Prometi, no artigo passado, me ater ao conjunto dos filmes estrangeiros concorrentes ao Oscar 2016. Os últimos desdobramentos políticos e sociais me obrigam a redefinir o fio da análise, concentrando-me no vencedor.
Recebeu – merecidamente – o prêmio este ano uma obra cujo valor transcende o cinematográfico, e que procura estabelecer conosco, os brasileiros, um diálogo para o qual não devemos ousar virar as costas.
Recebeu – merecidamente – o prêmio este ano uma obra cujo valor transcende o cinematográfico, e que procura estabelecer conosco, os brasileiros, um diálogo para o qual não devemos ousar virar as costas.
"O Filho de Saul" (László Nemes, 2015) já esteve sob os holofotes no ano passado, quando ganhou o grand prix de Cannes, portanto seu enredo é possivelmente conhecido do público. Acompanha-se, ali, o dia-a-dia de um campo de extermínio nazista, nos estertores da guerra – momento em que recrudescia a “solução final”, ou seja, a destruição de qualquer traço do povo judeu, por meio da gasagem, da incineração dos corpos e da liquidação das cinzas. Os parafusos da engrenagem nazista eram, por mais hediondo que isso possa parecer, os próprios internos dos campos, responsáveis por encaminhar seus semelhantes ao fim que dali a pouco eles próprios teriam.
A narração é subjetiva: a câmera toma a cena a partir do protagonista Saul (Géza Röhrig), um membro do Sonderkommando, grupo ao qual cabia a função. E lê aquele sonho dantesco como ele o faz: a partir dos fragmentos que evocam a incompreensão do horror que se passava no entorno. Incompreensão que exacerba os limites dos campos para adentrar os tribunais de Nuremberg, ou o julgamento de Eichmann: como é possível o massacre de milhares de pessoas por dia, às barbas das populações que habitavam o entorno daquelas construções? A realidade chega a ser posta em dúvida devido à sua paradoxal inverossimilhança. O aparentemente impossível, no entanto, aconteceu.
Saul tateia no escuro, vilipendiado por agressões que ele não sabe bem donde partem ou porque, naquele ambiente que perdeu todo traço de humanidade. Em meio aos restos mortais da última gasagem, a meio do caminho entre a sanidade e a loucura, o homem encontra o corpo de um garoto que adota por filho. O périplo ficcional de Saul em busca de um rabino que enterre o menino numa cerimônia judaica é perpassado por referências históricas concernentes à realidade dos campos: a hierarquia que surgia entre os prisioneiros, o esforço deles de registrar ao desvelamento da posteridade aquele cenário apocalíptico (em Images malgré tout, Didi-Huberman debruça-se sobre as fotografias concernentes aos momentos anteriores e posteriores da "solução final", tiradas por membros do Sonderkommando de certo campo de extermínio, e dali retiradas por certo membro da resistência polonesa).
A busca insólita do protagonista ganha foros de parábola bíblica, explicada brilhantemente por Ilana Feldman num artigo que eu recomendo aos leitores. Por meio do funeral, Saul nega ao menino desconhecido o apagamento a que o nazismo procurava submeter o seu povo. A denominação do protagonista salienta o cunho profético da história: Saul é o líder guerreiro responsável pela fundação da nação israelita, tornando-se o primeiro rei de Israel. O filme de László Nemes confere não apenas subjetividade ao prisioneiro a que os nazistas excluíram do rol da humanidade, elevando-o ao status de pai fundador de uma civilização.
O desfecho da história é condizente com o abismo erigido pelo filme, reflexo daquele construído pela História. Não é possível qualquer sopro de esperança, qualquer redenção catártica, quando o homem se recusa à sua principal premissa, a de ser humano.
Três anos atrás, quando as primeiras centenas de milhares de manifestantes ocuparam as ruas do norte ao sul do Brasil, numa tomada repentina de consciência política, procurei ler o evento à luz de Metrópolis e M., um par de filmes argutos de Fritz Lang que eu havia acabado de ver (ver o artigo). Endossei em parte o olhar temeroso que o autor volta às massas organizadas; o quão propensas elas estariam a ser cegamente enredadas, e o totalitarismo que poderia se originar dali. Não muitos anos depois dessas duas obras, os pesadelos ali explicitados materializariam-se no terror nazista, que agora ressurge com agudeza em “Os Filhos de Saul”.
Dez anos depois da 2ª Grande Guerra, quando a escritura da história do Holocausto principiava a ganhar contornos, Alain Resnais rodou “Noite e Neblina” (1955). Não para embalsamar o passado e transformá-lo em item de museu, mas sim para torná-lo de novo presente, no espaço do filme, enfatizando quão tênue é o limite entre a civilização e a barbárie. O questionamento ali colocado pelo narrador – “Quem de nós ficará de vigília para nos advertir sobre a chegada de novos carrascos?” – é primordial ainda hoje. Nesse tempo em que a nossa pátria cordial está mergulhada em lutas intestinas que atingem perigosamente as raias da insânia, é nossa obrigação olharmos para as lições deixadas pela História. É fundamental lutarmos pela vitória da luz sobre as trevas, da democracia sobre o totalitarismo, e pelo desmascaramento dos tiranos travestidos de super-heróis.
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