terça-feira, 20 de dezembro de 2016

“Magal e os formigas” (2016)

As férias costumam trazer consigo safras de filmes pipoca de qualidade variável. Exemplo dos bons é este “Magal e os formigas”, dirigido por Newton Cannito e Michael Ruman, uma despretensiosa comédia dramática com elenco afinado e sopro nostálgico. 
Conta-se a história de João, sujeito casmurro morador de um arrabalde paulistano. Aposentado, luta para complementar a renda comercializando ferro-velho. No entanto, o dinheiro que lhe entra pela porta sai pela janela, já que ele é viciado em loteria – nem as suas mirabolantes fórmulas matemáticas fazem com que ele consiga capitalizar algo do que “investe” no jogo. 
Sua vida começa a mudar quando surge nela um insólito santo protetor: Sidney Magal. Ou melhor, um duplo de Sidney Magal. O latin lover de outrora, amado com devoção pela filha Sandra, mas repudiado pelo venerável senhor porque representava um – para ele – execrável far niente, passa a se materializar diante de si e lhe ensinar que a vida vai além da labuta incessante da formiga visando ao acúmulo material. 
A trama inverte a fábula de La Fontaine, que estabelece uma dicotomia estrita entre a cigarra folgazã, que passa o verão a cantar e deixa de lado o acúmulo de alimentos que a nutririam no inverno, e a formiga obreira, que vive exclusivamente para o trabalho e bate a porta à cara da oponente quando ela surge faminta diante de si. 
“Magal e as formigas” defende que o trabalho deve se aliar à fruição da vida – coisa que o discurso dominante está assustadoramente execrando ultimamente, ao defender o trabalho como salvação (e, portanto, fomentar as jornadas cada vez mais longas e mal remuneradas), e considerar a cultura desperdício de dinheiro. 
Se nossos sonhos são a realização de nossos desejos mais recônditos, João recebe Magal porque desde sempre tinha uma cigarra a cantar dentro de si, apenas silenciada para que ele se acomodasse ao discurso corrente. 
O filme consegue um rendimento muito bom, ao ler pela chave cômica a memória afetiva do Brasil, que no seio da repressão dos anos 70-80 fez Sidney Magal, Elvis tupiniquim, ascender como mito – a dimensão erótica do cantor exacerbava um desejo da liberdade perdida e ansiada. Sandra é um exemplar temporão das tietes que dependuravam, nas paredes dos quartos, fotografias de corpo inteiro do cantor (minha mãe que o diga...). 
Nos anos 2000, Magal foi ressuscitado pela mídia numa dimensão caricatural que limava a sua inclinação libertária. O filme vai além disso, sublinhando a dimensão brega do artista sem deixar de lado a sua importância simbólica. Consegue isso abaixando o tom do elenco, coisa desusada na comédia padrão contemporânea, e construindo o humor a partir dos contrapontos. 
Exemplo claro disso é a personagem de João (Norival Rizzo), espelho invertido de Magal, em seu esforço desajeitado para se tornar um sósia dele, com o objetivo de ajudar o filho a pagar uma dívida. Sua esposa Mary (Imara Reis) é um exemplar verossímil das senhorinhas pudicas do interior, assim como é verossímil a sua ascensão à esposa de ídolo latino substituto que se torna o seu esposo; e a filha Sandra (Mel Lisboa), que vive por uma década o desgosto de ter sido abandonada no altar – aliás, é de seus enfeites temáticos de casamento que brota o efusivo Magal, a personagem-tema da festa malograda. 
A ascensão do velhinho casmurro a ídolo ocorrerá no inferninho do bairro, para deleite da mulher, dos amigos e do público, numa sequência que revela modelarmente a química do elenco – principal e secundário (do qual faz parte, por exemplo, Zécarlos Machado, Riba Carlovich e Ester Laccava).
O “sucesso” conquistado é sobretudo de João sobre si mesmo, do otimismo sobre o ceticismo. Um esforço que nos devemos, na dobra desse ano difícil, daí o meu convite ao público (especialmente aos “biliosos”, como diria Machado de Assis”) que vejam o filme.

quarta-feira, 14 de dezembro de 2016

“Elle” (2016)

