terça-feira, 18 de junho de 2013

Machado de Assis, cineasta “avant la lettre” (?)


Machado morreu quando o cinema havia acabado de engrenar no Brasil, em 1908. Poderíamos dizer que isso o impediu de tratar do assunto nos textos cronísticos que publicou até então em jornais, não tivesse Arthur Azevedo, morto também nesse ano (em 22/10)*, se estendido em considerações sobre o assunto desde fins de 1890. O certo é que o célebre literato, presidente da Academia Brasileira de Letras desde sua fundação, pouco se interessava pelo aparato mecânico que divertia as mais diversas classes sociais. 
Daí a parecer estranho o corte cinematográfico que ele enceta nalgumas de suas produções anteriores ao surgimento do cinema. 
Machado de Assis
Pensei em escrever a respeito depois de o capítulo do delírio de Brás Cubas ressoar em minha mente durante a leitura de um corpus de crítica cinematográfica produzida nos primeiros tempos da arte. Escolhi o título provocador que anuncia essas linhas, mal esperando encontrar na web um artigo ainda mais enfático sobre o tema (“Machado de Assis, inventor do cinema”, de Pascoal Farinaccio). Aparentemente não há mais nada de novo sob o sol, mesmo... 
Uma vista d’olhos neste texto mostra, no entanto, que seu autor dedica-se a pensar sobretudo a metalinguagem (especialmente das Memórias Póstumas de Brás Cubas, saído em livro em 1881, no ano seguinte à sua publicação em folhetim), atrelando-a ao cinema da opacidade (ou seja, ao cinema que discute sobre o fazer fílmico no transcurso da obra). 
Autógrafo de Machado ao exemplar
do livro oferecido à Biblioteca Nacional
Brás Cubas fica toda a obra dando piscadelas ao leitor sobre seu modo de escrever. Ele questiona-se sobre o absurdo de seu papel de escritor d’além túmulo (capítulo “Óbito do autor”), antecipa a opinião do público (“Ao leitor”), chama a atenção para o modo como resolve certa passagem complicada do texto (“Transição”)... A amarração gera uma narrativa cheia de (intencionais) arestas; a forma e o conteúdo concorrendo para o tom cáustico do conjunto. 
Minha preocupação é menos englobante. Concentro-me no capítulo “O delírio”, no qual, como se sabe, o narrador moribundo, depois de se transformar num conjunto heterodoxo de coisas e objetos, vai dar no pico da montanha, de onde observa o acotovelar-se de todas as eras passadas e futuras; o combate universal sem trégua e vão. Um capítulo que o feérico Méliès faria mais a contento do que o fez André Klotzel na mais conhecida versão cinematográfica do romance (de 2001), creio eu. 
Afinal, o que há mais Méliès que a metamorfose sofrida pelo protagonista delirante? 
Primeiramente, tomei a figura de um barbeiro chinês, bojudo, destro, escanhoando um mandarim, que me pagava o trabalho com beliscões e confeitos: caprichos de mandarim. 

Logo depois, senti-me transformado na Suma Teologica de São Tomás, impressa num volume, e encadernada em marroquim, com fechos de prata e estampas; ideia esta que me deu ao corpo a mais completa imobilidade. 
Fotograma de filme de Méliès
Cabeças a saltarem para folhas de música, bondes a transformarem-se em carroças, objetos a ganharem vida marcaram a obra produzida pelo cineasta francês entre as décadas de 1890 e 1910. 
A corrida leva Brás Cubas, no lombo de um hipopótamo, ao mais inóspito dos ambientes: “nada vi, além da imensa brancura da neve, que desta vez invadira o próprio céu, até ali azul.” Aqui e ali, plantas disformes balançavam ao vento no vazio, quando de repente, imensa, surge no quadro Pandora: 
um vulto imenso, uma figura de mulher me apareceu então, fitando-me uns olhos rutilantes como o sol. Tudo nessa figura tinha a vastidão das formas selváticas, e tudo escapava à compreensão do olhar humano, porque os contornos perdiam-se no ambiente, e o que parecia espesso era muita vez diáfano. 
O sarcasmo que perpassa o texto do narrador, coalhado de digressões de cunho crítico/jocoso às pessoas de sua convivência, faz-me aproximar a quase onipresente Pandora do perigosíssimo monstro criado por Méliès para a fita “À la conquête du pôle” (1912). O vídeo todo está online no Youtube, mas me interessa especialmente a parte abaixo, filmada na exposição sobre o cineasta que esteve no MIS no ano passado: 
  

