Dia 3, segunda-feira, 6 de outubro
O programa do terceiro dia da versão virtual da Giornate del Cinema Muto foi consagrado a “The white heather” (A urze branca), rodado nos Estados Unidos por Maurice Tourneur em 1919. Conforme Jay Weissberg aponta no vídeo de apresentação do programa, e Robert Byrne aprofunda no catálogo, o filme foi considerado perdido até meados de 2022, quando uma versão sua em 35 mm, em nitrato, colorido segundo as técnicas de viragem e embebimento, foi encaminhada ao Eye Filmmuseum – tendo sido restaurada em consórcio entre este laboratório, o San Francisco Film Preserve e o SF Silent Film Festival. O acompanhamento sonoro ficou a cargo de Stephen Horne. A mágica do ressurgimento é ainda mais deleitável porque a obra testemunha os começos daquele que viria a ser um dos principais galãs do cinema hollywoodiano dos anos de 1920, John Gilbert – então, Jack Gilbert, num papel coadjuvante.
Maurice Tourneur é conhecido pela forma sofisticada como maneja o gênero melodramático – dele vimos, no ano passado, “Trilby” (1915) e “The Blue Bird” (1918), sobre os quais tive a oportunidade de falar aqui. Baseado na obra teatral homônima de Drury Lane, estreada em Londres em 1897, o filme centra-se na figura de Lord Angus Cameron (Holmes E. Herbert), que desposa Marion Hume (Mabel Ballin) numa viagem de navio. Abandona-a, todavia, com o filho de ambos, e nega terem se casado, já que tem ao seu lado tanto a conivência do capitão do navio, que os casara, quanto o fato de a embarcação ter naufragado em seguida ao consórcio, carregando consigo, para o fundo do mar, o contrato firmado pelo casal.
Temos, portanto, a clássica história da virtude injustiçada. No entanto, a novidade aqui é a forma ponderada como o personagem de Cameron é apresentado. Ele é um empresário cujo banco entra em falência e que precisa recorrer ao irmão rico para conseguir o empréstimo que salvará a si e aos correntistas. Ao chegar ao castelo habitado pelo irmão, na Escócia – o modus vivendi da nobreza escocesa é retratado com cuidado –, ali encontra Marion Hume, que, atuando como dama de companhia, escamoteia tanto o matrimônio quanto o filho do casal, criado às escondidas por um casal de pastores da vizinhança. Cameron procura falsear o afeto pela esposa, enquanto o irmão dele propõe casá-lo com uma nobre da região, condição para que lhe empreste o dinheiro demandado.
Apenas quando Cameron destrói o barquinho feito pelo filho, com que a esposa lhe presenteia, a sua típica faceta vilânica emerge. Além de repudiar Marion, agora publicamente, ele fere não intencionalmente o filho, durante uma caçada, e é responsável por destruir moralmente o pai da esposa – o qual procura na justiça os direitos da filha –, o que o leva à morte.
Cameron acaba por ser exemplarmente punido segundo a moral do melodrama, e de forma altissonante. Morre enquanto luta, no fundo do mar – enquanto procura encontrar e destruir o contrato de casamento depositado num baú no navio naufragado –, com Alec McClintock (Ralph Graves), o mocinho da história. Aliás, se falta verossimilhança a tal cena na economia dramática, sobra-lhe artesania técnica: foi filmada por Ernest Williamson, o mago das imagens subaquáticas do período, a quem Pordenone dedicou, no ano passado, um programa de tirar o fôlego (que comentei aqui).
Assim, Marion, típica heroína melodramática, consegue, num só tempo, o reconhecimento social demandado e a ruptura com o nefasto marido para se casar com Alec, que a requesta durante o drama. Como se vê, John Gilbert desempenha apenas o segundo papel masculino da história. Também apaixonado pela mocinha, cabe a ele rodar o mundo em busca do capitão de navio que a casara. Baleado quando o encontra, acaba por morrer apenas depois de dar a bênção aos canhestros pombinhos.
Malgrado o filme tenha apuro técnico, e tenha chegado aos nossos dias uma versão que se aproveita com qualidade das potencialidades do uso das cores, exemplarmente restaurada, a trama padece, além da inverossimilhança, do subaproveitamento do personagem de Alec McClintock - protagonista inesperado, já que quem rouba a cena é o deslumbrante Gilbert, demonstrando cabalmente a estrela em que logo se transformaria.
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