lotadas, ajudaram a contrariar a crença socialmente consolidada de que o público está hoje preferindo o download pirata às salas de exibição.
O cinema - enquanto espaço de congregação de pessoas no âmbito público - mostra que não vai morrer tão cedo, e aqui assino publicamente embaixo da simpática propaganda do Telecine projetada antes dos filmes: não há nada como o cinema no cinema.
Isso dito, passo agora a dar uma notícia das novidades francesas. Notícia breve e que ainda se ressente da overdose de trabalho dos últimos tempos - o que, infelizmente, me afastou daqui por mais tempo do que desejaria. Espero que a desamarração geral das linhas abaixo não diminua o desejo dos leitores de passar os olhos por algumas dessas produções - especialmente por "Potiche: Esposa Troféu", a obra-prima do título, comédia protagonizada por uma irresistível Catherine Deneuve. No entanto, não vamos pôr a carroça antes dos burros. Primeiro, uma referência às boas realizações, ao menos àquelas que tive a oportunidade de ver (a lista completa está aqui).

Audrey Tatou em "Uma doce mentira"


Os dramas

O primeiro, "Copacabana" (2010, direção de Marc Fitoussi), protagonizado por Isabelle Huppert, injeta um riso ao mesmo tempo ácido e estapafúrdio na situação dramática que toma como base. Huppert desempenha uma mãe atípica, hippie extemporânea rejeitada pela jovem filha que está prestes a se casar. Depois de ser desconvidada para o casamento da filha, a mulher viaja à Bélgica atrás de um emprego de vendedora de apartamentos time-sharing (sistema segundo o qual se adquire um imóvel em conjunto com outras pessoas, desfrutando-se do direito de ocupá-lo por um breve período de tempo todos os anos). O motivo real da viagem nem mesmo ela sabe ao certo, impulsiva que é: provar à filha que poderia ser uma mãe convencional?; viver outra aventura noutra terra estrangeira? A fortuidade impera no roteiro, estendendo-se para o título e a trilha-sonora da película - canções brasileiríssimas ritmam malemá as andanças da mulher pela gélida Bélgica - coadunando-se com as excentricidades do conjunto (excentricidade impressa até mesmo no colorido cartaz).
A história é surpreendente: a viagem desde sempre anunciada ao Brasil - mas nunca realizada empiricamente - desdobra-se numa original vivência da protagonista com o país que ela tanto ama (ama, aliás, o estereótipo do Brasil, o que nem por isso deixa de ser interessante, já que dá consistência ao papel da mulher avoada e calorosa); o percurso até o insólito clímax (que não vou anunciar para não perder a graça) é marcado por encontros da protagonista com personagens igualmente incomuns.
O mote da trama é doloroso e Huppert parece mais uma vez se deleitar desempenhando com desprendimento outra personagem surda às imposições do mundo, vivendo somente para seus instintos (vi-a pouco tempo atrás em "Minha terra: África", igualmente correta). O filme não alça nenhum maior voo, porém, é interessante pela forma como rejeita expressamente qualquer convenção - o que pode até acarretar na dificuldade de o público se identificar com a personagem principal, mas nem por isso diminui o interesse da história.

Os outros dois dramas seguem o mesmo saudável percurso que faria muito bem ao cinema norte-americano standard dos dias de hoje: roteiros despretensiosos, limpos e seguros, e atuações de uma naturalidade quase documental.
"O pai dos meus filhos" ("Le père de mes enfants", 2009, direção de Mia Hansen-Love) toma como tema a indústria do cinema a partir do ponto de vista de um pequeno produtor que tenta se equilibrar entre os sucessos comerciais e os artísticos. Que a luta é infausta todos nós sabemos. O problema é que as produções que se dedicam ao assunto insistem em desfechos upbeating - nos quais a qualidade vence o dinheiro e o artista lutador vê finalmente seus esforços recompensados. Aqui não há disso.
Acessamos flashes da vida familiar e profissional de Grégoire Canvel, pai amoroso e produtor cinematográfico dedicado que acaba digerido pelo sistema. A soma dos âmbitos público e privado, todavia, não prenuncia o desfecho que o homem terá: por isso tal desfecho é tão surpreendente.
A principal riqueza do filme está no modo como as duas partes da história são contadas. Na segunda, a virilidade - marca principal da personalidade de Canvel, transferida para o ritmo frenético da filmagem - é suplantada pela delicadeza das mulheres da família. A forma como o percurso se dá é bastante bonita: Multiplicam-se os primeiros planos dos rostos das frágeis mulheres e a velocidade dá lugar à lentidão; enquanto isso, através de velhas cartas do homem e da defesa de seus ideais, mãe e filhas tentam repor sua presença. O resultado vale a pena ser conferido.
Igualmente original é o modo como o thriller Simon Werner desapareceu... ("Simon Werner a disparu...", 2010, direção de Fabrice Gobert) é narrado. O mote é simples: numa escola de Ensino Médio, três jovens misteriosamente desaparecem. As soluções comuns ao gênero são, no entanto, deixadas de lado em prol de uma narração reiterativa, que teima em (re)contar tais desaparecimentos a partir dos pontos de vistas dos colegas de escola dos jovens. A escolha igualmente diminui a importância dada aos momentos de surpresa, e os sustos comuns ao gênero dão (viva!) espaço para uma leitura muito mais cerebral do caso narrado. O final é surpreendente e só faz ressaltar a potencialidade de uma narração em primeira pessoa: a câmera ganha os olhos de várias personagens; a subjetiva direta apresenta o olhar de cada um sobre o fato. Quem faz o balanço é o público, que, nesse sentido, participa do desvendamento do caso.
Algo curioso - e que menciono só de passagem, já que não consigo cogitar em suas razões - é que o filme tem um sopro nostálgico que se estende para as outras duas produções das quais me ocupo a partir de agora. Nele aparecem debates sobre o tabu do homossexualismo, a AIDS e a camisinha. Além disso, pululam walkmans e os toca-discos ritmam as festas estilo "Barrados no Baile" - o divertimento ingênuo com que as personagens dos anos 80 comemoravam a saída dos pais de casa ganha aqui tom lúgubre, mareado pelo aparecimento de um corpo. Parece que o nosso dia-a-dia marcado por celulares e demais dispositivos de localização imediata diminui o mistério das coisas, e que para novamente encontrá-lo se é preciso mergulhar no passado...

As comédias

O festival acertou em cheio na escolha das comédias: ambas leves e adoráveis. "Uma doce mentira" ("De vrairs mensonges", 2010, dirigido por Pierre Salvadori) permitiu a Audrey Tatou revisitar a personagem que eternizou em "O fabuloso destino de Amélie Poulain".
O filme está distante da obra-prima de 2001 no que toca à temática e o cuidado com a fotografia - de uma sofisticação e singeleza ímpares, como raramente vemos nesses dias. Porém, ainda podemos ver uma Audrey Tatou luminosa como um raio de sol - sim, a comparação é tolinha, mas é exatamente nela em que pensava sempre que o rosto da atriz era enquadrado pela câmera - demonstrando cabalmente que, embora se desincumba bem de papéis dramáticos, seu elemento mesmo é a comédia leve.
O enredo é simples, mas rende múltiplos achados cômicos: Emilie é dona de um estiloso salão de beleza situado num canto da Riviera e tem como empregado um jovem charmoso que nutre por ela uma paixão recolhida. Uma carta romântica anônima escrita pelo rapaz à moça dá início a peripécias que acabarão por envolver também a mãe dela - mulher desgostosa da vida depois de ser abandonada pelo marido.
Nada muito inovador, porém, a história é contada de um modo tão gracioso que se torna imperdível. Para isso, contribui enormemente uma trilha sonora dos anos 80 - não localizei os nomes das canções para dizê-lo com certeza, mas os arranjos me parecem bastante tributários dos 80 - que são um deleite para os ouvidos dos nostálgicos (para mim, essas canções combinavam com a piscina do clube onde eu passava despreocupados verões, tanto tempo atrás...). Elas caem como uma luva na história, dando credibilidade aos bobinhos desencontros amorosos encenados - já que estão envolvidos por aquela pátina do tempo que torna tudo mais charmoso. Imperdível, assim como "Potiche".

A surpresa do festival foi, para mim, "Potiche: Esposa Troféu" (Potiche, 2010, dirigido por François Ozon). Por causa dele, Catherine Deneuve acabou de ganhar um espaço de destaque na minha prateleira de musas.
O filme segue de perto o melhor da screwball comedy. Não conheço a filmografia do diretor e conheço pouco a de Deneuve. Então, ver o filme me proporcionou a deliciosa descoberta de que é ainda possível reencontrar na tela grande o ritmo que tanto me deleita naquelas maravilhas dos anos 30 e 40 dirigidas por Capra, Lubitsch, Cukor, La Cava... E isso pelas mãos de uma atriz que, embora experiente, mostra que pode ser lépida como uma garotinha - o que multiplica o charme da história.
"Potiche" mergulha romanticamente no passado - no final dos anos 70, aurora da luta da mulher pela igualdade social. Deneuve é Suzanne Pujol, a esposa enfeite.
Casada com um homem de ferro da indústria do guarda-chuva, a mulher de meia-idade (embora a atriz tenha quase 70, passa facilmente por uma mulher de 50 - ou menos) precisa se contentar com um espaço módico na vida pública e privada do homem. Como as bonequinhas dos anos 70, Suzanne se dedica a ninharias. Ela escreve poesias... A sequência que abre o filme, da mulher correndo no bosque e interagindo com os pequenos animais silvestres, é um primor da graça, tolice e poesia (não é quase impossível juntar bem tudo isso?).
A viagem ao passado é acompanhada de um olhar num só tempo amoroso e analítico. O filme constrói, com riqueza de detalhes, tipos e estereótipos dos anos 70 - o próprio pôster faz graça com isso, rotulando todas as personagens logo de cara, influenciado em grande medida pela produção cinematográfica e seriada da época. Porém, cabelões armados, calças bocas-de-sino, laquê e companhia emolduram personagens algo complexas. Os estereótipos vão caindo na medida em que a esposa-troféu vê-se obrigada, devido à doença do marido, a sair da estante e enfrentar a fábrica dominada pelos funcionários insatisfeitos. E aí, o filme é todo de Catherine Deneuve, que conduz o protagonismo com uma maestria igual a qual é raro vermos. A dignidade que a atriz experimentada imprime a cada cena faz o filme a todo momento deixar a sátira e esbarrar na poesia: seu encontro com o velho amor na boate da moda; sua relação suis generis com o marido - contada por uma câmera que a todo momento beira o kitsch mas vitoriosamente escapa dele.


Sem contar as referências à sétima arte - não só a produzida nos anos 70. Sabem que sou amante assumida do cinema clássico. Por isso minha emoção ao ver Catherine tratada com um respeito quase reverencial pelo diretor - a alusão a "Os guarda-chuvas do amor" não está só na fábrica de Monsieur Pujol, mas na canção que a própria personagem entoa graciosamente no clímax do filme. O respeito é merecido, porque não só a atriz mostra ter se esbaldado em cena, nós também nos esbaldamos com ela.

Como esse post é mais um convite para que os leitores conheçam as produções que uma análise cerrada de cada uma delas, paro por aqui para não estragar as surpresas. Aqui em Campinas, nos movimentamos e ganhamos de presente "Potiche" por mais um par de semanas. Desejo-lhes a mesma sorte!

quarta-feira, 25 de maio de 2011

Manhattan: 1921, 1925, 1979, 2011...




