quinta-feira, 7 de outubro de 2021

Giornate Del Cinema Muto de Pordenone 2021: Dia V


Dia 5: terça, 6 de outubro de 2021 

Quinto dia da Giornate. Em streaming, o cinema silencioso sul-coreano. A obra é “Geomsa-Wa Yeoseonsaeng” (A Public Prosecutor and a Teacher, de Yun Dae-ryong) e data de 1948. O anacronismo é esclarecido por Jay Weissberg na apresentação que ele faz do filme: finda a ocupação japonesa na Coreia, não restaram no país equipamentos de som que possibilitassem a exibição de filmes falados, daí a essa obra ter sido rodada silenciosa e acompanhada, no cinema, pela narração de Sin Chul, um dos últimos e mais notórios byeonsa do país. Os byeonsa correspondiam aos benshi japoneses – que, durante o cinema silencioso, narravam pessoalmente os filmes ao público durante a sua exibição (há aqui um texto meu sobre uma performance do benshi japonês XX, ocorrida na Giornate de Pordenone de 2019). 
A proximidade nas designações deve-se, quiçá, à assimilação da cultura japonesa pela Coreia durante a violenta dominação daquele país, que durou de 1910 até a rendição do Japão aos Aliados, ao fim da Segunda Grande Guerra, e teve como saldo a proibição do uso da língua coreana, a instituição de trabalhos forçados e a prostituição forçada de mulheres e crianças visando à prestação de favores sexuais aos combatentes japoneses – as quais eram denominadas eufemisticamente de “mulheres de conforto”. 
A 1948, a Coreia do Sul (à essa altura o país já se dividira, voltando-se a sua porção sul à economia capitalista) procurava se reerguer culturalmente. Usa, para tanto, no âmbito cinematográfico, as sobras dos equipamentos abandonados pelos japoneses. Filmes virgens então eram escassos, destaca Sungji Oh no texto de apresentação da obra publicado pela Giornate, e, ademais, o país era dominado pela Central Motion Picture Exchange (CMPE), distribuidora direta de filmes norte-americanos na Coreia. A aculturação a que o Japão submetera o país, fazendo com que remanescesse um número ínfimo de sua produção cinematográfica, passa, após o fim da guerra, a ser encabeçada pelos Estados Unidos. “Geomsa-Wa Yeoseonsaeng” – O promotor público e a professora – precisa ser lido neste contexto para que compreendamos as suas características e as suas falhas. 
A obra é um exemplar admirável do esforço de se fazer filmes independente das circunstâncias – o qual nós, brasileiros, compreendemos tão bem. A sua imagem é instável e fugidia, problema que parece se dever tanto à dificuldade de estabilizá-la para a digitalização quanto à qualidade do negativo. Vendo-a, pensei numa margarida se despetalando ao vento, ou então no maravilhoso documentário “Lyrical Nitrate” (Lyrisch Nitraat, 1991), de Peter Delpeut, cujos minuciosos primeiros planos e movimentos retardados em filmes que estão se decompondo fazem emergir a poesia incontornavelmente atrelada à morte da película cinematográfica. 
A maior qualidade deste filme sul-coreano consiste, suponho, no esforço que a imagem faz para resistir ao tempo, para embalsamar, como diz Bazin, aqueles anos em que a Coreia do Sul se esforçava para se reerguer. A decadência da imagem, a técnica cinematográfica falha - feita de inopinados jump-cuts e de longos planos que se esforçam, no entanto, para mimetizar a montagem clássica norte-americana -, a ausência de som num momento em que o cinema falado já era uma realidade ao redor do mundo e o esforço do narrador para fabular junto com o filme (trazendo, com sua voz, acalento a espectadores que vinham de experienciar situações tão traumáticas) testemunham o esforço que o país fazia para se reerguer. 
O entrecho da obra é curioso, porque estamos diante de um melodrama cujas tintas orientais não escondem o diálogo com as fontes ocidentais. Conta-se a história de um menino que conclui com esforço o ensino básico, precisando sustentar a avó doente. Ele precisa vender jornais para pagar o aluguel, divide as porções módicas de comida com a avó e chora por não ter os pais – o narrador admirável dá voz a todas as personagens e, a essas alturas, chora com ele as suas desditas. A professora do título, a atriz Lee Yeong-ae – “antes mulher que professora”, diz o narrador e o intertítulo, ressaltando as relações dessa obra com o melodrama clássico – é a figura luminosa que lhe dá comida e alento, levando-o a acreditar na educação. Ela deixa a escola, porém, dá ao menino um livro e recursos para que ele prossiga estudando. Dez anos se passam, e agora a vemos casada e ainda devotada aos outros, tanto que a sua dedicação à garotinha filha de um presidiário leva a cidade e o seu marido a acreditarem numa traição, e ele a ameaçar a pobre mulher com uma faca – arma por meio da qual ele acabará se matando, depois de tropeçar e cair sobre a lâmina. 
A cultura ocidental e a oriental se misturam: se a pobre professora clama a Deus por justiça (ao menos assim a legenda o traduz), o que retoma o papel dos ritos católicos no melodrama ocidental, ela, no banco dos réus, deseja ser considerada culpada para se juntar ao marido que a desacreditara e ameaçara, pois, “de que vale uma mulher quando o seu marido está morto?” – uma submissão ao homem que é sobretudo observada na cultura oriental. A reviravolta se dá quando ela descobre, no assento do promotor, aquele rapazinho a quem ajudara dez anos antes – agora um homem feito, cuja calorosa defesa da inesquecível professora a leva a ser absolvida. Em primeiros planos, destacam-se os papéis da educação na promoção social e da gratidão na promoção humana, lições que desejara gravar à posteridade o país que viera de emergir do mais horrível passado.

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