segunda-feira, 31 de outubro de 2016

Hobart Bosworth, “Behind the door” e o herói partido ao meio

O cinema clássico teve um poderoso aliado no Melodrama, gênero que perfazia o ideal de sanidade de corpo e espírito clamado pelas ligas de moralidade do redor do mundo. Sua ética, embora secular, mimetiza a cristã: como no cristianismo o percurso pedregoso da vida prepara o corpo para a bem-aventurança eterna, na estética melodramática a aceitação humilde dos revezes do destino conduz à ascensão, não apenas celestial, mas moral – e, em não raros casos, social. “Senhor, dê maturidade à minha alma, antes de ela desencarnar”, ouve-se da boca do padre da Carruagem Fantasma (de 1921). Victor Seastrom, o ator e protagonista da obra-prima sueca, dá de ombros ao dito bíblico, recebendo como paga por uma vida de esbórnia a árdua missão de conduzir as almas dos mortos ao longo de todo um ano. O cinema standard era uma religião sisuda: punia severamente aqueles que se distanciavam de seus ditames. 
Por isso, a rodagem de um filme como o norte-americano Behind the door (de Irvin Willat), no recuado ano de 1919, é algo que se anotar. A obra conta a história de Oscar Krug, americano de meia-idade, de rosto severo e ascendência alemã que, por amor da jovem e primaveril Alice Morse, deixa o ofício na marinha e passa a tocar uma loja de brinquedos, nas redondezas de onde ela vive. Vemo-lo debruçado, a sonhar, ao balcão de seu hospital de brinquedos; a curar, com suavidade, a bonequinha que acabara de ser atropelada... Apenas esses contornos anunciam matizes desusados à produção cinematográfica da época. Os Estados Unidos recém-saídos da Primeira Grande Guerra devolviam, neste filme, o status de humanidade ao povo alemão – lembremo-nos que, neste mesmo 1919, o seriado The Perils of Pauline é remontado pela Pathé europeia e o seu vilão rebatizado com um nome germânico. Mais ainda, misturavam-no simbolicamente com a sua carne, construindo um protagonista que, embora oriundo de família alemã, recebe explicitamente o rótulo de “norte-americano”. 
A trama comandada por Irvin Willat entrelaça duas temporalidades: o ano de 1917 e “cinco anos mais tarde”. Ao mesmo tempo em que remete ao momento em que os EUA aderiram ao conflito, acena para um futuro que supera o momento histórico do filme. O passado pinta em tons pastéis o idílio amoroso do casal, malgrado a rejeição do pai da jovem, que quer o homem maduro fora da cidade. Willat conduz uma firme crítica à xenofobia – que avultara durante a Guerra, mas ainda se fazia sentir. Para provar-se um verdadeiro “americano” e, enfim, poder servir a pátria que seus ascendentes escolheram para si, Krug precisa meter-se em duelo com os cidadãos locais. O conflito em microcosmo não apenas prenuncia a envergadura física e moral do personagem – que, sozinho, vence um grupo numeroso – como os contornos mais negros de sua alma, e do filme como um todo. Os oponentes reconhecem-no logo um igual e o abraçam. Mas, o sangue no qual ele está banhado sujará o lencinho alvo da bela Alice (Jane Novak, que tem o tipo físico de Pearl White). Efetivamente, tampouco o destino da moça se revelará suave. 
Ambos se casam e Krug recebe como atribuição o comando de um navio de guerra da frota norte-americana. Expulsa de casa, a jovem irá ter com o marido. Impedida, por força das regras, de estar no navio, esconde-se, até que um torpedo inimigo lança-a ao mar junto do marido e de toda a equipagem. Behind the door atrás da porta – abre de forma lúgubre, com um amaríssimo Krug chegando do mar rumo à sua loja de brinquedos, encontrando-a em ruínas e, depois de pôr os olhos no lenço ensanguentado da amada Alice – espólio daquele dia de litígio –, rememorando os fatos que haviam sucedido ao longo daqueles anos. Quando vê Kate ao mar, o público sabe, portanto, que algo de muito ruim lhe acontecerá. Todavia, nada – nenhuma narrativa anterior, ao menos que eu tenha notícia – prepara o espectador para o teor dos acontecimentos que se desdobrarão. A jovem acaba tornando-se, com o marido, a única sobrevivente do naufrágio, apenas para terminar, sozinha, nas mãos da tripulação de um submarino alemão. Seu destino apenas será conhecido nos desdobramentos finais da trama, quando o marido, que jurou vingança, está prostrado diante do algoz da jovem – o qual desta vez ele resgatara do mar. 
É fundamental, agora, que eu fale de Hobart Bosworth – um ilustre desconhecido para mim até a Giornate del Cinema Muto deste ano, quando o vi, e vi esta obra magistral, pela primeira vez. Ao vê-lo, pensei numa versão muda do James Stewart de Vertigo, embora a semelhança talvez esteja menos nos dois homens que nas duas tramas, ambas a rescenderem a mais dolorosa desolação, malgrado – ou, talvez, justamente por isso – mergulhem de olhos fechados no mais desabrido amor-romântico. É um misto de ódio e desespero o rosto de Hobart Bosworth, ao perceber que o submarino que encontrara o casal pertencia ao inimigo. Sua contenção ao se encontrar novamente com o algoz, e falsear para descobrir a verdade, caminha na contracorrente da tipificação do cinema clássico. 
Temos aí uma personagem que revela, na superfície, uma alma cheia de densidade. Ao descobrir, com o público, o que ocorreu à jovem – ela fora violentada por toda a tripulação e depois, morta, atirada ao mar –, torna-se um moderno Orestes, cometendo a mais lúgubre das vinganças distante dos olhos do público; “atrás da porta” que dá título ao filme. Behind the door despede-se do Melodrama para enveredar pelo Drama Romântico – tormentoso, avesso à ética cristã – ou pela Tragédia. A vingança parece ser, ali, clamor dos deuses, como na Electra de Eurípedes. Tanto que o perecimento final do protagonista – sobre o balcão da loja de brinquedos, onde ele fora tão feliz – o leva ao encontro da esposa, rumo a um céu que não é nem o do Melodrama, nem o do cinema clássico; daí talvez o porquê de o filme ter ficado no limbo por quase cem anos, até ressurgir glorioso em Pordenone.