Nunca estive pessoalmente em Manhattan, mas ela já bateu em minha porta tantas vezes que a sinto parte de mim. Culpa dos livros, das músicas e dos filmes; de Woody Allen, Rodgers & Hart, Antonio Ferro e de tantos literatos e artistas que procuraram reterem-na em suas obras. Portanto, meu passeio mental por esse pedaço de Nova Iorque tem de obrigatoriamente passar pelos olhos daqueles que o registraram e são os grandes responsáveis por inventar a cidade que seus visitantes reais e virtuais conhecem – já dizia Oscar Wilde que nosso olhar às coisas está pautado pela arte. Woody Allen sublinha isso na belíssima declaração de amor à cidade que é “Manhattan” (1979), declaração que a monumentaliza de modo muito semelhante ao que fizeram Paul Strend e Charles Sheeler na “Manhatta” de 1921: por meio de planos gerais tomados de noite e de dia, que transformam a cidade numa ininterrupta rapsódia de luzes e sombras. É explicitamente por meio das lentes amorosas da arte que Allen canta a cidade, ao abrir seu filme com o toque jocoso de clarinete que introduz “Rhapsody in blue” (1925) – através da qual George Gershwin dizia querer glosar a “loucura metropolitana” de seu país.

Manhatta (1921)


Manhattan (1979)

Capítulo um: “Ele adorava a cidade de Nova Iorque. Ele a idolatrava desmesuradamente.”. Não. Melhor “Ele a romantizava desmesuradamente. Para ele, independente da estação, esta ainda era uma cidade que existia em preto e branco e pulsava ao som das grandes canções do George Gershwin.” Ah, não. Deixe-me começar de novo.

Pano rápido. Nunca fui grande fã de Woody Allen, mas preciso confessar que essa sua personagem me enredou desde a primeira tomada. Allen escolhe acertadamente a metalinguagem para retratar a cidade. Assim sublinha o caráter de construção dela por meio da arte, ao mesmo tempo em que alinha as escolhas de seu alter-ego às suas próprias escolhas enquanto diretor. A voz off que faz emergir os percalços enfrentados pela personagem no intuito de evitar os sentimentalismos ao se referir à cidade soma-se às belas imagens em branco-e-preto que se sucedem em crescendo, culminando numa sensacional queima de fogos, tudo isso acompanhando os movimentos de “Rhapsody in blue”. A conclusão óbvia fica implícita: é impossível falar sobre a cidade sem ser romântico, meloso, sentimental. Allen compreende isso bem e, com “Manhattan”, compõe um hino. Sublinha ainda mais o caráter de idealização ao escolher a escala de cinza em detrimento do filme em cor – cujo lastro com a realidade é muito mais forte. A cidade que ele nos oferece é fortemente permeada por sua subjetividade. Em várias cenas, a visibilidade dos elementos é prejudicada pela manipulação das imagens em direção ao elemento mais elementar do cinema: o contorno de luzes e de sombras. O resultado final é notável. “Manhattan” é o filme que tematiza a cidade de modo mais poético.

Woody Allen e Diane Keaton: sombras no Observatório

A película não é apenas uma homenagem à cidade, mas também à produção cultural que ela inspirou. A tomada inicial e a final, do sol se pondo detrás do Empire State Building, faz clara analogia à “Manhatta” (1921), que abre e fecha com os mesmos planos gerais de uma cidade cujos prédios, de noite, pareciam irradiar luz própria. Allen é embebido pela mesma atmosfera de encanto que antes seduziu Strend e Sheeler. Impossível ler o intertítulo que fecha o filme de 1921 sem pensar que o feitiço nele formulado fez outra vítima mais de 50 anos depois: Belas nuvens do por do sol! banhem com seu esplendor a mim ou os homens e mulheres das próximas gerações .


