quarta-feira, 7 de agosto de 2013

Arte e preocupação social na obra de Oswald de Andrade

Recupero abaixo uma resenha que escrevi faz um tempo sobre a coletânea de textos de Oswald de Andrade enfeixada no volume "Estética e Política". As reflexões do escritor sobre a relação entre arte (em especial o cinema) e sociedade não param de me interessar. 


Oswald de Andrade. Estética e Política, Editora Globo, São Paulo, 1991.

Esta minha primeira aproximação extensiva com os textos teóricos de Oswald de Andrade me causou alguma perplexidade. Encontrei, em Estética e Política, o escritor piadista do Primeiro caderno do aluno de poesia Oswald de Andrade; encontrei o crítico num só tempo bem humorado e agudo da peça de teatro "O Rei da Vela". Porém, não imaginava que encontraria um intelectual afeito à oratória que poderia aparentemente passar por um daqueles conferencistas Parnasianos tão criticados pelos modernistas (como Coelho Netto, por exemplo). 
Oswald de Andrade
Mas só aparentemente. Aí está, talvez, a faceta mais fascinante de Oswald de Andrade: sua eloquência situa-se na forma, não no conteúdo de seus textos. Estes artigos, conferências, discursos e ensaios denotam que, se o escritor desejava arrebatar as audiências com o colorido da frase, era para tornar suas ideias sociais e sua concepção de literatura mais palatáveis a indivíduos acostumados a ouvir discursos (numa época em que, como bem aponta Alcântara Machado, associações de toda a sorte multiplicavam-se). 
A contar por esse volume, talvez seja possível dizer que, se literatura e preocupação social são questões debatidas pelo escritor, a segunda se sobrepõe à primeira. E simbólico disso é o longo texto “O antropófago”, em que Oswald se propõe a historicizar a fundação da sociedade e a maléfica transmutação da economia do ser (que tinha por símbolo a maternidade) na economia do haver (organizada em torno do patriarcalismo). Aliás, “O antropófago” traz as noções que o escritor semeia nos artigos enfeixados em Estética e política – noções que parecem tê-lo preocupado durante toda a sua vida, considerando que os textos datam, grosso modo, das décadas de 1920 a 1950. 
A primeira que levanto é a crítica ferrenha que o escritor pespega na religião católica, para a qual uma vida terrena miserável garantia as benesses da “Vida Eterna”. Assim ele diz em “Informe sobre o Modernismo”: o cristianismo “é a doutrina da domesticação do homem cujo destino é o céu, prossegue na escravatura, na sociedade solidamente dividida em classes e na justificação do Estado, cujo primeiro modelo sacerdotal, guerreiro e legislador tinha sido dado a Moisés de dentro das nuvens do Sinai.” (103). 
"O Homem Amarelo", de Anita Malfatti 
O Oswald comunista aparece nesta crítica à religião. Podemos vê-lo numerosas vezes ao longo dos textos. Por exemplo, na conferência “Fazedores da América”, que ele profere na Faculdade de Direito de S. Paulo, na qual critica a grande propriedade e argumenta no sentido de comprovar que a distribuição de renda é fundamental para fortalecer o país. O argumento retorna em “O sentido do interior”, conferência proferida em Bauru no final dos anos 40. Neste, sua conclusão desolada toca o próximo ponto que desejo destacar. Leio-a: “Mas para que me reportar à minha obra, ao estudo dos pandemônios urbanos produzidos por uma civilização trágica e peculiar onde todos os caminhos conduzem não mais a Roma mas a Hollywood?” (194). 
A crítica ao cinema norte-americano, vinda de um literato que 20 anos antes não escondia seu fascínio pelos produtos da indústria cinematográfica daquele país, alia-se fortemente ao seu anseio por uma reforma social. Em palestra proferida no “Ciclo de Psicologia e Psiquiatria” (em 1938), apresenta o entrecho de seu Marco Zero
Xavier é espectador ávido dos melodramas apresentados no Cinema Pedro II. “Realiza-se através dos filmes – diz o escritor – , nas façanhas incríveis do mocinho, nas lutas contra o vilão, nos miraculosos salvamentos da heroína” (58). O desejo de justiça social era saciado por esses homens e mulheres através da observação das façanhas de seus ídolos das telas. Oswald percebe o mal do melodrama (gênero teatral fundado na França noutro momento de exasperação social, o início do século XIX). Especialmente o melodrama cinematográfico, que incitava uma identificação tão intensa do público com o personagem, que saciava no cinema o desejo de luta social do indivíduo. Consequentemente, fora dos limites da sala de exibição, o espectador aceitava viver uma vida de sofrimento e negação. 
No entanto, a crítica de Oswald tem mais relação a certos produtos do medium que a ele em si. A esses romances cinematográficos fantasiosos que engoliam tantos “Xavieres” sem senso crítico, o escritor contrapõe as fitas do neo-realismo italiano, as quais, ao procurarem a “vida cotidiana” e o “homem comum”, teriam conseguido atingir o símbolo (como ele aponta em “Velhos e novos livros”). 
Ladrões de Bicicletas (De Sicca, 1948)
A leitura que o escritor modernista faz de Ladrões de Bicicletas (1948) é pródiga por flagrar, num só tempo, suas preocupações literárias e sociais. A bicicleta roubada do protagonista é símbolo de tudo o que nos foi roubado e que procuramos reaver, daí a importância da película. 
Ladrões de Bicicletas
Oswald nota no filme de De Sica a mesma característica poética que há em seus escritores preferidos (e aí está o que mais o aproxima de Mário de Andrade, creio eu): a obra ultrapassa o momentâneo e atinge o universal. A bicicleta do filme adquire para cada espectador um valor específico, porque toca as cordas da sua sensibilidade. De acordo com Oswald, De Sica teria conseguido, assim como os pintores impressionistas, penetrar de tal modo na “realidade” ao ponto de lhe captar a essência e transformá-la em algo mais profundo (afinal, para que as coisas se façam compreensíveis, deve-se exagerá-las). 
Aliás, este artigo simbolicamente encena o lugar que ocupam as diversas artes no quadro teórico do escritor. Suas expectativas em relação à pintura, o cinema e a literatura se aproximam. Parafraseando Maiakovski, Oswald constata que a literatura tem uma importância análoga aos bens alimentícios. 
O escritor russo aparece noutro momento, em “Novas Dimensões da Poesia”, na entrega apaixonada do escritor e do leitor à obra de arte. Não “às bugingangas da mitologia bilaqueana”, diz Oswald irritado. Tampouco às fantasias hollywoodianas que reduzem os indivíduos a uma aceitação do status quo. Mas à realidade potencializada em filmes como Ladrões de bicicleta, em pinturas como o “Homem amarelo”, de Anita Malfatti, ou em escritores como Kafka, que tocam profundamente o leitor/espectador, fazendo-o enxergar o homem comum (e enxergar-se no homem comum) e espoliado tematizado por esses objetos.
Maiakovski

Um comentário:

disse...

Que bacana, Dani! Gosto de Oswald, e essa faceta dele é bem diferente. Acho bem coerente que ele se interesse por Ladrões de Bicicleta, devido ao cunho social.
Beijos!