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quinta-feira, 31 de julho de 2014

"Tudo o que o céu permite" (1955): o mundo edulcorado da burguesia em xeque

Mais um post com o intuito de revelar a Hollywood desmistificadora de estereótipos socialmente estabelecidos, na linhagem da antepenúltima entrada do blog. O gênero em questão é, desta vez, o melodrama, historicamente acusado de haver colaborado na manutenção de mitos cuja voga é duradoura: a coisificação da mulher, a cisão do mundo na dicotomia bem/mal, a visada cristã à existência (crença numa “providência divina” que pune os vilães e eleva os heróis, brindando-os com Happy Endings). 
Incorporado pelo cinema, o gênero teve seu papel revisado. Se historicamente o melodrama serviu mais à invenção (e imposição ao público) de uma sociedade ideal que à sua apresentação realista, nas telas ele gradualmente viu incrementar-se seu papel de crítica social. Objeto paradigmático desse esforço é a filmografia rodada por Douglas Sirk nos anos de 1950, da qual exemplo bem acabado é a obra “Tudo o que o céu permite” (“All that heaven allows”, 1955). 
Em pauta, a burguesia norte-americana: rosada, endinheirada, polida no mais alto grau, no entanto, hipócrita e mesquinha. Sirk não economiza nas tintas. Literalmente. Aproveita-se dos arroubos cromáticos do Technicolor para tingir o objeto de seu olhar. Dá de ombros ao realismo e inclina-se à estilização, sublinhando, assim, a crítica social – Vincente Minnelli, outro exímio manejador das cores, atingiria objetivo muito semelhante um ano mais tarde, em “Chá e Simpatia”. Aliás, a tomada em paralelo desses dois filmes, além de acrescentar à análise, desvela a sofisticação analítica com que a capital do cinema poderia se debruçar aos seus temas. 
A cidadezinha americana criada por Sirk tem muito do campus universitário que é tema do filme de Minnelli. Ambas, presas a estereótipos tão sólidos quanto falsos – falsidade que os diretores não se furtam a explicitar, largamente. No segundo filme, Minnelli casa aquela flor delicada que é Deborah Kerr com um troglodita. Treinador esportivo de uma universidade para meninos, o homem é, psicologicamente, a extensão do tipo que fisicamente retrata. Um grosseirão insensível, fomenta nos alunos o espírito de competição e a manutenção de preconceitos. 
Pega para cristo um garoto muito delicado – naturalmente um homossexual, na visada rasteira da sociedade de então. Transforma-o na “garotinha” da turma, enlouquecendo-o paulatinamente; leva-o, mesmo, à tentativa de suicídio – precipício do qual o garoto é salvo pela personagem de Kerr, que, tão carente de afeto quanto ele, deita-se consigo para prová-lo um homem. Os preconceitos nunca findam, são sempre substituídos por outros, já que a sociedade como um todo é putrefata: o menino sensível descobre-se “homem”, mas a mulher nunca consegue se limpar da mancha que era a perda de sua “honra” – mesmo que a causa tenha sido honorável e que seu esposo nunca venha a sabê-lo. O filme critica a sociedade de aparências, mas é a moral melodramática, já tão enraizada na sociedade, que dá fecho à história – a mulher que pecara contra o lar perde-se para sempre, embora salve o garoto. 
Minnelli, como Sirk, usa o melodrama de um mesmo modo ambivalente: carrega nas tintas, avivando as fraturas da sociedade, mas, ao se apoiar tão estritamente no gênero, acaba por comprar seus pressupostos estruturais. Precisamos ter em vista que a Hollywood da época era regida por uma severa censura, daí a necessidade de se respeitarem certas imposições morais. Tais filmes precisam ser submetidos a uma análise fina; a crítica que fomentam repousa nos seus interstícios. “All that Hollywood allows” (“Tudo o que Hollywood permite”), paráfrase do título do filme de Sirk sobre o qual falo, também batiza um livro de larga envergadura crítica, o qual analisa os meandros dos melodramas hollywoodianos no que toca ao modo como se trabalha, neles, a questão dos gêneros (masculino/feminino); especificamente, como o retrato que esses filmes tecem dos gêneros por vezes fá-los (faz os gêneros) escapar de sua suposta inerência. Recomendo-o. 
Voltemos a Sirk. “Tudo o que o céu permite” narra a história de amor de Cary Scott (Jane Wyman) e Ron Kirby (Rock Hudson), casal separado não apenas pela posição social como pela idade: ela é uma cinquentona viúva de classe média-alta, com um par de filhos casadoiros; ele, seu jardineiro, homem bonito, na flor da idade e solteiro. Nenhum liame o prende: ele trabalha mais por gosto que por precisão, quando e onde quer; vive num pequeno quarto, contíguo à estufa onde faz germinar suas flores. Já ela, todos os liames a prendem: a família, as obrigações da alta sociedade à qual ela pertence, a sua casa senhorial, as amigas vazias... Pinta-se a dicotomia estrita, como já se vê. O casal construirá um mundo no intermédio, respeitando, bem entendido, “tudo o que o céu permite” – moral cristã inserta logo no título. Não há ruptura total, ou senão não haveria filme. 
No entanto, a crítica se impõe. Sirk fala abertamente sobre sexo, assunto realizado sob muitas cobertas nos filmes do período. Quem levanta o tema é a filha mais nova de Cary, garota que tem Freud na ponta da língua, mas se revela uma puritana de marca maior, no que toca à aceitação da sexualidade da mãe. A senhora naturalmente deveria se acomodar com um homem mais velho, um companheiro (e não um amante), alguém de sua estirpe social, que ratificasse o lugar ocupado pela família naquela sociedade. O irmão segue-lhe de perto, presenteando a mãe com um aparelho de televisão, que acompanharia seus momentos solitários. Nem um, nem outro aceitam que a mãe desça do pedestal em que a sociedade a pusera, e se entregue ao desejo e ao amor romântico, nascido entre ela e um indivíduo muito diferente de si. 
Para caracterizar este novo tipo de mulher, nascida nos albores da revolução sexual, o diretor pende do melodrama à fábula. O homem é idealizado ao extremo: másculo, alto, tão belo de corpo e alma quanto as flores que cultiva. Cervos pastam alegremente em seu jardim; o fogo acolhedor crepita em sua lareira. Naturalmente não se discute como um simples jardineiro encontrou recursos para construir tão cintilante cenário. Por outro lado, na sociedade citadina corvejam ignominiosos abutres, com sede de manchar a reputação de Cary: salva por um homem cuja rusticidade é apenas pretensa, pois mais parece um cavaleiro andante. 
Assim marcha a cinematografia de Sirk, entre a manutenção de uns estereótipos e – felizmente –, a recusa heroica de outros; nesta tentativa de reproduzir em microcosmo o mundo, edulcorando-o para melhor exacerbar suas chagas.


terça-feira, 22 de janeiro de 2013

Leslie Caron no Quartier Latin (8/1/2013)


A mostra "Paris vu par Hollywood", que encerrou carreira no Hôtel de Ville em meados do mês passado, ainda rende frutos. Diversos cinemas do Quartier Latin continuam a reverberar as clássicas canções norte-americanas que embalam gerações há 60, 70 anos, construindo no escuro da sala de projeção uma Paris afável, brilhante e musical. Impossível, depois de sermos embriagados por uma das stravaganzas da MGM, as ruas de Paris não passarem a soar o leitmotiv que serve de combustível aos passos do pintor Jerry de “An American in Paris”, ou o tema romântico que embala o idílio dele e de sua Lise às margens do Sena – grandes Gershwins, parisianíssimos americanos –, ou o “Bonjour Paris” com que Audrey, Freddy e Kay cantam os pontos turísticos da cidade. A mágica da projeção faz com que, caminhando por Paris, reencontremos a Paris de estúdio inventada por Hollywood. 
"An American in Paris" (1951)
A Rue Champolion, ruela do Quartier que abriga a homenagem, mal parece cruzar a movimentada Rue des Écoles e estar a dois passos dos concorridos Boulevards Saint Germain e Saint Michel. Apertada, a ponto de a fila de cinéfilos que a tomam antes das sessões impedirem a passagem dos carros por ela, parece mais é saída de um dos storyboards que engendraram o magnífico “An American in Paris” – encontro cabal entre ficção e realidade. Foi num desses cinemas da Champolion, a "Filmotheque du Quartier Latin", que Leslie Caron deu o ar da graça no último dia 8, numa séance (pra lá de) especial do filme em questão. 

