segunda-feira, 6 de outubro de 2025

Giornate del Cinema Muto de Pordenone 2025 – Dia 2

 Dia 2, domingo, 5 de outubro 

O programa de domingo da Giornate foi duplo. O primeiro deles foi composto por quatro curtas de Louis Feuillade rodados entre 1911 e 1913, integrantes do programa “Il Canone Rivisitato” (O Cânone Revisitado). O segundo, por duas obras ucranianas rodadas em 1929, integrantes do programa “Cinema Ucraino per Ragazzi” (Cinema ucraniano para crianças). 
O quarteto de curtas de Louis Feuillade foi composto pelas obras “Les Vipères” (1911), “Le Nain” (1912), “Le Coeur et l’argent” (1912) e “Erreur Tragique” (1913). O acompanhamento musical ficou a cargo de John Sweeney. 
Conforme lembrou Jay Weissberg na apresentação do programa, Feuillade rodou este conjunto de filmes pela Gaumont, voltada a produções de baixo orçamento, daí a repetição de elencos, e mesmo de figurinos. Não casualmente, o filão em que a casa investiu foi o naturalista, cujo principal artífice era Émile Zola. A representação da realidade crua, proposta por tal estética, e a investigação da influência do meio sobre os seres, ganhou impulso não a partir dos romances de Zola, mas sim da representação teatral dessas obras, entre fins do século XIX e começos do XX – portanto, contemporaneamente ao cinema. 
As características dessas obras, ao migrarem do livro à cena teatral, também muda – o investimento no naturalismo dá-se sobretudo na esfera da cenografia, com elementos decalcados da realidade, já que a mise-en-scène acaba por beber do âmbito do melodrama (João Roberto Faria estende-se sobre isso em Ideias teatrais, de 2001). Consequentemente, o naturalismo de Feuillade, se faz uso da própria natureza, movimentando ali os dramas humanos – grande trunfo do cinema –, é ainda essencialmente melodramático. 
Le coeur et l'argent
A heroína de três das quatro obras apresentadas é Suzanne Grandais, uma das estrelas da época, multifacetada jovem artista que teria a vida ceifada poucos anos mais tarde, num acidente de trabalho (a Giornate dedicou um programa a ela em 2019, que comentei aqui). 
Em “Le Nain”, ela é Lina Béryl, a estrela de uma companhia teatral que protagoniza certa obra (fictícia) de autoria desconhecida, “La vierge de Corinthe”. Todavia, o público é apresentado ao autor. Trata-se de Paul Darcout, um jovem burguês portador de nanismo que vive com a mãe uma relação umbilical determinada, em grande medida, pela condição dele – então vista com profundo preconceito. Ele apaixona-se por Lina e ambos encetam uma relação telefônica – e então, a tecnologia da época é desvelada, materializando as elucubrações de um homem como Lima Barreto, ao escrever, nos idos de 1919-1920, crônicas como “Amor e Telefone”: as atendentes da central telefônica debruçam-se sobre os lânguidos pombinhos, que namoram entre a cama de Lina e o escritório de Paul, enquanto, no plano fílmico, a proximidade paradoxal deles é cortada pela azáfama da cidade moderna, que corre entre os dois. A jovem consegue o número do rapaz com uma daquelas atendentes e, por conseguinte, o endereço dele, e amargamente o repele ao descobrir quem ele é – não há sopro de esperança nessas obras, que objetivam mostrar “A vida como ela é”. 
Em seguida, “Le coeur et l’argent” propõe-se a investigar a difícil escolha colocada pelo título. A protagonista, duramente determinada pelo meio, é Suzanne Mauguiot; sua mãe, Rennée Carl, que em “Le Nain” desempenhava o papel de Mme. Darcourt, mãe de Paul. O romance bucólico entre Suzanne e Raymond, um pobre pescador, é interrompido por Mme. Mauguiot, que, dona de uma estalagem, convence a filha a se casar com o rico M. Vernier. 
Síncope temporal, e vemos a até então fresca jovenzinha na mansão em que passa a viver, ajeitando as flores – as mesmas, diz o intertítulo, com que o seu amado a presenteava – e refletindo em seus olhos todas as dores do mundo. Fusões materializam o embaralhamento entre o passado e o presente. O marido, que parte em viagem, acidenta-se e morre, transformando-a em herdeira universal contanto que ela jamais se case novamente. Suzanne finalmente toma a decisão entre o coração e o dinheiro apontada no título. Foge de casa usando suas velhas vestes, em busca do antigo namorado, e, ao ser repudiada por ele, entrega-se às águas do rio que testemunhara o seu idílio como entregara-se a Ofélia de John Everett Millais. 
A última protagonizada por Grandais é uma obra-fetiche minha, um dos objetos de minha tese de doutorado, “Erreur Tragique”, que traz um olhar sofisticado sobre os meandros da indústria do cinema, e torna a materialidade fílmica o elemento catalizador do enredo. Nela, Grandais é (novamente) Suzanne, agora de Romiguières, casada com o rico René de Romiguières (René Navarre) – construía-se então o estrelismo cinematográfico, que associava pessoas e personagens, além de delimitar os tipos a serem desempenhados por cada artista. 
Ambos viviam uma tranquila e bucólica lua de mel fora dos limites de Paris, quando, chamado à cidade a trabalho, René coincidentemente vê a esposa nos braços de outro homem, como figurante num filme de “Onésime”, personagem interpretado pelo cômico Ernest Boubon numa série de filmes da Gaumont. Temos, então, um filme dentro de outro; uma comédia a deflagrar um drama. René vai à Gaumont, compra o rolo de filme, e nós o vemos desenrolando-o e recortando-o: sem dúvida, o filme capturou a traição da jovem, diz o intertítulo. Procurando vingar-se, o homem acaba por manipular a carruagem da esposa, que acaba se acidentando pouco antes de chegar à casa o suposto amante – na verdade, o irmão da moça (o marido fora tão enganado quanto o público, com quem o filme busca conivência). Coloca-se, assim, em debate o papel de “prova” da imagem fotográfica, supostamente “objetiva”. 
A obra que abriu o quarteto de filmes de Feuillade foi “Les Vipères”, em que Renée Carl agora desempenha o papel da mulher espoliada que é colocada para fora de casa por não poder pagar o aluguel, e adia a sua ida à sarjeta porque o prefeito da cidade a leva até a sua casa, para trabalhar como empregada da esposa doente (Alice Tissot). A integridade da servente sem nome é colocada sob os olhos do público, que a vê tratando com desvelo da enferma e da pequena criança dela. No entanto, as fofoqueiras do bairro a detratam, obrigando-a a abandonar a família. 