quarta-feira, 26 de outubro de 2016

“45 anos” (2015): a perpetuação do passado e a finitude da vida

Andrew Haigh rodou o filme mais melancólico, desesperançado – realista, portanto – a respeito daquilo que outrora chamávamos de “o inverno da vida”, e hoje recebe o rótulo eufemístico de “a melhor idade”. 
“45 anos” flagra a semana que antecede o advento das bodas do casal Kate e Geoff Mercer  os maravilhosos Charlotte Rampling e Tom Courtenay. Aos preparativos da festa, realizados pela mulher com uma praticidade britânica, soma-se um evento inusitado, cuja relevância acabará por se revelar aos poucos: a polícia alemã encontra, intacto, o corpo da antiga namorada de Geoff, enterrada havia décadas sob o gelo dos Alpes. 
À decodificação da carta, escrita num alemão já incompreensível ao velho que fora um desbravador na mocidade, segue-se o paulatino desvendamento de um passado há muito enterrado, porém, pujante como se sempre houvesse estado presente. A manutenção da integridade do corpo de Katia metaforiza a perpetuidade de sua presença na vida do homem, recordação que ganha corporeidade quando a jovem surge rediviva, devido ao súbito descongelamento da geleira que a abrigava. 
O filme é artificioso; obriga uma fruição mais cerebral que afetiva. Traça quase que palpavelmente, entre o casal, duas retas que apontam para direções diametralmente opostas: à medida que a festa das bodas – renovação simbólica dos laços matrimoniais – vai se aproximando, mais Geoff se afasta da história que construíra com Kate, mais se achega à sua história pregressa que o destino irônico novamente trazia à baila. 
O instinto guia-o até o sótão, à arqueologia do passado guardado entre os diários da vida aventureira do jovem casal e as fotografias de Katia, dispostas numa centena de slides. Katia pulsara entre aquelas linhas e fotografias, as quais adquiririam valor de incontornável presença uma vez que seu corpo ressurgira agora, passadas quase cinco décadas, intacto às vicissitudes do tempo. 
Haigh conduz a dupla de atores com um distanciamento prescrutador que faz toda a diferença à trama. É partidário dos silêncios, dos travellings às paisagens invernais – que se transformam em personagens, ao mesmo tempo em que revelam as psicologias do casal protagonista, dos fora de campo – as tomadas do vazio, as personagens mal-enquadradas –, que deixam o espectador à deriva. 
Não o fizesse, correria o risco de transformar sua obra num meloso drama familiar, repleto de discursos e, enfim, de lágrimas catárticas que têm a pretensão de solucionar o insolucionável. “45 anos” é um respiro em meio ao amontoado de tramas tolas a tematizarem o envelhecimento, que aparam as suas arestas, enquadrando os casais da terceira idade no rol dos pombinhos das comédias românticas, como sem nem corpo, nem espírito os separasse. 
