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terça-feira, 7 de outubro de 2025

Giornate del Cinema Muto de Pordenone 2025 – Dia 3


Dia 3, segunda-feira, 6 de outubro

O programa do terceiro dia da versão virtual da Giornate del Cinema Muto foi consagrado a “The white heather” (A urze branca), rodado nos Estados Unidos por Maurice Tourneur em 1919. Conforme Jay Weissberg aponta no vídeo de apresentação do programa, e Robert Byrne aprofunda no catálogo, o filme foi considerado perdido até meados de 2022, quando uma versão sua em 35 mm, em nitrato, colorido segundo as técnicas de viragem e embebimento, foi encaminhada ao Eye Filmmuseum – tendo sido restaurada em consórcio entre este laboratório, o San Francisco Film Preserve e o SF Silent Film Festival. O acompanhamento sonoro ficou a cargo de Stephen Horne. A mágica do ressurgimento é ainda mais deleitável porque a obra testemunha os começos daquele que viria a ser um dos principais galãs do cinema hollywoodiano dos anos de 1920, John Gilbert – então, Jack Gilbert, num papel coadjuvante. 

Maurice Tourneur é conhecido pela forma sofisticada como maneja o gênero melodramático – dele vimos, no ano passado, “Trilby” (1915) e “The Blue Bird” (1918), sobre os quais tive a oportunidade de falar aqui. Baseado na obra teatral homônima de Drury Lane, estreada em Londres em 1897, o filme centra-se na figura de Lord Angus Cameron (Holmes E. Herbert), que desposa Marion Hume (Mabel Ballin) numa viagem de navio. Abandona-a, todavia, com o filho de ambos, e nega terem se casado, já que tem ao seu lado tanto a conivência do capitão do navio, que os casara, quanto o fato de a embarcação ter naufragado em seguida ao consórcio, carregando consigo, para o fundo do mar, o contrato firmado pelo casal. 

Temos, portanto, a clássica história da virtude injustiçada. No entanto, a novidade aqui é a forma ponderada como o personagem de Cameron é apresentado. Ele é um empresário cujo banco entra em falência e que precisa recorrer ao irmão rico para conseguir o empréstimo que salvará a si e aos correntistas. Ao chegar ao castelo habitado pelo irmão, na Escócia – o modus vivendi da nobreza escocesa é retratado com cuidado –, ali encontra Marion Hume, que, atuando como dama de companhia, escamoteia tanto o matrimônio quanto o filho do casal, criado às escondidas por um casal de pastores da vizinhança. Cameron procura falsear o afeto pela esposa, enquanto o irmão dele propõe casá-lo com uma nobre da região, condição para que lhe empreste o dinheiro demandado. 

Apenas quando Cameron destrói o barquinho feito pelo filho, com que a esposa lhe presenteia, a sua típica faceta vilânica emerge. Além de repudiar Marion, agora publicamente, ele fere não intencionalmente o filho, durante uma caçada, e é responsável por destruir moralmente o pai da esposa – o qual procura na justiça os direitos da filha –, o que o leva à morte. 

Cameron acaba por ser exemplarmente punido segundo a moral do melodrama, e de forma altissonante. Morre enquanto luta, no fundo do mar – enquanto procura encontrar e destruir o contrato de casamento depositado num baú no navio naufragado –, com Alec McClintock (Ralph Graves), o mocinho da história. Aliás, se falta verossimilhança a tal cena na economia dramática, sobra-lhe artesania técnica: foi filmada por Ernest Williamson, o mago das imagens subaquáticas do período, a quem Pordenone dedicou, no ano passado, um programa de tirar o fôlego (que comentei aqui). 

Assim, Marion, típica heroína melodramática, consegue, num só tempo, o reconhecimento social demandado e a ruptura com o nefasto marido para se casar com Alec, que a requesta durante o drama. Como se vê, John Gilbert desempenha apenas o segundo papel masculino da história. Também apaixonado pela mocinha, cabe a ele rodar o mundo em busca do capitão de navio que a casara. Baleado quando o encontra, acaba por morrer apenas depois de dar a bênção aos canhestros pombinhos. 

Malgrado o filme tenha apuro técnico, e tenha chegado aos nossos dias uma versão que se aproveita com qualidade das potencialidades do uso das cores, exemplarmente restaurada, a trama padece, além da inverossimilhança, do subaproveitamento do personagem de Alec McClintock - protagonista inesperado, já que quem rouba a cena é o deslumbrante Gilbert, demonstrando cabalmente a estrela em que logo se transformaria.

domingo, 27 de outubro de 2024

Giornate del Cinema Muto de Pordenone 2024: parte 5

Song (1928)

Dois programas desta Giornate foram dedicados a personalidades, Anna May Wong e Ben Carré. 
O primeiro, na lógica de análise crítica dos estereótipos construídos pelo cinema, procurou jogar luz na atriz norte-americana de ascendência chinesa Anna May Wong. A exemplo dos já mencionados mexicanos, coube aos orientais e seus descendentes uma leitura exotizante, esvaziando-se as suas especificidades em prol de uma visada que procurava classificar tudo a partir da superficialidade. 
Um conjunto de filmes, a apresentação da palestra “Anna May Wong: Her Transcontinental Career”, ao longo do Collegium, e o lançamento do livro To Be an Actress. Labor and Performance in Anna May Wong’s Cross-Media World, de Yiman Wang, procuraram caminhar na contracorrente disso, mergulhando numa análise vertical da atriz a quem coube papéis de amantes de marginais orientais, em filmes nos quais o Oriente era reinventado ao gosto ianque. 
Yiman Wang comentou, durante a apresentação do seu livro, o esforço da atriz de se descolar da máscara que lhe pregavam, impondo-se como individualidade, para além do esforço da indústria de colocá-la num balaio segundo o qual a origem determinaria o caráter. 
Efetivamente, a profundidade que a atriz conferia à interpretação das personagens que lhe cabiam, quando ela tinha espaço para tal, superava os enredos inanes. Isso acontece menos em “Driven from Home” (James Young, 1927), em que ela faz uma ponta, e mais em “Song” (Richard Eichberg, 1928), que ela protagoniza. 
A primeira obra oscila entre a comédia leve e o dramalhão. É a fábula da mocinha rica que decide se casar com um jovem honesto e pobre, a contragosto do pai, que lhe vira as costas. A sua mãe adoece gravemente e a governanta, que cobiça o posto de senhora da casa, faz de tudo para afastar mãe e filha, procurando apressar a partida daquela. O núcleo chinês entra nesta história heterogênea para conferir a ela um caráter aventuresco. O jovem casal, comemorando o emprego que o moço conseguira, vai jantar num restaurante em Chinatown, onde conhece o proprietário oriental mafioso e a companheira dele, interpretada por Anna May Wong. O homem sequestrará a moça, quando ela retorna para aceitar o emprego que ele lhe oferece, cabendo a Wong salvá-la. A ojeriza da mocinha “americana” ao ver o quimono que deveria usar para se apresentar, e a sua recusa em vesti-lo, denotam o preconceito. 
Já “Song” é um filme dilacerante, devido sobretudo ao trabalho matizado de Wong. O filme cria uma dicotomia entre o ambiente portuário, voltado à estiva, e os clubes noturnos de alto e baixo estamento. Song conhece à beira-mar o homem a quem ela dedicará a vida de forma abnegada. Ele é um artista circense, atirador de facas, e ela se tornará a sua parceira. O filme é superior pelo modo como ele constrói o encontro do casal, anunciando a tensão que sustentará o enredo: este personagem obscuro a colocará contra a parede, e o que a princípio parece ao espectador o preâmbulo de um ato de violência acabará por se tornar uma exibição artística. Ambos fazem sucesso, e a devoção dela a ele cresce a olhos vistos. 
Ele se apaixona por uma artista imoral, graças à qual fica literalmente cego. Song se humilha para conseguir junto a ela o dinheiro da cirurgia que o curaria. Transforma-se numa dançarina de sucesso, na boate pra-lá-de-exotizante tocada por outro sujeito equívoco oriental, ao mesmo tempo em que finge ser a outra para que o homem não se sinta abandonado. A visada etnocêntrica do filme se soma ao machismo. Song é coisificada por ser oriental e mulher. 
O desenlace deixa patente essa visada torta, ao voltar uma visada benevolente ao jogador de facas, mesmo sendo ele o responsável por matá-la: ela se fere numa de suas apresentações, ao ouvir a voz dele e desconcentrar-se; ele, ao invés de levá-la ao hospital, leva-a para a casa, e cultua o seu corpo moribundo, num final pseudo-romantizante que apenas reafirma preconceitos. 
O programa voltado ao diretor de arte Ben Carré apresenta uma interessante retrospectiva do cinema francês entre os anos de 1910 e 1920. Filmes como “Aux lions les chrétiens” (1911) e “La Mort de Mozart” (1909) fazem parte do rol dos “filmes de arte” rodados pela Pathé quando a França era centro do cinema mundial. As cenas flertam claramente com o âmbito teatral – arte na qual aquele cinema se apoia para conferir relevância a si –, o gestual bebe da pantomima, e a temática é elevada: a passagem bíblica do cristão que vence a fera em meio à perseguição religiosa do império romano, no primeiro caso; e os momentos derradeiros de Mozart, no segundo. 
Outros elementos caros ao cinema deste período podem ainda ser observados. No primeiro caso, o cuidado na colorização da película, uma atividade, então, artesanal. No segundo, a exploração do âmbito sonoro. Nos seus estertores, Mozart pede a um discípulo que toque os trechos mais significativos de sua obra. Num filme-dentro-do-filme, alcançado graças à dupla-exposição, as cenas das obras em questão aparecem – enquanto o trio responsável pelo acompanhamento musical do filme em Pordenone apresentava arranjos musicais desses trechos, à maneira como se fazia nos anos de 1900-1910. Compassos do “Réquiem” mozartiano soam nos estertores do filme, enquanto o artista os compõe, pouco antes de expirar. 
No que toca às produções rodadas um pouco posteriormente, este programa apresentou também alguns filmes de qualidade acima da média, considerando a cinematografia do período, a exemplo de “Trilby” (1915) e de
“The Blue Bird” (1918), ambos dirigidos pelo dotado Maurice Tourneur, obras em que, para além da qualidade da mise-en-scène, pode-se observar a competente direção de fotografia de Carré. 
Os filmes tratam de duas fábulas. A primeira diz respeito à jovem comezinha que é transformada numa diva graças ao toque mágico de Pigmalião – do desenho dela se apropriaria Bernard Shaw para escrever a peça teatral Pigmalião, posteriormente adaptada para o cinema e para o âmbito do teatro musical, onde tornou-se o célebre “My Fair Lady”. O filme constrói de forma bem-sucedida o fascínio recíproco entre Trilby e Pigmalião, e os esforços vãos do apaixonado da mocinha para retirá-la do feitiço. De nada adianta: uma vez morto Pigmalião, é o seu retrato que adquirirá caráter mágico, enfeitiçando por uma última vez a mocinha, que morre para se tornar lenda. 
“The Blue Bird”, enfim, baseia-se na obra homônima do escritor simbolista Maurice Maeterlinck. Centraliza-se em duas crianças, casal de irmãos que roda o mundo em busca do pássaro azul, a ave da felicidade, apenas para encontrá-lo em sua casa. Embora um tanto moralizante, a obra é comovente. Auxiliados pela velha vizinha, transformada em fada benfazeja, conduzindo-os para uma aventura física que se torna uma viagem dentro de si mesmos. A chegada da dupla no reino dos mortos, onde eles jantarão com os avós que partiram e dos quais já estavam se esquecendo, e encontrarão os inúmeros irmãozinhos mortos, é de arrancar lágrimas das pedras. Na apresentação da obra em Pordenone, essa característica foi ressaltada pelo acompanhamento musical do pianista John Sweeney, pontuado pelas intervenções precisas da harpista Elizabeth-Jane Baldry. De volta em casa, o passarinho doméstico que, na verdade, era o pássaro da felicidade, passará de mão em mão até ganhar a liberdade, gesto simbólico.