Rue Champolion
Paris-cenário. Os leitores podem imaginar o que é para uma apaixonada pelo cinema clássico ver Mme Caron en personne!? Deixemos de lado, então, os desnecessários adjetivos e detenhamo-nos no ponto culminante, sua apresentação de “An American in Paris” (Un Americain à Paris/ Sinfonia de Paris, 1951). Leslie – licença agora para a intimidade tipicamente americana, perfeitamente cabível para o assunto em questão – é de uma lepidez que de modo algum acusa seus 81 anos. Longilínea, apesar do seu pouco menos de 1,60 m., elegante, desdobrou o charme físico em uma hora de um bem-humorado e profundo rememorar de sua carreira americana, focado neste filme que a lançou no cinema e no mercado mundial. 

Narrou os bastidores de seu encontro com o Gene Kelly: o primeiro desencontro (já que ela, adolescente primeira-bailarina de um teatro parisiense, fora embora apressada tão logo terminara seu espetáculo visto por Gene, “como toda boa moça da época”); o posterior encontro, já contratada pela MGM, dentro da qual ela descobriria que, atriz iniciante e completa desconhecedora do inglês, faria nos Estados Unidos “apenas” um dos papéis principais daquele que era vendido como o “maior musical de todos os tempos”. Uma vez nos EUA, conta a atriz que se iniciou no curso de inglês pelas mãos de Shakespeare, lido, relido e memorizado. 
Escolha suis generis, se considerarmos o gênero popular em que ela seria iniciada. Escolha coerente, no entanto, constatamos ao olharmos a carreira de Leslie Caron em retrospectiva: além de graciosa parceira de monstros sagrados da dança como Gene Kelly e Fred Astaire, a atriz acumula trabalhos dramáticos e cômicos (dentre os quais eu ressalto – porque adoro – sua sátira de Alla Nazimova em "Valentino", 1977, que pode ser visto aqui). 
Em sua fala, Leslie esquadrinhou os bastidores da produção de “An American in Paris”: as longas horas de trabalho de segunda a sábado; sua relação com Oscar Levant, que ela afirma ter sido desde o princípio amistosas, (apesar do que sabemos sobre o humor do ator/pianista); os encontros do elenco aos domingos, onde por diversão rodavam filmes tétricos (dos quais o hipocondríaco-pessimista Levant se recusava a participar); a timidez de Vincente Minnelli e a direção segura que Gene Kelly dava aos seus diálogos de aprendiz de inglês. 
Estendeu-se sobre a relevância do papel de Kelly para o resultado final da produção. Coreógrafo, ele era o responsável igualmente por posicionar a câmera nos números musicais. 

Como Alla Nazimova em "Valentino" (1977)
Abertas as perguntas, Leslie Caron respondeu sem reservas e em detalhes a tudo o que lhe perguntaram. Falou com carinho sobre “Gigi” (1958), feito quando ela “finalmente sabia representar”, uma vez que nessa altura já havia tomado anos de cursos de atuação – disse ter se sentido tola ao ver-se Lise, na tela, pela primeira vez, a modesta! Lembrou “Valentino”, “que muitos de vocês não devem conhecer”. E neste rebaixamento de tom menos próprio à diva que ela é que às mocinhas como Lise e Gigi que ela foi (e para todo o sempre será) nas telas, brincou sobre o sucesso que anda fazendo no Quartier Latin (o "Reflet Medicis", também na Rue Champolion, exibe uma versão restaurada de Gigi): “Ah, mas isso não vai durar muito.” 
Neste sentido, a cereja do bolo foi pra mim sua resposta a um questionamento sobre o star system. “Hollywood, de certa forma, desdobrou nas telas a personalidade de seus artistas.” Isso, dito com tanta sinceridade por ela no contexto que acabei de narrar, bota-me no mínimo a repensar o papel da capital do cinema na construção dos mitos das telas. Porque não considerar que a natureza tenha, em alguns casos, se sobreposto às pinceladas da Max Factor e às canetadas dos departamentos de marketing dos estúdios? Parece ter sido esse o caso de Leslie Caron. 