Andrew Haigh dá ao tema o enquadramento trágico que ele merece. A finitude é o seu tema. A decrepitude do corpo e da mente surge como forma e fundo, no filme: o andar vacilante de Geoff, a falência sexual, os vazios, a introspecção, a meia-luz, e, enfim, a volta mental ao passado, e ao mundo de caminhos que ele abria. E o catalizador deste retorno ao passado é, sub-repticiamente, o cinema: o corpo congelado de Katia, infenso ao galgar dos anos, é metáfora da mumificação do passado, tornada possível pelo daguerreótipo, pela fotografia e, enfim, pelo cinema – onde o passado torna-se, segundo Bazin, “múmia em mutação”. O retorno empírico do corpo da mulher amada – e do filho nunca nascido de ambos, que ela esperava – supera, claro, o caráter indicial da imagem cinematográfica de que fala o teórico francês, mas acena para ele. 
A história da recepção das imagens oriundas de dispositivos tecnológicos está coalhada de registros ora deleitantes, ora assustadores, desse passado em conserva. Numa crônica ainda dos tempos do kinetoscópio, 1894, Olavo Bilac chamaria Edison sardonicamente de “Jack – o estripador – da fantasia”: “E imagina que horror: o gesto amoroso repetido ao infinito, durante uma, durante cem horas, cem semanas, cem anos!”. 
Duas décadas e meia mais tarde, Mário de Alencar seria mais doce, não sem deixar de registrar tudo o que de terror há nesta exegese. O conto é Coração de Velho, uma obra-prima que, escrita em 1920, recupera o pensamento cientificista do XIX: morta a esposa doente e casmurra, o velho Salles – a quem o passamento da consorte fora um alívio – tromba com um daguerreótipo da mulher quando ainda era uma jovem noiva. Tal e qual Geoff, vê o passado irromper em trambolhão: 
Em torno dele tinha-se desvanecido a atualidade. Não via os filhos, parecia não ter a consciência da sua própria condição presente. O espírito remontava um passado de quarenta anos, e recapitulava os meses, e os dias, e impressões, e imagens apagadas, desfeitas no decurso do tempo. As que tinham prevalecido, nos anos recentes, apagavam-se agora; moléstias, vexames, incompatibilidade de gostos, irritações, a mesma figura da enferma, nada lhe ficava mais na retina e na lembrança, preocupadas totalmente por aquele daguerreótipo em que os seus olhos pareciam espelhar-se e configurar a vida. Achou assim e recompôs a sua verdadeira realidade, da qual os últimos anos, como um parêntesis importuno, eram de súbito riscados. 
O desfecho de Salles prenuncia o de Geoff – deixado em aberto pelo filme, porém anunciado, naquela soberba sequência final do salão de festas que, embora repleto e festivo, nem por isso deixa de patentear vaziez e solidão: termina imerso em passado, escrevendo poesias à jovem do daguerreótipo – vivíssima em espírito, embora desaparecida em corpo. Uma vida puramente imaginativa. 
Como Geoff, cujos últimos 45 anos foram erigidos obedecendo a uma linha de continuidade com a história que lhe fora usurpada, a esposa presente ocupando o lugar de substituta da falecida. No plano final da Kate de Charlotte Rampling, que ao som de Smoke gets in your eyes percebe que fora obnubilada durante toda a vida, emerge uma aridez que, apesar de pertencer à personagem, igualmente aponta para uma questão universal: o envelhecimento – e todas as escolhas referentes ao nosso passado com as quais temos de arcar – e, enfim, a finitude, ponto de chegada incontornável da vida, malgrado tentemos voltar-lhe as costas.
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Os interessados no conto de Mário de Alencar podem lê-lo por aqui.