As semelhanças entre as duas produções não param por aí. No entanto, elas não escondem as diferenças. A cidade é protagonista de ambas. Na de 1921, o plano geral da cidade se segue a tomadas feitas a partir de uma embarcação que se aproxima do porto. Seguem-se tomadas, a partir do porto, da balsa que se aproxima: a Manhattan de mil pés desce até o solo firme. O formigueiro humano ganha a ilha que é, então, tomada de diversos ângulos: num plongée que flagra um cemitério a conviver harmonicamente – sem a interferência dos muros – com monstros de concreto, ruas movimentadas e multidões; num plongée tomado do alto de um arranha-céu, tendo em primeiro plano as amuradas de cimento e abaixo, um mar de gente; em contra-plongées que tornam os edifícios ainda mais grandiosos: Grandes construções de ferros, fortes, subindo esplendidamente em direção ao céu claro., diz o intertítulo. O olhar exaltado à cidade é explicitado, sobretudo, pelo constante movimento de sobe e desce da câmera, que mimetiza a tentativa do olho humano de abarcar o desmesurado.


Tudo isso está patente no filme de Allen – às vezes numa analogia perfeita: as grandes multidões que ganham as ruas, os andaimes que ressaltam o desejo dos nova-iorquinos de alcançarem os céus, as pontes, o cemitério entre prédios (impressionante o respeito à morte que fazia com que, em 1979, ele ainda estivesse entre os prédios). Todavia, a rapsódia metropolitana de Allen constrói sentidos outros. O filme de 1921 compõe um conjunto de documentários produzidos na época, no mundo, por diferentes realizadores que tinham por norte um mesmo objetivo de louvar o progresso tecnológico e a industrialização. “Manhatta” concentra-se na cidade de cimento. Suas personagens são anônimas: meras formigas operárias responsáveis pelo seu bom funcionamento. Woody Allen, em contrapartida, integra personagens e espaço num todo admiravelmente coeso. Sua narrativa imprime o sentimento que toma conta da personagem construída por Isaac, alter-ego do diretor: cidade e personagem pulsam ao som da mesma melodia. Melodia feita de ruído e de caos como suas vidas amorosas e os prédios em construção; de suavidade e poesia como um fortuito passeio de charrete pelo Central Park ou uma visita ao Observatório num dia de chuva. Allen aproveita o Cinemascope para compor panoramas riquíssimos da cidade que ele ama e faz suas personagens amarem. Às vezes deixa os artistas pequeninos, num canto da cena, e faz os monumentos falarem – dizendo através da imagem o quanto aquela grandiosidade os deixava atônitos.

Isaac para Mary: É tão lindo quando as luzes começam a se acender. Esta cidade é incrível. Não ligo para o que todos dizem. Ela é simplesmente sensacional.

Allen destaca do todo um sensacional conjunto de personagens, cada qual com suas peculiaridades, o que só faz sublinhar o intertítulo que abre a “Manhatta” de 1921:


Cidade do mundo
(pois todas as raças lá estão)

Cidade de altas fachadas
de mármore e ferro,

Cidade orgulhosa e apaixonante.

Ao redor do roteirista de televisão frustrado circulam uma namorada jovenzinha, a ameaçadora ex-esposa lésbica, a mulher bela e intelectualizada – aparentemente seu par ideal, o amigo galinha com a esposa demasiado auto-consciente. A variedade dos caracteres soma-se à do cenário, já que seus encontros e desencontros de dão pelas ruas, ruelas, pontes, museus, festas e parques da cidade. O próprio cenário ganha densidade quando comparado ao do filme de 1921. A natureza exerce papel preponderante, e exemplo admirável é o plano geral que abre e fecha o filme, dos prédios iluminados pelo pôr-do-sol com o Central Park em primeiro plano. Isso ressalta o desejo do diretor de descer até à raiz dos sentimentos e das relações humanas. O percurso surpreendente culmina numa cena que patenteia a integração entre personagens e cidade: a corrida do protagonista pelas ruas da cidade rumo à mulher que ama. E isso ao som de uma “Strike up the band” que, devido à aceleração da velocidade, evolui de marcha para corrida. Outro trunfo do filme é o aproveitamento que faz das canções de George Gershwin, sempre em identidade com a história – eu convido fortemente o espectador a ver o filme atentando para o modo como a ação se enlaça às histórias vividas pelas personagens cantadas pelo compositor quase um século atrás.