Na ocasião do encontro, Mme Caron assinou sua biografia “Une Française à Hollywood”, versão francesa do original em inglês (quem quiser pode encontrá-la aqui).

"Gigi" (1958)

domingo, 14 de outubro de 2012

“Paris vu par Hollywood” no Hôtel de Ville e “Sabrina” (1954)


O Hôtel de Ville, bela construção a dois passos da Île de la Cité, em Paris, recebe até meados de dezembro a exposição Paris vue par Hollywood, memento num só tempo nostálgico e crítico da forma como a produção cinematográfica hollywoodiana apreendeu a cidade-luz. 
Hôtel de Ville
Na entrada, a linha do tempo dá o tom da mostra: por ela desfilará cem anos de cinema, até “A invenção de Hugo Cabret” (2011), recentíssima obra prima de Martin Scorsese em que dá o ar da graça a Paris do Méliès de 1890-1910. O corredor coberto das recordações do tempo em que o cinema dava os primeiros passos é preenchido com o som que vem do subsolo, onde um enorme telão apresenta excertos de obras produzidas quando a arte já amadurecera. 
An American in Paris
Antes de chegar ao subsolo, o público curioso pode esgueirar-se em direção às pilastras que sustentam o edifício e juntar a imagem ao som. Lá está a Garbo de “Ninotchka” (1939) a replicar, num hilário pragmatismo, a cantada do parisiense típico Leon: “Só quero saber qual a distância mais curta até a Torre Eiffel. Você acha mesmo que há a necessidade de flertar?”. Gene Kelly arrebata Leslie Caron nas margens do Sena, ao som de “Love is here to stay”, em "Sinfonia de Paris" (An American in Paris, 1951); o maravilhoso Gershwin sabe dar voz à Paris como ninguém. E Audrey, Freddy e Kay Thompson entoam um “Bonjour Paris” enquanto saltitam separados pelos pontos turísticos da cidade, encontrando-se, claro, no topo da Torre Eiffel (Cinderela em Paris/Funny Face, 1957). 
Funny Face
É no subsolo que estão as maiores preciosidades da mostra: peças do figurino usado por Greta Garbo em “Camille” (1936) e por Audrey Hepburn em "Amor na Tarde" (1957), um prato cheio para os fetichistas; fotografias de divulgação das fitas, trechos de roteiros, desenhos de produção de filmes como “An American in Paris” e “Moulin Rouge” (1952). 
Hollywood constrói Paris como a cidade do prazer e da liberdade. Paris vue par Hollywood argumenta que a cidade tornou-se, para a cinematografia norte-americana, o ponto de fuga dos cerceamentos impostos pelo Hays Code. Toda a liberalidade proibida nos filmes que tematizavam os EUA foi transferida para Paris, tornada, neste sentido, retrato enviesado de uma América do Norte ideal. 
The Merry Widow
Artífice que soube construir cabalmente uma Paris americana foi Ernst Lubitsch, que além de “Ninotchka” dirigiu pérolas como “The Love Parade” (1929) e “The Merry Widow” (1934). Nos dois últimos figura Maurice Chevalier, ator francês que, depois de décadas de carreira no vaudeville parisiense, foi escolhido pelo cinema hollywoodiano para personificar o que seria o francês típico: galanteador cujo cinismo caminhava de mãos dadas ao romantismo. Não por acaso, numa de suas últimas criações ele surge como mentor de Louis Jordain noutra típica película de Hollywood sobre Paris: “Gigi” (1958). 
O diretor de "Gigi", Vincente Minnelli, foi outro apaixonado pela cidade. É de sua lavra “An American in Paris”, filme que, segundo a mostra, é a versão mais bem acabada do modo como a “América” viu a cidade. A Hollywood clássica deixou de lado Paris como realidade empírica para se dedicar a uma criação poética da cidade. Representação mais arrematada do intuito é esta obra em que Minnelli e o ator-coreógrafo Gene Kelly reinterpretam a cidade a partir das telas dos artistas que a representaram: Monet, Renoir... A obra prima de Minnelli e Gene sintetiza o esforço americano das primeiras cinco décadas do século: Paris torna-se a tela em que um mundo cor-de-rosa se projeta. 

