O Theatro Municipal do Rio de Janeiro comemorou, na segunda-feira, 14 de julho, seus 116 anos de existência. Para mim o estabelecimento tem um papel simbólico. Estudei-o – e a sua programação, e os esforços incansáveis de indivíduos como Arthur Azevedo para a sua construção – desde os idos de 2003, no início da minha vida acadêmica. Num 14 de julho, mais de vinte anos atrás, assisti ali ao primeiro espetáculo operístico que vi na vida – quando literalmente fui arrebatada porta adentro por uma funcionária da casa, responsável por fazer os pedestres tomarem conhecimento da efeméride. Por isso, minha viagem à cidade para assistir a “Os Pescadores de Pérolas”, cuja pré-estreia encerraria com fecho de ouro os festejos em comemoração do aniversário do Theatro Municipal, foi regada a nostalgia.
A divulgação do programa e o engajamento da casa para angariar a presença do público (e dele para prestigiá-la) lembrou-me o que vi naquele ano de 2004. Concerto, ballet e ópera no hall de entrada do teatro, apresentados durante todo o dia, foram alguns dos espetáculos que mantiveram o Municipal movimentado desde às 9h. Às 19h, um teatro lotado acompanhou gestos públicos simbólicos, como a assinatura do contrato de patrocínio da Petrobrás com a casa, que garantirá o seu funcionamento pelos próximos anos, e, enfim, a ópera de Georges Bizet.
Bizet vence o Prix de Rome ainda jovem (em 1857; ele nasceu em 1838), o que lhe permite estudar na Itália, com respaldo financeiro, ao longo de 5 anos. Ao retornar, conta-nos Sérgio Casoy, no ótimo artigo em que discorre sobre a ópera, o compositor recebe patrocínio do Théâtre Lyrique de Paris para compor uma obra a ser encenada na casa. Ele, que havia composto esparsas obras do gênero para cumprir a burocracia de sua bolsa de estudos, dedica-se à composição daquela que seria a sua primeira ópera encenada. Casoy dá-nos detalhes saborosos sobre o descrédito em que os libretistas Eugène Cormon e Michel Carré tinham o jovem compositor, levando-se em consideração as parcas qualidades do roteiro que lhe ofereceram. Efetivamente, a perenidade de “Les pêcheurs de perles” (1863) não é oriunda do libreto, que se apoia, como o grosso das óperas do período, no melodrama, desta vez com corte orientalizante, a exemplo de outras obras do gênero (como “Samson et Dalila”, de Saint-Säens, e “L’Africaine”, de Meyerbeer, destacados Casoy), ou da literatura, como o romance Salammbô, de Gustave Flaubert, escrito um ano antes de “Os Pescadores...”. A produção artística da época oferece-nos inúmeros exemplos dos mais variados gêneros, deslocados geograficamente (e muitas vezes temporalmente) entre o Oriente e a África, cujos usos e costumes são em boa parte inventados, bem como as sonoridades; tudo isso para saciar o apetite do público pelo exótico, que perdura enquanto tais territórios são vítimas do imperialismo ocidental.
“Les pêcheurs de perles” passa-se num Ceilão (atual ilha do Sri-Lanka) imemorial, no qual as orações de uma virgem sacerdotisa de Brahma são responsáveis por garantir a integridade física dos pescadores, no ofício árduo que desempenhavam. Antes, todavia, de sua chegada à ilha, o drama de amor já se anuncia. Zurga (Vinícius Atique), o líder dos pescadores, e Nadir (Carlos Ullán), um velho amigo seu, que ressurge na ilha, cantam em uníssono sobre o amor que passam a nutrir por uma mulher misteriosa a qual, de certa feita, se desvela para ambos. O dueto, um dos pontos altos da ópera, explicita que o encontro é um ponto de virada na parceria da dupla. Embora ambos jurem amizade eterna, aquela mulher misteriosa os havia irremediavelmente separado. Seguindo à risca os cânones do melodrama – que, à guisa do “destino” trágico, procura colocar sob um mesmo teto todos os elementos de tensão –, Leila (Ludmilla Bauerfeldt), a sacerdotisa/a mulher amada pelos amigos, chega à tribo conduzida pelo ancião do local. Também é o expediente melodramático que constrói o reconhecimento do casal apaixonado Leila e Nadir, bem como o descalabro da tribo – como soe a esse gênero misógino, a entrega amorosa da jovem gera primeiro a tempestade que irrompe furiosamente e, enfim, leva Zurga a atear fogo à tribo, para permitir que o par romântico fuja, mesmo que ele, Zurga, acabe morto em holocausto.