A influência é mais do espírito da época que direta. Méliès foi mágico e dono de teatro antes de se tornar cineasta. Machado de Assis acompanhou de perto o teatro de seu tempo, em que as mágicas tanto sucesso faziam entre o público. Foi igualmente dramaturgo e censor teatral antes de escrever Memórias Póstumas. O tom surreal de sua narrativa do delírio bebeu, portanto, de fontes semelhantes àquelas que influenciaram Méliès na virada do XIX e começo do XX. As mutações das mágicas teatrais ganham melhor acabamento no romance e no cinema que no palco. 
Arthur Azevedo e a atriz Pepa Ruiz; ele, grande teatrólogo, ela, a mais conhecida atriz de mágicas do Rio de Janeiro do fim do séc. XIX e começo do XX
Mas o maior prenúncio do cinema apresenta-se, neste capítulo de Memórias Póstumas, na ubiquidade da cena da passagem das eras, vista por Brás Cubas do alto da montanha. 
O trecho é grande e duvido (ceticismo machadiano) que muitos o leiam até o final, então deixo antes um par de conclusões sobre o cinematógrafo proferidas pelo escritor mexicano Amado Nervo (1898) e pelo cineasta americano D. W. Griffith (1912). Nervo vê o cinema como um potente instrumento de registro da realidade. A certa altura de sua crônica, diz (faço aqui uma tradução livre a partir da versão em francês do texto): 
Oh, se nos fosse dado assim reconstruir todas as épocas; se tivéssemos podido, graças a um aparelho mágico, contemplar, como do alto de uma estrela, o imenso desfile dos séculos; assistir à formidável marcha dos mortais através dos tempos. 

Como compreenderíamos então o vasto plano do universo!** 
Griffith anos depois discorre sobre a linguagem que torna possível tal desfile dentro de uma narrativa ficcional. O cineasta sublinha a grande quantidade de informação que o cinema do momento podia pôr em cena, algo impossível ao teatro. O cinema é “um cenário no qual seis ou sete eventos se desenrolam no mesmo tempo e lugar.”***, diz ele. A possibilidade da narração paralela de duas intrigas (Griffith fala sobre “Intolerância”, de 1916) faz emergir a noção de ubiquidade do cinema. A transição entre os temas é tornada possível pela inserção de um elemento tipicamente cinematográfico, como uma flor tomada em close
Fotogramas de "Intolerância" (Intolerance, 1916) Fonte: http://otroladodelaescena.blogspot.com.br/2010/12/intolerancia-de-david-w-griffith-1916.html
Penso nesse delírio machadiano feito de fúria, temor e delícia – afinal, como se verá, o narrador-personagem diverte-se imenso observando o delírio universal, como tivesse diante de si um espetáculo – e entrevejo o brilho dos olhos de Griffith enquanto ele escrevia esse texto no qual defende o cinema como o mais satisfatório objeto artístico de seu tempo. O estado de loucura de Brás Cubas o faz vislumbrar o futuro. Relendo este capítulo de Memórias Póstumas, fica difícil compreender por que Machado de Assis desdenhou do cinema. 

Abaixo, o trecho prometido do delírio: 
Imagina tu, leitor, uma redução dos séculos, e um desfilar de todos eles, as raças todas, todas as paixões, o tumulto dos impérios, a guerra dos apetites e dos ódios, a destruição recíproca dos seres e das coisas. Tal era o espetáculo, acerbo e curioso espetáculo. A história do homem e da terra tinha assim uma intensidade que lhe não podiam dar nem a imaginação nem a ciência, porque a ciência é mais lenta e a imaginação mais vaga, enquanto que o que eu ali via era a condensação viva de todos os tempos. Para descrevê-la seria preciso fixar o relâmpago. Os séculos desfilavam num turbilhão, e, não obstante, porque os olhos do delírio são outros, eu via tudo o que passava diante de mim, — flagelos e delícias, — desde essa coisa que se chama glória até essa outra que se chama miséria, e via o amor multiplicando a miséria, e via a miséria agravando a debilidade. Aí vinham a cobiça que devora, a cólera que inflama, a inveja que baba, e a enxada e a pena, úmidas de suor, e a ambição, a fome, a vaidade, a melancolia, a riqueza, o amor, e todos agitavam o homem, como um chocalho, até destruí-lo, como um farrapo. Eram as formas várias de um mal, que ora mordia a víscera, ora mordia o pensamento, e passeava eternamente as suas vestes de arlequim, em derredor da espécie humana. A dor cedia alguma vez, mas cedia à indiferença, que era um sono sem sonhos, ou ao prazer, que era uma dor bastarda. Então o homem, flagelado e rebelde, corria diante da fatalidade das coisas, atrás de uma figura nebulosa e esquiva, feita de retalhos, um retalho de impalpável, outro de improvável, outro de invisível, cosidos todos a ponto precário, com a agulha da imaginação; e essa figura, — nada menos que a quimera da felicidade, — ou lhe fugia perpetuamente, ou deixava-se apanhar pela fralda, e o homem a cingia ao peito, e então ela ria, como um escárnio, e sumia-se, como uma ilusão.
(...) 

ver os séculos que continuavam a passar, velozes e turbulentos, as gerações que se superpunham às gerações, umas tristes, como os Hebreus do cativeiro, outras alegres, como os devassos de Cômodo, e todas elas pontuais na sepultura. Quis fugir, mas uma força misteriosa me retinha os pés; então disse comigo: — “Bem, os séculos vão passando, chegará o meu, e passará também, até o último, que me dará a decifração da eternidade.” E fixei os olhos, e continuei a ver as idades, que vinham chegando e passando, já então tranqüilo e resoluto, não sei até se alegre. Talvez alegre. Cada século trazia a sua porção de sombra e de luz, de apatia e de combate, de verdade e de erro, e o seu cortejo de sistemas, de idéias novas, de novas ilusões; em cada um deles rebentavam as verduras de uma primavera, e amareleciam depois, para remoçar mais tarde. Ao passo que a vida tinha assim uma regularidade de calendário, fazia-se a história e a civilização, e o homem, nu e desarmado, armava-se e vestia-se, construía o tugúrio e o palácio, a rude aldeia e Tebas de cem portas, criava a ciência, que perscruta, e a arte que enleva, fazia-se orador, mecânico, filósofo, corria a face do globo, descia ao ventre da terra, subia à esfera das nuvens, colaborando assim na obra misteriosa, com que entretinha a necessidade da vida e a melancolia do desamparo. Meu olhar, enfarado e distraído, viu enfim chegar o século presente, e atrás dele os futuros. Aquele vinha ágil, destro, vibrante, cheio de si, um pouco difuso, audaz, sabedor, mas ao cabo tão miserável como os primeiros, e assim passou e assim passaram os outros, com a mesma rapidez e igual monotonia. Redobrei de atenção; fitei a vista; ia enfim ver o último, — o último!; mas então já a rapidez da marcha era tal, que escapava a toda a compreensão; ao pé dela o relâmpago seria um século. Talvez por isso entraram os objetos a trocarem-se; uns cresceram, outros minguaram, outros perderam-se no ambiente; um nevoeiro cobriu tudo, — menos o hipopótamo que ali me trouxera, e que aliás começou a diminuir, a diminuir, a diminuir, até ficar do tamanho de um gato. Era efetivamente um gato. Encarei-o bem; era o meu gato Sultão, que brincava à porta da alcova, com uma bola de papel...
* Data de morte de Arthur Azevedo atualizada em 24/6/13 (cometi um lapso na edição original do texto, ao apontar que o literato morrera em 1907).
** "Le cinéma: naissance d'un art: 1895-1920", Camps Arts, Paris, 2008, p. 60.
*** Idem, p. 393.

2 comentários:

disse...

Dani, o post é nada mais, nada menos que excelente. Adoro Machado de Assis e seus escritos centenários, porém tão atuais. Muito bacana a forma cinematográfica que ele visualizava e como os trechos citados de Brás Cubas casam perfeitamente com o mundo do cinema.
Beijos!

ANTONIO NAHUD disse...

ótimo texto, dani.

O Falcão Maltês