A “Manhattan” cantada por Allen está mais para aquela cidade romantizada por Richard Rodgers e Lorentz Hart na canção Manhattan de 1925. Nela, o eu-lírico faz um percurso afetivo pela cidade que ele considera mais propícia para a honeymoon que as tradicionais Cataratas do Niágara.

We'll have Manhattan,
The Bronx and Staten
Island too.
It's lovely going through
The zoo.
It's very fancy
On old Delancey
Street, you know.
The subway charms us so
When balmy breezes blow
To and fro.
And tell me what street
Compares with Mott Street
In July?
Sweet pushcarts gently gliding by.
The great big city's a wondrous toy
Just made for a girl and boy.
We'll turn Manhattan
Into an isle of joy.
(...)

O percurso proposto pela canção recupera em boa medida aquele já palmilhado pelas Manhattans de 1921 e 1979, com a diferença de que nela, como na Manhattan de Allen, a personagem que frui a cidade é individualizada: do Bronx à Staten Island, dos monumentos de concreto ao Central Park, passando por Coney Island (parque de diversão à beira-mar), pela praia Brighton (onde a pequenina roupa de banho da mocinha faria os mariscos sorrirem de barbatana a barbatana...) e pela Broadway (as suas crianças veriam “Abie's Irish Rose”, sucesso de público de 1922 a 1927), assim como pelas românticas ruazinhas da cidade cortadas gentilmente pelos carrinhos de mão e pela familiar vizinhança do Brooklyn, lugar onde os pombinhos viveriam – Lorentz & Hart fazem suas personagens abraçarem a cidade de norte a sul. Muitas explícitas semelhanças com o filme de Woody Allen. A primeira é o passeio no Central Park, Where our first kiss we stole,/ Soul to soul:

Minha sentimental journey pela cidade acaba num mapa desta “Manhattan” graciosa pintada por Rodgers e Hart, em homenagem a todos os que querem visitá-la virtualmente – o Google oferece agora uma ilusão quase perfeita do passeio...


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segunda-feira, 2 de maio de 2011