quinta-feira, 1 de setembro de 2016

“Aquarius” (2016): a persistência da memória

O novo longa de Kleber Mendonça Filho jamais poderá ser dissociado do nosso atual momento histórico. Estreou em Cannes em maio, quando nossa presidenta era recém-afastada para dar-se início ao processo de impeachment, ecoando ali porque, para além de sua qualidade empírica, ele protagonizou uma campanha que deu visibilidade externa ao atribulado contexto político nacional. E pré-estreou em São Paulo durante os estertores do tal processo de afastamento, entre o Espaço Cinearte do Conjunto Nacional e o Cinesesc da Rua Augusta, a dois passos da Avenida Paulista – palco onde se desenrolava, concomitantemente, uma severa repressão policial. Sem trazer a política para primeiro plano, Aquarius nasce clássico por simbolicamente enunciá-la, a partir de uma das protagonistas femininas mais bem roteirizadas e desempenhadas na cinematografia dos últimos tempos – pela nossa bravíssima Sonia Braga. 
Braga é Clara, mulher madura que passa os dias entre vinis – era jornalista especializada em música –, no apartamento aos pés da praia de Boa Viagem, no Recife, cenário que se lhe abre da janela da sala como cartão postal. A relação de consubstancialidade que ela estabelece com o seu meio é tecida logo de saída na trama, numa brilhante reconstrução de época que, ao evocar uma festa de família ocorrida na aurora dos anos 80, tece os liames entre o passado e o presente, prenunciando, na resiliência da Clara de outrora, a envergadura moral da Clara de hoje. Os antepassados mortos estão todos ali, dentro daquelas paredes que os acolheu entre a fortuna e os reveses. O passado evocado explicitamente como flashback mistura-se àquele que irrompe inesperado: quer emergindo dos recônditos da memória até se impor incontornável no presente, calando-o; quer saltando das amareladas fotos de família para dentro dos pesadelos. 
O presente é o espaço da tensão. São tempos de especulação imobiliária – de apagamento do passado em prol de uma “novidade” que é, como sempre, anunciada com espalhafato, como se o novo apenas trouxesse benesses. Clara vê-se coagida a vender o apartamento pela construtora que comprara todas as demais unidades do prédio, visando destruí-las para subir ali um edifício moderno. Trata-se tão somente de um apartamento, que valeria ouro se capitalizado – diz a filha à Clara. Porém, muito pelo contrário; toda a primeira parte da trama estabelece a memória afetiva circunscrita dentro daquelas paredes, dando verossimilhança ao esforço da protagonista de se manter senhora do local. 
Eu não quero estragar a graça do público, entregando detalhes de um enredo que, flertando com o thriller, depende em razoável medida do segredo para construir a surpresa junto ao espectador. Cumpre-me, no entanto, assinalar a maestria com que a câmera de Kleber Mendonça Filho constrói a narrativa, agarrando o público pelo pulso e (des)encaminhando-o por seus meandros, ao seu bel-prazer. É raro vermos, na cinematografia atual, tal domínio no enfrentamento de um gênero codificado como o suspense - que lhe propõe novos caminhos, aderindo-se a ele, sem, no entanto, deixar de exacerbar um estranhamento; característica cara ao diretor, como se vê no igualmente ótimo O Som ao Redor (2013). Ao ser assim torcido, um dos mais caros gêneros do cinema clássico ganha em potência crítica. 
Na obra de Kleber Mendonça Filho, o suspense emerge do fundo de desconfiança que os homens têm naqueles que lhe são estranhos (sobretudo se esses “outros” pertencem a uma classe desfavorecida economicamente), resquício de nossa herança colonial, que construiu uma pátina de cordialidade a encobrir históricos e intransponíveis abismos sociais – os quais hoje, findo o circo político-midiático, aparecem, como nunca, sublinhados. A conclusão daí oriunda extrapola as dicotomias, assinalando, de modo complexo, o que de suave e de vil há nos homens, sejam eles pobres ou ricos. 
A narrativa cola o seu ponto de vista ao de Clara, protagonista incontornável da trama. Sonia Braga deve agradecer aos deuses pela sorte que a bafejou com uma personagem tão consistente, repleta, ademais, de tanta dignidade e luz – personagem que ela encarna com uma matreira sem-cerimônia, como se com ela brincasse. Acariciada por uma câmera amorosa, que a conduz melodicamente pela trama, Braga emana poesia. Aliás, para além do ritmo da montagem, Aquarius faz um uso tremendamente sagaz da música, que comparece na trama como forma e conteúdo. 
A música que é ofício da protagonista alimenta igualmente não só sua alma, como a alma do cinema, arte à qual ela se associa desde muito cedo, ajudando-lhe a construir seus sentidos. Das canções do filme, basta que citemos o leitmotiv da personagem, a belíssima Hoje, de Taiguara, retrato de uma trama na qual o passado deixa marcas indeléveis – amargas ou doces – no presente: “Hoje/ Trago em meu corpo as marcas do meu tempo/ Meu desespero, a vida num momento/ A fossa, a fome, a flor, o fim do mundo...”. Estreando hoje, data simbólica, a relevância que Aquarius atribui à memória acaba por coser a história de Clara à História do país...

