Recupero abaixo uma resenha que escrevi faz um tempo sobre a coletânea de textos de Oswald de Andrade enfeixada no volume "Estética e Política". As reflexões do escritor sobre a relação entre arte (em especial o cinema) e sociedade não param de me interessar.
Oswald de Andrade. Estética e Política, Editora Globo, São Paulo, 1991.
Esta minha primeira aproximação extensiva com os textos teóricos de Oswald de Andrade me causou alguma perplexidade. Encontrei, em Estética e Política, o escritor piadista do Primeiro caderno do aluno de poesia Oswald de Andrade; encontrei o crítico num só tempo bem humorado e agudo da peça de teatro "O Rei da Vela". Porém, não imaginava que encontraria um intelectual afeito à oratória que poderia aparentemente passar por um daqueles conferencistas Parnasianos tão criticados pelos modernistas (como Coelho Netto, por exemplo).
Oswald de Andrade |
A contar por esse volume, talvez seja possível dizer que, se literatura e preocupação social são questões debatidas pelo escritor, a segunda se sobrepõe à primeira. E simbólico disso é o longo texto “O antropófago”, em que Oswald se propõe a historicizar a fundação da sociedade e a maléfica transmutação da economia do ser (que tinha por símbolo a maternidade) na economia do haver (organizada em torno do patriarcalismo). Aliás, “O antropófago” traz as noções que o escritor semeia nos artigos enfeixados em Estética e política – noções que parecem tê-lo preocupado durante toda a sua vida, considerando que os textos datam, grosso modo, das décadas de 1920 a 1950.
A primeira que levanto é a crítica ferrenha que o escritor pespega na religião católica, para a qual uma vida terrena miserável garantia as benesses da “Vida Eterna”. Assim ele diz em “Informe sobre o Modernismo”: o cristianismo “é a doutrina da domesticação do homem cujo destino é o céu, prossegue na escravatura, na sociedade solidamente dividida em classes e na justificação do Estado, cujo primeiro modelo sacerdotal, guerreiro e legislador tinha sido dado a Moisés de dentro das nuvens do Sinai.” (103).
"O Homem Amarelo", de Anita Malfatti |
A crítica ao cinema norte-americano, vinda de um literato que 20 anos antes não escondia seu fascínio pelos produtos da indústria cinematográfica daquele país, alia-se fortemente ao seu anseio por uma reforma social. Em palestra proferida no “Ciclo de Psicologia e Psiquiatria” (em 1938), apresenta o entrecho de seu Marco Zero.
Xavier é espectador ávido dos melodramas apresentados no Cinema Pedro II. “Realiza-se através dos filmes – diz o escritor – , nas façanhas incríveis do mocinho, nas lutas contra o vilão, nos miraculosos salvamentos da heroína” (58). O desejo de justiça social era saciado por esses homens e mulheres através da observação das façanhas de seus ídolos das telas. Oswald percebe o mal do melodrama (gênero teatral fundado na França noutro momento de exasperação social, o início do século XIX). Especialmente o melodrama cinematográfico, que incitava uma identificação tão intensa do público com o personagem, que saciava no cinema o desejo de luta social do indivíduo. Consequentemente, fora dos limites da sala de exibição, o espectador aceitava viver uma vida de sofrimento e negação.
Xavier é espectador ávido dos melodramas apresentados no Cinema Pedro II. “Realiza-se através dos filmes – diz o escritor – , nas façanhas incríveis do mocinho, nas lutas contra o vilão, nos miraculosos salvamentos da heroína” (58). O desejo de justiça social era saciado por esses homens e mulheres através da observação das façanhas de seus ídolos das telas. Oswald percebe o mal do melodrama (gênero teatral fundado na França noutro momento de exasperação social, o início do século XIX). Especialmente o melodrama cinematográfico, que incitava uma identificação tão intensa do público com o personagem, que saciava no cinema o desejo de luta social do indivíduo. Consequentemente, fora dos limites da sala de exibição, o espectador aceitava viver uma vida de sofrimento e negação.
No entanto, a crítica de Oswald tem mais relação a certos produtos do medium que a ele em si. A esses romances cinematográficos fantasiosos que engoliam tantos “Xavieres” sem senso crítico, o escritor contrapõe as fitas do neo-realismo italiano, as quais, ao procurarem a “vida cotidiana” e o “homem comum”, teriam conseguido atingir o símbolo (como ele aponta em “Velhos e novos livros”).
A leitura que o escritor modernista faz de Ladrões de Bicicletas (1948) é pródiga por flagrar, num só tempo, suas preocupações literárias e sociais. A bicicleta roubada do protagonista é símbolo de tudo o que nos foi roubado e que procuramos reaver, daí a importância da película.
Ladrões de Bicicletas (De Sicca, 1948) |
Ladrões de Bicicletas |
Aliás, este artigo simbolicamente encena o lugar que ocupam as diversas artes no quadro teórico do escritor. Suas expectativas em relação à pintura, o cinema e a literatura se aproximam. Parafraseando Maiakovski, Oswald constata que a literatura tem uma importância análoga aos bens alimentícios.
O escritor russo aparece noutro momento, em “Novas Dimensões da Poesia”, na entrega apaixonada do escritor e do leitor à obra de arte. Não “às bugingangas da mitologia bilaqueana”, diz Oswald irritado. Tampouco às fantasias hollywoodianas que reduzem os indivíduos a uma aceitação do status quo. Mas à realidade potencializada em filmes como Ladrões de bicicleta, em pinturas como o “Homem amarelo”, de Anita Malfatti, ou em escritores como Kafka, que tocam profundamente o leitor/espectador, fazendo-o enxergar o homem comum (e enxergar-se no homem comum) e espoliado tematizado por esses objetos.
O escritor russo aparece noutro momento, em “Novas Dimensões da Poesia”, na entrega apaixonada do escritor e do leitor à obra de arte. Não “às bugingangas da mitologia bilaqueana”, diz Oswald irritado. Tampouco às fantasias hollywoodianas que reduzem os indivíduos a uma aceitação do status quo. Mas à realidade potencializada em filmes como Ladrões de bicicleta, em pinturas como o “Homem amarelo”, de Anita Malfatti, ou em escritores como Kafka, que tocam profundamente o leitor/espectador, fazendo-o enxergar o homem comum (e enxergar-se no homem comum) e espoliado tematizado por esses objetos.
Maiakovski |
Um comentário:
Que bacana, Dani! Gosto de Oswald, e essa faceta dele é bem diferente. Acho bem coerente que ele se interesse por Ladrões de Bicicleta, devido ao cunho social.
Beijos!
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