“Cópia Fiel” (2010): umas reflexões sobre realidade, ficção, original e cópia


Um longo plano médio de um palco vazio. Na mesa de conferência, um livro coopera na contextualização da cena, esboçando em traços ligeiros o caráter do erudito que ali palestraria. Seguem-se cenas que em nada devem aos registros documentais desse gênero discursivo: as desculpas do cicerone pelo atraso do palestrante, a chegada do autor e sua apresentação – tudo tomado por planos longos e impessoais. Os aborrecidos minutos iniciais de “Cópia Fiel” (“Copie Conforme”, de Abbas Kiarostami, com Juliette Binoche e William Shimell) certamente não convidarão a ver o filme mais que a exígua plateia que aguarda que o palestrante James apresente sua obra. Por isso mesmo, insisto com veemência para que o público persista - caso contrário, perderá a coisa mais interessante que chegou aos cinemas neste ano.
O tema da palestra é também o da película, denominada segundo o título do livro. A reflexão sobre a relação entre cópia e original preside o debate pelo espaço de duas horas de projeção, originando um trabalho fronteiriço: o roteiro tem diálogos copiosos que em nada devem a uma obra literária; a fotografia rebuscada e elegante nada deve ao cinema; sem contar que o filme toca o campo teatral pela adoção do “teatro dentro do teatro” – característica que ocupa a cena dramática ocidental faz 5 séculos (com Shakespeare em “Hamlet” e “As you like it” e com Pirandello em “Seis personagens à procura de um autor”, por exemplo).
“Cópia Fiel” implode com os limites entre as artes para colocar em destaque a própria natureza da fruição artística. O que determina nosso olhar à obra de arte? Walter Benjamin nota que cada original é dotado de uma aura atribuída pela tradição, que torna o objeto único. Nesse sentido, as cópias das pinturas e esculturas, mesmo fieis, estariam destituídas desse caráter de unicidade. Por isso, a Mona Lisa original de Leonardo Da Vinci vale muitos milhões mais que qualquer reprodução dela. A original tem um valor simbólico do qual as cópias estão destituídas - por isso, é protegida por uma inexpugnável redoma e visitada diariamente por admiradores embasbacados. Tal ideia é, no filme, debatida pelo casal de protagonistas in locus – na histórica Florença, museu ao ar livre.
Ao sair da Universidade (onde era discutido o livro) e da loja de antiguidades administrada pela mulher (sem nome) interpretada por Juliette, o filme ganha densidade, pois incorpora a natureza como elemento fundamental da equação. A questão da originalidade ganha nova dimensão. Ela não está mais no objeto artístico, mas sim naquilo que é tomado como modelo para a criação da arte – a natureza, as pessoas. É possível recuperar o rastro histórico dessa reflexão. A relação entre arte e realidade já foi deveras discutida, tanto que deu a Oscar Wilde a possibilidade de lançar, na “Decadência da mentira” (1889), um de seus paradoxos: na verdade, é a natureza que imita a arte, já que o modo como enxergamos a natureza é condicionado pelas artes que nos governam.
O filme busca um meio termo entre essas conclusões tocando numa questão moderna: não há uma realidade intrínseca, o que há é o nosso olhar para ela – e o que enxergamos é pautado pela sociedade em que vivemos, pelos valores que aprendemos etc. E neste contexto, somos o personagem que inventamos ser. A arte, na medida em que nos permite experimentar novos “eus”, torna-se o espaço privilegiado para que os indivíduos se deem conta de toda a sua potencialidade. Joel Serrão, estudioso de Fernando Pessoa, tece do seguinte modo o que chama de “fenomenologia da máscara”:

A fenomenologia da máscara permite-nos entrever algo acerca desse desdobramento dum ser que quer parecer aquilo que não é e que acaba por descobrir-se, ao dissimular-se, mediante a sua dissimulação.