domingo, 31 de julho de 2016

Mãe só há uma (2016)

Há filmes que vão nos ganhando aos poucos. “Mãe só há uma” (Anna Muylaert, 2016) é um exemplo. A história tem traços do caso policial que veio à baila anos atrás, da mulher que sequestrou um bebê e criou-o como filho até ser descoberta pelas autoridades, década e meia mais tarde. Do caso a que a imprensa deu foros de novelão das oito, lembro-me de um detalhe: do menino de semblante plácido que pedira, por favor, para voltar a viver com a sua sequestradora, a única mãe que ele jamais conhecera. 
O sequestro serve a Anna Muylaert como pano de fundo, ao qual sobrepõem-se as subjetividades das personagens e as relações interpessoais – apreendidas por meio de uma câmera que multiplica os pontos de vista. O motor da trama é a personagem de Pierre (Naomi Nero), colhido pela tragédia naquele momento sensível da vida, que é o de formação da personalidade. 
Vemo-lo nas festas, a experimentar relações amorosas com ambos os sexos. Na escola. No ensaio da banda de rock. Diante do espelho do banheiro, testando, a portas fechadas, a sua sexualidade. Ou seguido furtivamente por um veículo enquanto ele desembesta, de bicicleta, pelas ruas do bairro. O contorno surpreendentemente detetivesco que a história recebe logo se justifica: obrigado judicialmente ao teste de DNA, Pierre descobrirá o crime que concerne à mãe. 
Se a câmera de Muylaert estranhará ao espectador de “Que horas ela volta?” (2015), sugiro que ele firme as vistas. As tomadas da casa a partir do exterior, tendo a voz off das personagens em surdina, ou a urgência da câmera na mão, a perseguir a mãe que se vê descoberta e precisa dar as últimas recomendações à cuidadora das crianças, antes de ser levada presa, servem para a pontuação de uma tensão que chega aí ao seu limite. 
A câmera é, aí, um sucedâneo do olhar de Pierre à vida. Cria-se, então, uma conivência incontornável entre o menino e o público. Os mimos que os pais verdadeiros, ricos, lhe dão, não compensam a unidade familiar destroçada – apreendida com poesia pela diretora, nas tomadas da casa agora vazia da família que ele aprendera a reconhecer como sua. Algumas sequências explicitam eximiamente a ambivalência, a exemplo daquela em que Pierre – agora Felipe, malgrado o seu desejo – recebe, numa rigidez respeitosa, os afagos da numerosa e efusiva família que o festeja. 
No entanto, o olhar de Muylaert é polissêmico como a vida. Ao ponto de vista do menino se somará mais tarde aquele da família biológica, sobretudo a dos pais e do irmão. Colocam-se em primeiro plano os anseios destes, especialmente dos pais (ótimos Matheus Nachtergaele e Dani Nefussy). Do mais superficial – de inserir o menino a fórceps na casta privilegiada à qual pertencem, obrigando-o a assumir o papel de macho-alfa –, até o anseio profundo de se verem finalmente aceitos. 
Não se economiza nas tintas do drama emocional, que chega ao paroxismo na sequência catártica do jogo do boliche, mas se deslinda com mais suavidade no nascente companheirismo entre os irmãos – construído à custa do esforço do mais novo de pôr de lado preconceitos inerentes ao seu grupo de amigos; metáfora da construção paulatina da personalidade. 
A câmera coloca-se a serviço das subjetividades várias, por vezes se demorando nos planos. Por meio deste expediente, ações aparentemente prosaicas vão se somando num crescendo até culminarem num emocionante desfecho agridoce. 
“Mãe só há uma” é um filme imperdível. Longe de ser popular como “Que horas ela volta?” consegue, pelas escolhas estilísticas da diretora, atingir uma carga de humanidade ainda superior – talvez porque se encerra abrindo-se às tensões da vida, para as quais não há respostas prontas ou conclusões fechadas.

quarta-feira, 13 de julho de 2016

“Julieta” (2016): tratado sobre incomunicabilidade nas relações contemporâneas?