O segundo programa do dia foi composto pelos filmes oriundos da República Socialista Soviética Ucraniana “Sam sobi Robinzon” (Robinson por conta própria), de Lazar Frenkel, com acompanhamento musical de Daan Van den Hurk, e “Pryhody Poltynnyka” (The Adventures of a Penny/As aventuras de um penny), de Axel Lundin, com acompanhamento musical de Olga Podgaiskaya e Ensemble – grupo que apresentou, na abertura e no desfecho da última obra, um coro infantil capaz de comover as pedras. 
A primeira delas tem um entrecho que talvez pudesse ser abordado de forma menos alongada. Conta a história de Vasia Robinson (Boria Bohdanovskyi), menino que leva o epíteto do personagem que ama, Robinson Crusoe, que ele lê apaixonadamente, mesmo enquanto caminha pelas ruas, alheio ao trânsito, ao jato d’água que lhe molha os pés e aos colegas de classe, que o chacoteiam. 
O menino, já se vê, é o pária da classe, pois é um mal cidadão soviético, mais interessado no mergulho na ficção que nas relações com os colegas. Tanto que, tripudiado por todos, Vasia decide partir sozinho em busca de aventuras, ao contrário dos colegas, que saíam em grupo para fazer um estudo do meio. No decurso da viagem, no entanto, ele descobre que uma vida aventuresca era mais dura na realidade que na ficção. Vasia apenas consegue paz consigo e com os colegas quando se desculpa com o grupo – o qual ele por acaso encontra no ermo onde estava –, e promete nunca mais deixá-los em prol da literatura. Malgrado a lição socialista do filme, Jay Weissberg destaca que o seu diretor foi vituperado pelo partido e teve a obra retirada de circulação, dado que ele parecia tão seduzido pela literatura digestiva capitalista quanto o próprio protagonista... 
Enfim, a última obra apresentada, “Pryhody Poltynnyka”, faz uma análise potente sobre a população espoliada e a histórica luta de classes. Tem uma densidade desusada em filmes infantis. O filme apresenta um sensacional conjunto de crianças capitaneadas por Fedko (Kolya Kopelian), menino tiranizado pela mãe (E. Liubchenko), e a quem o pai (D. Liubchenko) tem um desvelo maternal – além de um agudo olhar à mulher, que, segundo ele, é demasiado amarga por ser demasiado pobre. Salvo as crianças, os personagens não têm nome, sendo intitulados segundo a sua condição social. São também tipificados. Logo, o abastado Gerente da Oficina que emprega os pais de Fedko são sempre retratados comendo, enquanto todos os pobres têm a comida minguada. 
O episódio que dá título ao filme concerne à moeda de centavos que Fedko ganha de seu pai para comprar doces, a qual torna-se objeto-fetiche, passando de mão em mão, até cair numa ravina – demandando uma operação de guerra para a sua recuperação –, e finalmente ir parar nas mãos do acumulador gerente como objeto de troca a servir, na economia narrativa, para ressaltar a relação de companheirismo vivida entre as crianças. 
Outra moeda do mesmo valor trará um sentido lúgubre; será a esmola que o gerente dará à mãe de Fedko – agora, uma admirável mater dolorosa – em troca do pedido de ajuda financeira dela para que ele salve o filho à beira da morte. Não será à custa do homem abastado que Fedko se salvará, mas sim da natureza, já que, numa manhã de sol, a sua febre cede. A obra, aliás, faz uma apreensão admirável do clima dos arredores de Kiev, onde ela foi filmada: dos invernos rigorosos, que endurecem os caracteres – quase todos demasiadamente pobres para se vestirem como pede a estação –, às florações, sóis e degelos, que fazem a comunidade reviver.

Nenhum comentário: