sexta-feira, 5 de dezembro de 2025

As mater dolorosas de Giacomo Puccini


Em comemoração ao centenário de Giacomo Puccini, o Theatro Municipal do Rio de Janeiro apresentou, até o dia 27 de julho de 2024, seu
Trittico, conhecido do público sobretudo por sua reputação, pois, das três óperas que o compõem, a mais representada é a cômica, Gianni Schicchi
Exibida pela primeira vez no Metropolitan de Nova Iorque em fins de 1918, a tríade de óperas reproduz uma estrutura de programa teatral bastante comum na Europa (e por tabela no Brasil) durante o século XIX. Esses programas, longos, alinhavavam em sequência um conjunto de peças curtas, cômicas ou dramáticas, normalmente farsescas e peças de sensação (ou seja, dramalhões sangrentos, cujos enredos eram extraídos diretamente das páginas policiais). O bom senso fazia com que se apresentassem antes os dramas, fechando-se as récitas com as comédias, para que o público voltasse para casa com um sorriso no rosto. 
Essa sequência de dois dramas e uma comédia, cada qual em um ato, é adotada no Trittico pucciniano. Meu intuito não é esmiuçá-la aqui, mas sim me concentrar em duas personagens femininas deste conjunto de obras, em parte porque os dramas de ambas se aproximam, em parte porque fiquei profundamente tocada pelas performances das artistas que lhes deram vida nesta montagem carioca: Eiko Senda e Ludmilla Bauerfeldt, na récita a que assisti, em 21 de julho. 
Senda desempenhou o papel de Giorgetta em Il Tabarro, trama ambientada na França popular dos anos 1920; recorte humano aproveitado pelos dramaturgos naturalistas desde a virada do século. O libreto, de Giuseppe Adami, é oriundo da peça La Houppelande, de Didier Gold, estreada em Paris em 1910. A trama se passa às margens do rio Sena, na embarcação de Michelle, marido de Giorgetta. Obras dramáticas – peças e filmes – com esta temática pululavam então, já que essas barcaças são uma entidade francesa (passeando às margens do Sena, o turista ainda hoje se depara com as peniches, que são casa e ganha-pão de um número não desprezível de pessoas). 
Como corresponde às obras em ato único, a trama desdobra o enredo com rapidez. Giorgetta principia rejeitando as carícias do marido, e logo, em meio às interações aparentemente sem consequências que ela trava com os empregados dele, ao longo de um número de dança, descobrimos que ela está envolvida amorosamente com um desses homens, Luigi. 
Obra de inclinação naturalista, Il Tabarro coloca em primeiro plano os instintos incontroláveis que determinam o curso das existências. A mulher cede à paixão e entrega-se à relação extraconjugal. O marido cede à ira e mata o amante da esposa – e conforme a música de Puccini nos faz antever, provavelmente também acabará por matá-la. Nenhuma liberdade associada à vida à flor das águas é aproveitada por essas personagens, presas em seus dramas interiores. 
A encenação carioca do Trittico desloca a ambientação da trama, que seria na embarcação, para um galpão escuro, deixando ainda mais patente esta prisão. Descobriremos ali, por meio de Michelle – homem que, antes de se saber traído, é torturado pela rejeição –, que o casal havia perdido recentemente um filho, que amorosamente acalentavam sob a proteção do capote dele (o tabarro do título). 
Esta informação ganha valor ao analisarmos a ópera segundo os cânones do naturalismo. O caráter visceral da relação entre a mãe e o filho, que parece apressar os acontecimentos nesta ópera, é patente ao menos noutras duas obras de Puccini, Madama Butterfly e Suor Angelica
Eiko Senda tem intimidade com essas personagens puccinianas dilaceradas. Ela, atravessada pela Madama Butterfly (um de seus cavalos de batalha, que ela incorporara com excelência meses antes em São Paulo) – personagem que sucumbe após saber que, além de perder o amado, ele ainda lhe tirará o filho deles –, impregna de densidade psicológica a mulher que, se é culpada pela traição, é antes deslocada pela perda incomensurável. 
Orientada pela direção consistente de Pablo Maritano, Eiko constrói com profundidade a repulsa, a paixão e a dor muitas vezes misturadas desta mulher do povo – personagem tão cara aos autores naturalistas, para os quais os estamentos sociais inferiores eram os sujeitos ideais para que se observassem a ação dos instintos sobre os seres. Sua entrega vocal e cênica enche de matizes uma obra que, pela sua duração e temática principal – o triângulo amoroso –, estaria inclinada a ser lida, nesta sociedade machista, sobretudo como um caso de traição exemplarmente punida. 

A exemplo de sua colega, Ludmilla Bauerfeldt, em sua performance como a personagem-título de Suor Angelica, extrapola os limites do enredo da obra. Também esta obra de Puccini (o libreto é de Giovacchino Forzano) coloca em cena a sociedade machista, contando a história da jovem que, no século XVII, é internada num convento pela família nobre após gerar um filho fora dos liames do casamento. 
 A leitura de Pablo Maritano e a cenografia de Desirée Bastos sublinham a severidade deste quadro social permeado pela igreja, reduzindo a sororidade e a ludicidade da relação entre as irmãs, presente na trama. Angelica resta só em meio às paredes opressoras do claustro sombrio, enquanto no libreto a cena se dá ao ar livre, num luminoso entardecer. 
O pouco suporte emocional que ela encontra por parte da tia calculista e a obrigação, por parte de duas irmãs, de assinar o documento que a parenta leva ao convento, com a disposição da herança, apressam o desenlace de Angelica, anunciado pelo libreto desde o princípio da ópera: “O sorella, la morte è vita bella!”. Nesta encenação, Angelica ganha um primeiro plano ainda mais patente do que lhe dão libreto e música, aparecendo em cena muitas vezes apartada das demais freiras, o que salienta a sua solidão, enquanto noutros momentos recebe uma iluminação incandescente que patenteia o seu dilaceramento, expresso pelo seu rosto crispado – por exemplo, quando se retira do claustro pela primeira vez, e é iluminada pela luz que vem do cômodo contíguo. 
Cenografia, encenação e, sobretudo, a inteligência cênica de Ludmilla Bauerfeldt preparam o público para o desenlace da ação. O desespero da personagem ao saber que o filho morrera; a insânia que aos poucos vai tomando conta dela – o que a faz, na contracorrente do catolicismo, apressar a sua própria morte para se encontrar com o filho; e, enfim, o seu arrependimento são construídos pela artista com uma excelência emocionante. Além de vocalmente impecável, Ludmilla mergulha na personagem que desempenha com uma profundidade dramática inusual, em que a expertise técnica se deixa atravessar por uma emoção genuína, que arrasta de roldão toda a plateia. Sortudos daqueles que a viram desempenhando este papel, pois vivenciaram uma experiência estética única (há um longo trecho filmado do espetáculo, que convido fortemente o leitor a ver aqui).
O trabalho realizado por essas duas grandes artistas nessa produção do Trittico destaca que, para além da qualidade do canto, a atuação - e, neste sentido, uma direção consistente dos atores/cantores - é um aspecto fundamental da ópera contemporânea, pois consegue dar atualidade a obras criadas há tempos, fazendo ressoar os dramas com os quais nos debatemos hoje.

As imagens são oriundas de material de divulgação e das redes sociais de participantes dos espetáculos.

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