De acordo com Fernando Pessoa, é na distância de nós que descobrimos quem somos. O tema tem espaço na literatura há tempos. Rosalinda, da peça de Shakespeare “As you like it”, segue esse percurso da ficcionalização até a descoberta de si mesma:
A necessidade prática de sobrevivência a faz se travestir de homem para cruzar uma perigosa floresta. A fantasia acaba tornando-se um disfarce perante si mesma quando a moça vê na floresta o nobre Orlando, que a conhecera durante um torneio e por ela se apaixonara. Ela (agora transformada no jovem Ganimedes) pede que Orlando lhe fale como se ela fosse Rosalinda. Isso o leva a expressar sua paixão sem constrangimento, enquanto que a jovem, transformada no confessor daquele que a amava, consegue o distanciamento que lhe permite analisar a questão como se fosse uma terceira pessoa. No entanto, pessoa e personagem se misturam: o momento crucial em que Rosalinda se descobre apaixonada pelo jovem é quando, ainda fingindo-se de homem, desmaia após receber do irmão de Orlando, Oliveiro, um lenço com o sangue do moço.
Se Abbas Kiarostami não inovou no tema, inovou no modo de tratá-lo, já que leva suas personagens a renegociarem constantemente seu lugar na ação, o que multiplica a força do travestimento.
As personagens de “Cópia Fiel” experimentam de forma literal a teoria que postula a identificação dos leitores com as personagens criadas pela arte: ao invés de experimentarem outras vidas da distância, a mulher e James lançam-se no jogo de criação de personagens, abandonando os papéis que usualmente interpretavam na sociedade. A Toscana torna-se palco de um processo de descoberta de si e de desdobramento do eu. A ideia de que o mundo é um palco e nós, meros atores (presente em “As you like it”) é em “Cópia Fiel” elevada à enésima potência, já que o travestimento parte dos dois lados e pouco conhecemos as personagens até elas começarem a se reinventar.
Para compor a questão cinematograficamente, o diretor lança mão de jogos de espelho que multiplicam a “realidade”, detalhando suas gradações. No escuro antiquário, onde predominam originais e cópias de obras de arte, vemos James-William Shimell conversar com o reflexo de Ela-Juliette Binoche. Na clara praça da cidadezinha da Toscana para onde viajam as personagens, apenas vemos a escultura dos amantes refletida no espelho que está no meio do casal, em segundo plano – a “originalidade” da mulher e de James é aqui ressaltada, mesmo que ambos estejam dando corpo às personagens que criaram (porém, onde exatamente acaba a realidade e começa a ficção?).
O percorrer das ruas da cidadezinha é também o palmilhar da tradição cinematográfica. “Viagem à Itália” (1951) está muito presente em “Cópia Fiel”. A tomada inicial da película de Rossellini, do carro numa estrada cortada por ciprestes, com a alternância das tomadas da estrada e das personagens que estão no carro; o debate sobre o cotidiano dos habitantes da região, que no começo serve meramente para preencher o silêncio, mas depois o meio e os indivíduos acabam introjetados nas personagens, modificando-as; as canções típicas italianas que enchem o espaço: Kiarostami retrabalha esses elementos de modo pessoal.
Para o diretor iraniano, assim como para Rossellini, o belo cenário não serve apenas para ostentar histórias de amor pueris: nele a amargurada mãe solteira desdobra-se na esposa de James: ora cética, ora melodramática, ora romântica, ora sensual – toda uma vida (ou então muitas vidas) condensada no espaço de uma tarde. Tanto um diretor quanto o outro abrem o campo visual e deixam falar o mundo complexo tomado pela câmera. A diferença está no casal que ambos colocam no centro desse mundo. Quando o casal de Kiarostami discute a relação turbulenta que inventou para si, está discutindo o papel de cada um de nós na sociedade: os papéis sociais que interpretamos são em grande medida definidos pela nossa herança cultural – é por isso que a língua, importante fator de identidade, desempenha papel fundamental na película, construindo simbolicamente a aproximação e o distanciamento entre a(s) mulher(es) e James.
Juliette Binoche exerce papel preponderante para que essa história complexa (e até mesmo academicizante) funcione tão bem no cinema.
Não é novidade dizer que a atriz atua e fotografa muito bem. Aqui, no entanto, ela dá a performance de sua carreira (Bravo! Juliette). Constrói nos mínimos detalhes as nuances de suas personagens, circulando com fluidez pelo francês, italiano e inglês – idiomas que mostra dominar com perfeição. Juliette está sublime como suponho, por exemplo, nenhuma atriz americana jamais conseguiria estar neste papel – o lugar de destaque ocupado pelos Estados Unidos no mundo determina o modo como seus habitantes enxergam a si e aos outros: é muito difícil encontrar num norte-americano essa percepção sensível do estranho ao ponto de conseguir colocar-se tão inteiramente em sua pele (questão, aliás, que é o cerne do filme). A atriz faz com que nos identifiquemos com cada desdobramento que cria de si, o que só faz sublinhar o caráter de representação não só da arte como também da vida.
Porém, se no campo da arte as possibilidades são infinitas, na vida temos de lidar com os liames que nos foram socialmente impostos. A mulher e James precisam pôr um ponto final em sua encenação no momento em que esses liames são ameaçados. Porém, isso faz o filme se salvar – afinal, cabe à arte esse papel de nos fazer voar.

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Só agora me dei conta de que a personagem de Juliette não é nomeada. A dificuldade de me referir a ela ao longo do texto deixou ainda mais patente para mim a complexidade da questão tratada no filme.
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Queria deixar aqui meus sinceros agradecimentos ao Antonio Nahud Júnior pela referência que fez a este blog. Fiquei muito comovida com suas palavras!