sexta-feira, 16 de agosto de 2013

Uma anti-verdiana se encontra com Aida (Teatro Municipal de SP, 13/8)

Testemunho de uma cinéfila, até outro dia anti-verdiana, que experimenta a conversão completa depois de ter visto a montagem da Aida no Municipal de São Paulo... 

Testemunho é algo que este blog não está muito acostumado a ver, ele que padece do defeito da blogueira-acadêmica de querer ajuntar a tudo o esquema apresentação (seguida de exemplos) - análise objetiva - conclusão. 
O formato novo deriva de um assunto (quase) novo nestas paragens, a ópera. 
Pouco sei de ópera. Até pouco tempo atrás, só sabia que desgostava de Giuseppe Verdi. Resquício de minha pesquisa de mestrado... Estudei a produção teatral de alguns wagnerianos de fins do século XIX. Eles odiavam o compositor italiano, cuja música remetia a um passado monárquico que desejavam esquecer; eu comprei a briga (culpada de novo...). 
Resultado: vi à época uma porção de montagens de obras de Verdi em DVD. Ri da “Traviata” (1853) – mulher submissa à moda das sofredoras do melodrama europeu, simples brinquedo nas mãos dos homens da sociedade, a ter como única salvação possível a morte. Ri muito de “Aida” (1871), sua companheira de infortúnio – esta, coitada, escrava despossuída até mesmo de seu corpo, à qual a morte seria um privilégio. 
Em Paris para desenvolvimento de parte de minha pesquisa de Doutorado, já no fim de 2012, o baú das memórias é revirado pelas comemorações referentes ao bicentenário de Verdi (1813-1901) e Wagner (1813-1883). No cinema, o rosto da primadona Natalie Dessay enche a tela no documentário “Traviata et nous”, no momento do “É strano”, e por meses o meu cinematógrafo cerebral insiste em reproduzi-lo. Na Opéra Bastille, uma noite de festa é dedicada à obra dos dois músicos. A música de ambos espalha-se harmonicamente pela sala, e eu decido que já é hora de enterrar os velhos fantasmas e entrar no coro: Verdi é, sim, genial. 
Verdi
A Aida encenada no Municipal de São Paulo (regida por John Neschling, cenografia de Italo Grassi) só vem sublinhar o fato. Se ali pulsa o melodrama – nos sofrimentos da princesa Etíope feita escrava, impossibilitada de se unir ao amado Radamés, filho do Egito rival, prestes a se casar com a princesa egípcia Amneris – pulsa com mesmo peso a tragédia. Se algo aprendi nesses meses em que vivenciei (um tanto quanto intensamente) a ópera, é a respeito do papel que o mise-en-scène tem no resultado final. Esta Aida explora com a mesma maestria os momentos operísticos de grande espetáculo – que Verdi soube como poucos criar – e as árias e duetos de revelação íntima. 
O recuo temporal na direção de um passado milenar que só pode ressuscitar como fantasia tira do melodrama o gosto rançoso do atrelamento histórico. Ganham destaque os dilemas internos dos personagens. Aida é aqui uma meia-irmã da Antígona de Sófocles, cujo coração pende com a mesma intensidade entre dois polos: o amor ao pai (e à mãe-Pátria) e a Radamés. 
O líder do exército egípcio ganha humanidade ao resistir em deixar a pátria (e a glória recém-alcançada) por Aida. A jovem é num só tempo escrava e dona do amor do melhor dos homens. É mocinha tingida do cálculo da femme fatale, já que, por ter o coração dividido entre o amor e a obrigação filial, precisa nalgum momento trair Radamés para salvar o pai. Como a protagonista do trágico grego, presa entre duas obrigações de peso análogo, só encontra coesão na morte. 
Aida/Municipal-SP
A extinção de Aida é um recomeço. Porque ela só poderá encontrar o descanso ao lado de Radamés naquela Eternidade – pagã, e não obstante, tão cristã – onde todos os liames são dirimidos. Por isso, o sepultamento de ambos em vida ganha conotações múltiplas; sublinhadas pela encenação: a exiguidade do espaço que os prende retumba com suas juras de amor eterno, finalmente reverberadas em uníssono; a luz celestial os ilumina; enquanto que os cantos fúnebres ecoam no exterior da tumba, interrompidos pelos reclamos lancinantes da princesa Amneris. 
Amneris também é múltipla – pelo menos o foi a jovem que a cantou no dia 13, Tuija Knihtlä, em cuja voz ficaram bem marcados o amor por Radamés, a piedade – e depois o ódio – por Aida e o dilaceramento pela morte do guerreiro. Maria Josè Siri e Stuart Neill estiveram igualmente sensacionais. Impecáveis de corpo, alma e voz as duas cantoras, estrondoso o tenor (não vou estranhar se sua voz tiver sido ouvida do lado de fora do Teatro). 
Aida/Municipal-SP
Fonte: operaeballet.blogspot.com
Aida. Enquanto eu voltava para casa assoviando trechos de suas inesquecíveis árias, ia me lembrando de como aqueles escritores de fins do XIX criticavam a popularidade de seu autor, como se popularidade implicasse na diminuição de valor. A vida que pulsa de ti, jovem donzela na flor dos seus 142 anos, não cabe no libreto que li faz anos e me soou tão antigo; não cabe no quadrado da TV da sala. Precisa ser gritada em plenos pulmões, numa sala tão grande (e simbólica) quanto a do Municipal, por essas vozes que parecem brotadas do centro da terra, e que me são cada vez mais caras, a despeito de mim mesma.

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