Não tem um mês, fomos surpreendidos pela morte de Ettore Scola. “O coração dele já estava cansado”, dizia a nota que seus familiares encaminharam à imprensa. A contar por “Que estranho chamar-se Federico”, rodado em 2013, não parecia. O coração de Scola parecia pulsante o suficiente para muitos outros passeios fantasmáticos pela Cinecittà real e cinematográfica, mesmo que se confrangesse até quase se romper, levando-nos de roldão.
O sublime testamento ao amigo Federico Fellini fecha sua trajetória de cinco décadas como diretor e escritor (iniciada com “Fala-me de mulheres”, de 1964), da qual fizeram parte obras-primas como “Feios, sujos e malvados” (1976), “Casanova e a revolução” (1982), “O Baile” (1983) e este “Um dia muito especial” (1977), cuja cópia em película o paulistano Cine Belas Artes recentemente exibiu, em homenagem ao diretor.
O filme toma um capítulo-chave da relação entre a Itália e a Alemanha, que culminaria no alinhamento das duas nações durante a 2.ª Grande Guerra: a visita oficial de Hitler a Mussollini, na Roma de 1938. A trama equilibra-se entre o episódio político e as relações afetivas alinhavadas naquele solo movediço. As imagens de arquivo referentes ao fatídico encontro exercem influência inconteste, desde o início da narrativa – observe-se o documentário “Hitler a Roma”, de 38, em paralelo com a sequência inicial da obra. No entanto, pouco a pouco o destino de duas almas ocupará o centro dos refletores, entrelaçando-se e se sobrepondo ao destino coletivo da nação – como sói aos grandes filmes rodados a partir do neo-realismo.
Em primeiro plano está a relação entre Antonietta (Sophia Loren) e Gabrielle (Marcello Mastroianni): a mãe de família numerosa, esposa de um fascista, e o homossexual que perdera o emprego e estava em vias de perder a liberdade devido à sua “perversão”: “La Loren” e Mastroianni, o mais paradigmático dos pares românticos do cinema italiano (desde “Bela e Canalha”, de 1954). Décadas de química ajudam a dar verossimilhança ao casal sui generis engendrado pelo filme, uma obra de grande suavidade e melancolia, malgrado ela tenha como leitmotiv sonoro o som das marchas militares e dos registros radiofônicos de efusiva inclinação nazista, prenúncio sinistro dos males que estavam por vir.
Francesca é a dona de casa típica. A câmera esquadrinha a rua que se preparava para o “grande dia” e imiscui-se, num plano-sequência, nos domínios da mulher amanhecida, enquanto ela prepara o café e acorda a família que participará dos festejos. Sophia Loren esconde sua sensualidade por debaixo de chinelas rasgadas, meias-calças corridas e de um vestido surrado, e está magnífica como nunca. É a mulher-modelo da sociedade que se preparava para a combustão, a gerar copiosamente os filhos da nação, e cuidá-los em detrimento de si. Ingênua e quase iletrada, a beber e aspergir as baboseiras proferidas pelo Marechal Mussolini, chapa do Führer.
A mágica da arte proporcionará a tal mulher a tomada de consciência, no espaço de um dia. Ao ir em busca do papagaio fugitivo, ela dá com o belo e másculo Gabrielle, seu vizinho do prédio em frente. Daí por diante, estereótipos estilhaçam-se. Francesca experimenta com o vizinho uma relação inusitada: intelectual, festiva e carregada de tensão sexual – entre idas e vindas de um apartamento a outro, o preparo de um café e uma omelete, e compartilhados trabalhos cotidianos e leituras.
Algo apenas possível porque aquele homem – o único que perdera o famigerado desfile – não era o exemplo de cidadão requerido pela nação. Antes de Francesca, os espectadores já o haviam conhecido, acabrunhado pela demissão da emissora de rádio que, agora, narrava em êxtase a entrada de Hitler em Roma. “O homem deve ser marido, pai e soldado”, Gabrielle lê no álbum de recortes de Francesca, que a essas alturas já revia o seu conceito de humanidade.
Ambos chegarão às vias de fato, mas o filme é metáfora daquele momento histórico. Ao ver Gabrielle partir, Francesca guarda o romance folhetinesco que ele lhe dera. Aquela não era a época dos finais felizes. A Gabrielle caberá o patíbulo e, à Francesca, o marido troglodita, para o qual ela era apenas a fêmea parideira. Depois daquilo – da imensa humanidade – viria o horror. Mas aí já não há mais filme.
Ettore Scola parte, mas a sua obra fica, como um espírito a mover-se, etéreo. Em minha última viagem à Roma, encontrei o Estúdio 5, da Cinecittà – onde Fellini criou prodígios e Scola os revisitou – sendo paramentado para uma festa da alta sociedade. Mas, que importa a pompa dos muito ricos – satirizados com veneno e poesia no excelente “A Grande Beleza” (2013) –, se por ali os gênios já espalharam a sua magia?
Naquela ocasião, imaginei Fellini olhando tudo de cima, a se rir – ou, melhor, correndo entre os restos de velhos cenários, recusando-se a estar morto, assim como Scola o pintou, na sequência final da obra com a qual se despediu do cinema. Certamente agora ambos são comparsas, vivíssimos, malgrado a matéria os tenha perdido.
Um comentário:
Esse filme é belíssimo ! A cena de sexo é uma das mais delicadas do cinema.
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