Paul Verhoeven rodou um dos melhores – e mais polêmicos – thrillers dos últimos tempos: “Elle”. A figura a quem o título alude é Michèle Leblanc (Isabelle Huppert), executiva bem-sucedida, arrogante, inquebrantável, maneater. Antes, no entanto, de o espectador a ver desfilar qualquer desses traços de sua personalidade assertiva, ele é defrontado com uma cena de estupro de que ela é a vítima – cena mais lancinante na medida em que acontece longe das vistas do público, tolhido diante dos acontecimentos em off que ele apenas escuta, impossibilitado de qualquer controle visual sobre a cena. 
A trama opta, desde esta cena inicial, a desenhar a protagonista a partir da ambiguidade. A violência sofrida não a faz desviar-se um milímetro de sua vida de mulher controladora: findo o ato, Michèle recolhe as louças quebradas pelo invasor, banha-se, pede o jantar, recebe o filho que acabara de constituir família, discute com ele minúcias do contrato de aluguel que ela endossará, acompanha-o na visitação do imóvel a ser alugado. No outro dia, ei-la ao telefone, agendando a troca das fechaduras da casa, e no trabalho, a encabeçar com punho firme a equipe responsável pela criação de um game cuja realidade virtual dialoga demais com aquela que ela acabara de vivenciar. 
“Elle” desde o princípio é de tirar o fôlego, por desviar-se do esquema padrão do filme de suspense, ao se construir pelo acúmulo (ou choque) de acontecimentos em detrimento da opção pela narrativa clássica, baseada no esmiuçamento de causas e efeitos em direção a um desfecho que os esgote. 
Há no filme um frenesi que recupera aquele fornecido por realidades virtuais como aquela que Michèle e a sua equipe construíam, nas quais o jogador sofre (e deleita-se por sofrer) por substituição a violência de que a sua personagem é avatar, sem que sejam questionados os porquês disso – quem sabe se por quê a violência (e o gozo que ela encerra no observador) seja o ponto de chegada. 
O filme é provocador porque bota em questionamento uma característica incontornável ao cinema, que é o voyeurismo. Por meio da estratégia da myse en abyme, Verhoeven coloca sua protagonista a assistir a personagem de seu game ser violada, do mesmo modo como nos coloca a observar Michèle ser violada. 
A dimensão seguinte desse olhar, que está fora de campo no filme, mas é inferida, é a violência latente na sociedade. Refiro-me aqui especificamente ao estupro, pelo seu caráter ainda de tabu, pela atribuição – não raras vezes – à vítima da culpa do ato. Mas não só a ele. Outro índice incontornável de violência presente no filme, estarrecedor pela sua dimensão macro e seu caráter incompreensível: a carnificina cometida, décadas antes, pelo pai da protagonista – com a suposta colaboração dela. 
A dimensão voyeurista ocupa primeiro plano em “Elle”, com um viés, a meu ver, profundamente crítico. O cinema propôs historicamente – metadiscursivamente, inclusive – um “olhar para o buraco da fechadura”, para a fruição furtiva da vida privada de alguém. Atento à pulsão escópica - a libido atrelada ao ato de ver -, deixou intencionalmente de lado a dimensão patológica dessa observação. Os happy endings das tramas, a punição dos vilões e a exaltação das vítimas, a resolução dos conflitos, o caráter edificante das histórias purificam o que há de mórbido nessa fruição da intimidade alheia. 
“Elle” inverte os ponteiros. Michèle é de saída esboçada como a devoradora de homens a quem nem mesmo a mais vil das violências abala. O modo calculista com que trata seus pais, seu filho e seus conhecidos – não titubeando antes de trair a melhor amiga com o esposo dela – a coloca entre os vilões. 
O vizinho que recém se mudara para o bairro – bonito e religioso – parece uma vítima à sua altura. O jogo de sedução que ela enceta na mesa de jantar, após a oração que antecede a ceia natalina, tendo ao pé de si não só a sua família toda como a mulher dele, seria suficiente para que nós a atirássemos no fosso das destruidoras de lares. No entanto, é o repertório romântico que promove a trilha sonora para o encontro de ambos, endossando-o, quando Patrick (Laurent Lafitte) – é este o nome do vizinho – vai ajudá-la a cerrar as janelas da casa dela devido à tempestade que se anunciava, e ambos quase terminam na cama. No entanto, é ele o estuprador – o público descobrirá dias depois, tão surpreso quanto Michèle, durante uma nova violação. 
Neste olhar crítico à história da cinematografia, proposto por Paul Verhoeven, sobram-nos perguntas. Questiona-se ali, com justeza, o poder da câmera de revelar a realidade. Sua câmera dá a ver, mas não fornece coordenadas sólidas para a compreensão do que é visto. O filme se encerra com mais interrogações que resoluções. Não se sabe por que o pai – outro religioso convicto – cometera trinta e nove anos atrás o crime insensato, ou por que envolvera nele a filha, a quem tornara responsável por eliminar os despojos da violência. Tampouco por que, no flashback subjetivo, no rosto da Michèle menina parece passar um lampejo de satisfação. 
Sobretudo – e isso é especialmente polêmico – não se compreende a natureza da relação que ela, dali por diante, estabelece com o vizinho agressor, que mistura asco e prazer em doses impossíveis de se discernir, já que Huppert competentemente amolda a sua personagem pelo signo da dubiedade. 
Isto, somando-se ao crime horrendo praticado pelo pai – cujo rosto de vovozinho de sessão da tarde a câmera um par de vezes apanha – e, por fim, a reação da esposa do violador, quando seus crimes são tornados públicos, mergulha a obra em zonas de penumbra que são, ao fim e ao cabo, aquelas da própria sociedade. Ao exacerbar e desconstruir convenções, o filme coloca o público a questionar-se sobre a conivência que ele historicamente estabeleceu com a imagem cinematográfica, cobrando-lhe responsabilidade pelo seu outorgado voyeurismo.