Almodóvar fez um filme que me aprouve pouco, e sobre o qual possivelmente eu não falaria, não fosse a minha companheira de cinema – Imara Reis – ter me provocado, por horas a fio, a desvelá-lo. Dedico a ela esta resenha, já que muitas das conclusões aqui explicitadas são obras suas. 
Julieta é uma estranha no ninho almodovariano. Almodóvar opta, aqui, por reler o gênero melodramático pela chave da metalinguagem. Produz uma obra cuja frieza passa a léguas de distância de Fale com ela (2002) ou Volver (2011), repletas de uma calidez que, se se deve nalguma medida à cor local – às touradas, aos sóis de Sevilha, aos ventos propícios de La Mancha; a convidarem ao mistério, mas também ao cio, à procriação –, deve-se, sobretudo, a algo que vou chamar, na falta de palavra melhor, de um “calor espiritual”. 
Fale com ela (2002)
Almodóvar depõe a pena de analista passional das relações humanas, tomando uma desusada distância de seus sujeitos. 
Há em Julieta cortes secos pouco afeitos ao realismo pedido pelo melodrama; primeiríssimos planos a inquirirem apressados as personagens, cujas feições demonstram uma mal à l’aise que, no final das contas, é a característica dominante da obra toda. Não é o caso aqui de se perguntar se este pouco à vontade é o efeito intentado pelo filme ou se é fruto da inabilidade do diretor no tratamento do tema. Levemos Almodóvar a sério. 
Dir-se-á que Almodóvar toma como objeto de questionamento, em Julieta, o justo melodrama do qual ele se serviu largamente para erigir o seu cinema. Sua protagonista caminha todo o tempo por um terreno movediço incompatível ao gênero de cores fortes, bem delimitadas. 
Principiamos a conhecer Julieta no apartamento da faceta modernosa de Madri, preparando-se para a viagem que a afastaria incontornavelmente da Espanha. A ponta de indecisão que mal se insinua no encontro com seu companheiro emergirá, todavia, de forma aguda, quando ela revê a melhor amiga da filha, e descobre que as jovens recentemente se tinham encontrado. 
A obra está repleta dessas coincidências, que são característica fundamental do Melodrama. No entanto, Almodóvar apaga qualquer dimensão metafísica de “Destino” historicamente atrelada a este gênero. Fundamentais para a carpintaria da trama, por deflagrarem a ação, os encontros ganham, todavia, uma dimensão de fortuidade que pode ser lida, numa análise interessada desta obra, como metáforas da gratuidade da vivência no mundo contemporâneo, mais especificamente, do esfacelamento das relações humanas, enfim, da incomunicabilidade – traço dominante nas atuais relações interpessoais. 
Volver (2011)
Julieta teve uma filha – descobrirá o espectador enquanto ela redige à agora mulher feita em que a menina se transformara, uma carta cuja dimensão de testemunho vai se revelando aos poucos. Reconta sua história desde os instantes que antecedem à concepção da filha – até então não mencionada –, como se sua vida só então principiasse a ter sentido. A mãe não tinha notícias da filha havia uma década. A carta que jamais poderia ser enviada testemunha o trauma da ruptura inesperada de ambas. 
O filme constrói-se desses fragmentos de memórias marcados pela ausência de fidelidade a uma dimensão “realista”, pela mistura de afetos. Estranhezas do enredo – a demasiada juventude impregnada no rosto da menina que lidara com tanta maturidade com a perda do pai; ou, em contrapartida, seu rápido envelhecimento, não muitos anos mais tarde – podem se justificar pela subjetividade daquela a partir da qual as memórias visuais se constroem: a perturbada Julieta, tão distante da filha em corpo quanto desde sempre estivera em espírito. 
A verossimilhança tantas vezes (aparentemente) fraturada – o olhar de alternado desdém e amor da velha empregada, por exemplo – explica-se pelo caráter errático das memórias. Campanella fez isso com graça em O Segredo dos seus Olhos (2009), ao entremear a dolorosa despedida dos apaixonados na estação de trem de Buenos Aires, intencionalmente melodramática, e a escritura do arremedo de trama novelesca, por parte de um protagonista ao mesmo tempo passional e autocrítico. 
Mas estruturalmente ambos os filmes diferem-se bastante. Almodóvar não objetiva coser todos os fios; não visa à trama policialesca, cuja intriga culmina na resolução do conflito. Em Julieta, o melodrama comparece numa dimensão crítica mesmo no desenlace, que posterga o encontro entre mãe e filha – tableau que historicamente fecha o gênero – para depois do fade out; para além das vistas do espectador, portanto. 
O amante minguante, filme-dentro-do-filme em Fale com ela
Tal parcimônia coloca toda a obra do diretor em perspectiva. A cinefilia de Almodóvar, que nunca se negou a percorrer as zonas de penumbra – prova disso é a perturbadora sequência silenciosa de Fale com ela em que o apaixonado, minúsculo, penetra a mulher gigante (metáfora do close e da imersão do espectador no espetáculo cinematográfico?) –, inclina-se aqui a Jean-Luc Godard e a Ingmar Bergman, cineastas que questionam o enquadramento mainstream, e colocam os filmes a serviço da discussão de relações interpessoais que muito os extravazam, por irresolúveis. 
Se Almodóvar não chega aqui às alturas de Bergman, aponta, no entanto, para uma direção original, ao diluir em melancolia o colorido espanhol – característica forte de sua obra. A nossa sensação de desconforto toca um tanto nas imperfeições do exercício, mas muito, também, na percepção de que a incomunicabilidade que ele faz emergir em sua obra também nos circunda e nos afoga.