Não é da trama calcada historicamente no terreno do preconceito contra a mulher e da exploração imperialista que tiraremos algum valor estético, mas sim da música. Bizet une secura e lirismo, como se se colocasse ao lado do triângulo amoroso, atravessado pelo amor (seja a amizade, seja o afeto romântico) em meio a um ambiente inóspito. Não por acaso, os acordes do dueto de Nadir e Zurga “Au fond du temple saint” atravessam a ópera, funcionando como leitmotif da dupla e de Leila, do momento em que Zurga declara amizade eterna a Nadir, ao momento em que ele abre mão da mulher que ama, para que ela parta com o amigo. A encenação carioca de “Os Pescadores de Pérolas” foi um acerto. Sua concepção e direção cênica couberam a Julianna Santos, e suponho que seja o seu melhor trabalho a que eu já tive a oportunidade de assistir pessoalmente (espetáculo fetiche meu encenado por ela é “Alma”, de 2019, que vi apenas em vídeo, e que julgo excepcional). Em “Os Pescadores...”, ela realiza um trabalho bastante competente de direção cênica de cantores/atores. Ademais, em parceria com Desirée Bastos (cenografia e figurinos) e Angélica de Carvalho (desenho de vídeo), constrói uma encenação em que os cenários, figurinos e projeções estão a serviço da contação da história – algo capital, e nem sempre visto na cena contemporânea.
De acordo com o libreto, o primeiro ato de “Os Pescadores de Pérolas” se passa numa praia selvagem, em meio às cabanas dos pescadores; o segundo, nas ruínas de um templo hindu, que tem um terraço com vista para o mar; e, enfim, o terceiro, numa tenda hindu fechada com cortina. Na montagem carioca, um mesmo – belíssimo – cenário atravessa os três atos da obra. Um gasto barco está ancorado à direita, ao lado de um píer. No proscênio à direita há um conjunto de pedras. Projeções no chão do palco imitam as ondas que quebram na embarcação e no píer, antevendo os perigos que enfrentam os pescadores (metáfora, também, dos dramas internos que o trio protagonista sofre). E no telão ao fundo, ao longo de todo o espetáculo, projetam-se imagens entre realistas e abstratas: de pérolas e dos pés de uma mulher que caminha pela praia, e das velas de um barco que se metamorfoseiam nos véus que encobrem o rosto de Leila – ambos a conduzirem os personagens dos amigos ao longo da trama. Em parte do terceiro ato desta montagem, uma cabana construída por um tecido que lembra a vela cobre parcialmente a embarcação, denotando que é o elemento aquático que a atravessa.
No que diz respeito ao figurino, Bastos opta por cores neutras e esmaecidas para confeccionar os trajes, véus e turbantes dos habitantes do Ceilão. Destacada do conjunto está Leila, cujo vestido esvoaçante branco é coberto por gazes rosadas que se desfolham quando ela descobre o amor, e se conspurcam quando ela se vê imersa no ódio da tribo. No que toca à iluminação de Paulo Ornellas, se ela não foi inventiva, foi correta – não deixou na penumbra nenhum artista que precisasse ser visto. Ademais, a Bruno Fernandes e Mateus Dutra coube a acertada coreografia do espetáculo, que, deu cor local de forma convincente ao Ceilão inventado por Bizet, Cormon e Carré – mormente as danças estilizadas realizadas pela tribo, atravessadas por um aroma indiano.
A obra teve a direção musical e a regência a cargo de Luiz Fernando Malheiro, que conduziu com elegância a Orquestra do TMRJ, cuidando para que os cantores não fossem jamais encobertos. O coro do teatro, representando os membros da tribo, no geral apresentou boa performance (sobretudo o feminino), evoluindo ao correr do espetáculo. Além da récita do dia 14, assisti à estreia, no dia 16, e em ambos os momentos houve algum desencontro no início, devido, talvez, ao movimentado jogo de cena que coube ao coro executar. Todavia, a sua intervenção foi bastante satisfatória, por exemplo, no momento em que recepciona Leila (“C'est elle, c'est elle... Sois la bienvenue”) e nos estertores da obra (“Dès que le soleil”), quando preparam a fogueira em que arderiam Leila e Nadir.
