sexta-feira, 10 de outubro de 2025

Giornate del Cinema Muto de Pordenone 2025 – Dia 6

Dia 6, quinta-feira, 9 de outubro 
 Ontem, a Giornate del Cinema Muto virtual dedicou o seu programa único à apresentação de “L’ombra” (The shadow/A sombra), obra rodada por Mario Almirante para a companhia italiana Torino em 1923. O acompanhamento musical ficou a cargo do pianista Michele Catania. 
Protagoniza-a Italia Almirante Manzini, para quem a Giornate formulou um amplo programa este ano. Segundo conta Jay Weissberg, ela era, num só tempo, uma bem reputada atriz de teatro e uma diva cinematográfica. Recupero os anexos de minha tese de doutorado, com a compilação da crônica sobre cinema publicada, nos jornais cariocas à época, nada encontro sobre ela, e tenho a gana momentânea de sanar a lacuna, coisa que evidentemente só poderei fazer mais tarde. 
Como também aponta Weissberg, a indústria cinematográfica italiana desestruturou-se após a Primeira Grande Guerra. Manzini, conforme aponta-nos o IMDB, ingressou nela a partir de 1920. Popularizou-se ao redor do mundo, mesmo no Brasil, destaca Weissberg – coisa que resta a confirmar –, pois, apesar da referida situação de penúria, conseguiu protagonizar obras rodadas com orçamentos expressivos. 
Nesta, dirigida por um primo da atriz, ela desempenha o papel da aristocrata Berta Trégner, a quem não faltavam adjetivos, verbalizados pelo talvez até demasiadamente encantado Michele (Vittorio Pieri), padrinho da jovem. Vemo-la lépida, na abertura da obra, protagonizar um jogo de tênis – já se vê que é na elite italiana que a obra se debruça –, e correr até o interior de seu faustoso palacete, para colher, das mãos do marido apaixonado, o pintor Gerardo Trégner (Alberto Collo), a bola que casualmente fora parar ali dentro. 
Todavia, o relacionamento florescente de ambos fenece em paralelo ao degringolar da saúde da jovem, que sente, ao longo do jogo, o primeiro sinal do mal inexplicável que a acometerá – a “sombra” do título. Em virtude dele, a jovem acabará paralítica, estabelecendo-se, daí por diante, uma contraposição atroz entre a sua vitalidade pregressa e a inação. 
Berta amarga o calvário com retidão. Pede ao marido que deixe um espaço dentro de si para que ela novamente se acomode quando a sombra passar – o que remete à ideia da doença como purgação –, e passa a viver com ele num espaço cuja austeridade se assemelha à vida que então é obrigada a levar. A praticidade do arranjo faz com que ele encete um relacionamento extra-conjugal com Elena Preville (Liliana Ardea), bonequinha loura que Berta vira crescer e acolhera junto de si até que se casasse. Todavia, o público só tomará conhecimento disso na segunda parte da história, quando a trama desloca o supostamente leal Geraldo dos pés da esposa enferma e o situa na casa do princípio da obra, também seu estúdio, ao lado da amante – agora divorciada do primeiro marido – e do filho bebê do casal, que ele pintava. E ao fazê-lo, procura aderir à pedagogia misógina da época, levando o público a sentir aversão por Elena, em detrimento do marido adúltero. 
No entanto, este deslocamento dramático da casa feita enfermaria à residência solar dá-se no justo momento em que Berta recobra os movimentos. Visitando o marido para dar-lhe as novas, ela se encontra antes com a criança e depois com o cínico Geraldo. 
Sabedora do laço que unia os dois seres e do lugar que Elena ocupava na história, Berta decide se afastar do agora arrependido marido, não o fazendo apenas ao descobrir que a antiga amiga também mantinha um amante – não outro que o ex-esposo dela. Poupo os leitores dos quiproquós que determinam o desenrolar dos fatos, detendo-me apenas na moral melodramática que os enfeixa. Berta aceita o perdão do marido e toma para si o filho de Elena, considerando-a moralmente corrompida para criá-lo. O fato de Geraldo proceder do mesmo modo e ser perdoado pela narrativa explicita um traço importante do gênero, que dicotomizava a mulher, ora considerada santa, ora pecadora. Não haveria espaço para o perdão a Elena – ao menos na Terra. 
Se, do ponto de vista do entrecho, a obra emana um chorume de época, ela alça maiores voos do ponto de vista cinematográfico. Há um cuidado na tessitura sobretudo da personagem de Berta, a quem o sofrimento transforma em efígie, e sacraliza-se a imagem da criança, retratada como se fosse uma estátua renascentista ou mais uma das obras de arte de Geraldo – o que prepara o público para a decisão da esposa traída de adotá-la e criá-la como sua. 
E destaca-se, sobretudo, a persona cinematográfica de Italia Almirante Manzini, uma atriz da potência de uma Francesca Bertini – veja-se toda a sequência que se segue à descoberta da traição, de sua ida à igreja, onde ela clama por uma nova doença que lhe dê o esquecimento, ao seu caminhar alheado pela rua, onde ela procura pôr termo à existência, até, enfim, a chegada à casa e a revisitação da poltrona que acolhera a sua resiliência enquanto doente, e agora a encontrava com o semblante turvado. Uma grande atriz, que a Giornate homenageia – e eu descubro – em boa hora.

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