No que concerne ao quarteto solista, cumpre a princípio destacar a sua boa dicção do idioma francês. O baixo Murillo Neves desempenhou com consistência vocal e desempenho cênico bastante convincente o papel do ancião Nourabad, que conduz a jovem Leila à tribo. Já o tenor Carlos Ullán saiu-se melhor do ponto de vista cênico que do vocal – aliás, do ponto de vista teatral, é preciso que se ressalte o trabalho cuidadoso desempenhado por Julianna Santos, no que diz respeito a todo o elenco. Com a ajuda de seu físico mignon, bem talhado aos personagens românticos estereotípicos, Ullán construiu um Nadir eletrizante e apaixonado. Talvez devido às suas qualidades como ator, o tenor tenha se saído vocalmente melhor nos duetos com Vinícius Atique e Ludmilla Bauerfeldt que na notória ária “À cette voix... Je crois entendre encore”, com a qual teve dificuldade, malgrado a cantasse do proscênio.
O barítono Vinícius Atique construiu um Zurga vocal e cenicamente sólido. Foi duro e pragmático, como cabe ao seu papel de líder da tribo, entregando-se, todavia, a afetos como o ódio ou o amor – e exemplo disso é “L'orage s'est calmé... O Nadir, tendre ami de mon jeune âge”, que ele entoa solitário logo depois de descobrir que Nadir e Leila se amam, e de selar o destino de ambos – ária que ele tinge de nostalgia. Aliás, a continuidade desta cena é um dos momentos mais memoráveis do espetáculo: Leila chega e tenta conquistar o perdão de Zurga (“Qu'ai-je vu? O ciel, quel trouble... Je frémis”), descobrindo, enfim, que ele pune o casal porque a ama (“Je suis jaloux”). O ótimo resultado desta cena é a prova cabal de que a chave para um espetáculo operístico convincente é a escalação acertada dos cantores e uma boa direção cênica.
À soprano Ludmilla Bauerfeldt coube o exigente (vocal e cenicamente) papel de Leila, mulher/santa que é objeto, por parte dos amigos e da tribo, de um amor e de uma reverência de amplo espectro (do âmbito religioso ao desejo e, enfim, ao sentimento romântico), sentimento historicamente atrelado às mulheres, conforme Georges Duby tão bem demonstrou em Eva e os Padres. O temor das mulheres da Idade Média, sobre as quais o intelectual francês fala, segue vivo no século XIX, berço desta ópera e do gênero melodramático, o qual encampa este mesmo ideário. Todavia, esta personagem, que é tecida para ser a responsável pela separação dos amigos e destruição da tribo que ela deveria salvar, ganha da soprano uma construção tão filigranada que recupera toda a sua dimensão humana.
O timbre lírico de Bauerfeldt encaixou-se perfeitamente a esse papel refinado, que exige sofisticação técnica. A artista encampou a dimensão mística de Leila, ao adentrar a cena e jurar que defenderia a tribo, malgrado as ameaças que de saída escuta. Porém, desceu a sua personagem do pedestal ao entoar, com doçura extrema, “Me voilà seule dans la nuit... Comme autrefois”, arrepiada por se sentir atravessada pelo seu destino, já que pressentia ali o homem que amava – e ela o faz à beira do píer, enquanto a maré emula o movimento interno da personagem que ela desempenha. Ludmilla tornou Leila uma mulher muito terrena, passional e irada, ao se entregar ao amor ou ao confrontar Zurga, na cena que já mencionei acima, na qual ela maldiz o ciúme do rapaz com um agudo tão lancinante que ele ainda ressoa dentro de mim. E, enfim, foi dilacerante ao pedir que o amuleto que trazia no pescoço fosse entregue à sua mãe, depois que ela morresse – amuleto que leva Zurga a reconhecer, na mulher que ama, a criança que de certa feita o escondera, o que o leva a salvá-la.
Em sua performance, Ludmilla Bauerfeldt recupera num só tempo, vocal e cenicamente, a dimensão humana e divina de nós, mulheres, que séculos de preconceito tentaram em vão soterrar. Seu trabalho notável merece ser conferido, bem como essa bem-sucedida encenação de “Os Pescadores de Pérolas”, merecido presente que o público brasileiro ganha com o aniversário deste teatro para cuja construção e manutenção tantas mulheres e homens lutaram e ainda lutam.
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Imagens: Divulgação/Daniel Ebendinger; Instagram do TMRJ e dos artistas.
2 comentários:
Excelente resenha, objetiva e articulada. Agradeço à autora a menção à minha crônica sobre esta ópera.
Querido Sérgio Casoy, muito obrigada pelas palavras tão delicadas e pelo ótimo e elucidativo artigo que você escreveu sobre "Os Pescadores de Pérolas"!
Um beijo.
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