Audrey em "Funny Face"

"Sabrina" (1954) 
A mostra continua no cinema Le Champo. Só nesta semana veiculam-se lá outros dois filmes com Audrey Hepburn, atriz cuja elegância cedo a identificou à cidade: “Charada” (1964) e “Sabrina” (1954). 
Vi o último, ontem, pela décima vez; a primeira em tela cheia. E ele nunca me pareceu tão bom. Gostava mais da versão de 1994, o filme que mais vi na vida... Talvez porque a versão com Julia Ormond e Harrison Ford reforce a imagem de romantismo da cidade, enquanto que o filme de Wilder a chacoalha. E é isso que acho tão fascinante, agora. 
Sabrina é a jovenzinha sensaborona (bem, nem tanto; falamos de Miss Hepburn...) arrolada, no brilhante roteiro, no quadro de posses da família Larraby: eles tem funcionários pra cuidar da piscina coberta e descoberta, do aquário do peixinho George e dos barcos, bem  como um chofer importado da Inglaterra anos atrás, junto com um Rolls Royce e uma filha. Os medalhões americanos são ridicularizados com tremenda verve neste roteiro que também tem o dedo de Wilder, como não podia deixar de ser. Não só isso: a imagem paradigmática da Paris de Hollywood é questionada. 
Ao contrário do filme de 1994, em que a cidade torna-se locação importante, no filme de Wilder ela aparece em telões, é tipificada no mais alto grau: Sabrina viaja para Paris no intuito de aprender culinária (a sala de aula dá frente para a torre Eiffel, o professor é a caricatura do francês de bigode encerado e biquinho).  Escamoteado está o desejo da moça de esquecer David, o Larraby mais jovem, seu amor platônico desde a infância. Lá ela amadurece, torna-se a mulher cosmopolita que transpira elegância pelos poros – em outras palavras, torna-se Audrey Hepburn. Volta envergando um tailleur, o chapeuzinho da moda e trazendo na coleira o french poodle “David” – metáfora do encoleiramento a que ela submeterá o David real não muito tempo depois. 
No andar da ficção, a máscara da “Paris vista por Hollywood” é esgarçada. A jovem cosmopolita só tem uma casca de maturidade; é manipulada por Linus, o Larraby mais velho, workaholic e anti-romântico. É rejeitada pela família dele e vítima até mesmo do próprio pai. No fundo, Sabrina continua a desajeitada filhinha do chofer que, no início da película, quase bota a casa abaixo ao tentar o suicídio. Novos são apenas seu stupid hat e seu stupid dress, como ela não deixará de constatar. 
É óbvio que no final tudo se ajeita, com o trivial Happy Ending hollywoodiano. Mas o percurso é que é irresistível: com o cinismo de Wilder perpassando tudo, até a escolha do par romântico da jovem atriz – o envelhecido e casmurro Humprey Bogart, que nem embebido pela "La Vie en Rose" mais doce do mundo, entoada por Audrey, consegue que a gente o enxergue por detrás de lentes rosadas... 

Audrey e Humprey no set de gravação
Paris vue Par Hollywood: Hôtel de Ville, 18 set.-15 dez. Entrada gratuita.

terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

Cinebiografias de pintores: os clichês infalíveis e Van Gogh, o campeão de adaptações


por Chico Lopes


O cinema tem a sua tradição comercial de contar as vidas dos pintores, mas não faz filmes exatamente memoráveis sobre eles. Gauguin, Modigliani, Toulouse-Lautrec, Cézanne, Pollock, Picasso, Van Gogh, já tiveram suas cinebiografias, alguns até mais de uma. Um caso curioso envolve dois filmes sobre Gauguin – o pintor foi interpretado num filme dinamarquês por Donald Sutherland, “Um lobo atrás da porta” (1986), e décadas depois pelo seu filho, Kiefer Sutherland, em “Rumo ao paraíso” (2003). Pai e filho, por alguma razão, tiveram essa obsessão por Gauguin, mas nenhum dos dois filmes foi um grande sucesso. São apenas medianos.
Há não muitos anos, o sofrido e egocêntrico ao cubo Modigliani foi vivido por Andy Garcia em “Modigliani – a paixão de uma vida” (2004). Diz-se que o melhor filme a respeito deste gênio italiano é “Os amantes de Montparnasse” (1958), em que é interpretado pelo falecido e esquecido ator francês Gérard Philipe. E este filme não existe, infelizmente, em VHS ou DVD no Brasil, a menos que eu esteja muito enganado.
Sobre Toulouse-Lautrec, há o famoso “Moulin Rouge (1952), de John Huston, que é, infelizmente, dos mais frouxos filmes feitos pelo diretor, e não me consta que tenha saído no mercado brasileiro de DVDs. Já Jackson Pollock, mestre do expressionismo abstrato e da “action painting”, foi vivido em cinebiografia mais ou menos recente – “Pollock” (2000) - por Ed Harris, e com talento. O filme, no entanto, não tinha nada a oferecer senão uma transcrição meio canhestra da vida do pintor. E sua personalidade – a julgar pelo que foi mostrado – era tão turbulenta e egocêntrica que a gente sentia era compaixão da mulher que o amava, vivida pela atriz Márcia Gay Harden. Um dia ao lado de Pollock seria uma provação para qualquer ser humano razoável. Mas ela ficou lá, impávida, ao lado dele, por muito tempo.
Invariavelmente, os pintores no cinema não são criaturas muito simpáticas. A turbulência emocional e uma exigência irracional de atenção são suas marcas. Serão assim na vida real? Picasso comparece, na interpretação de Anthony Hopkins em “Amores de Picasso” (1996), como um sátiro irresponsável, deixando malucas as mulheres que o amam. Fica melhor, o grande Pablo, no documentário que Clouzot fez sobre ele em 1956 (O mistério de Picasso), quando simplesmente pinta em seu atelier para o espectador, fascinando-o pelo talento, com o torso nu e a expressão travessa com que engendrava seus magníficos touros, palhaços e mulheres. Ali, a aura de mulherengo cafajeste é exorcizada em favor da presença do pintor, vale não o homem, mas o artista, que é tudo que importa.
Modigliani é um conquistador irresponsável também, no filme em que é interpretado por Andy Garcia. Gauguin, já se sabe, mereceu até livro de Somerset Maugham (“Um gosto e seis vinténs”) por sua rebeldia contra a civilização, deixando mulher e filhos e a Europa toda pela incerteza e a aventura do Taiti, onde foi amado por nativas e delas adquiriu talvez a doença que o matou.

UM PROBLEMA PARA QUEM OS CERCA

Esses românticos e lunáticos senhores, com seus pincéis maravilhosos, são um problema danado para as pessoas que os cercam. Parecem tomados de tal maneira por sua arte que a necessidade de serem narcisistas até o osso os torna monstruosos, e, como são identicamente cativantes, amá-los é cair na fogueira, não há garantia de nada – eles só têm compromissos com suas visões interiores e um desligamento total dos valores convencionais. O curioso é que essa visão acabou ficando convencional também, ao menos do ponto de vista do cinema comercial ou dos best-sellers literários.
Na certa em razão dessa vulgarização, quem dispara na frente no número de adaptações de sua vida para o cinema é Vincent Van Gogh. Talvez por ser o mais paradigmático dos pintores, ao menos na visão cinematográfica. Ele é tudo isso – um problema para a família, um problema para os amigos, e, acima de tudo, um enorme problema para si mesmo. O imaginário popular o consagrou como o louco que cortou a própria orelha e certos fatos de sua vida parecem importar mais do que sua própria pintura. Alçou-se à condição de lenda, com tudo quanto isso tem de grandioso e equivocado.
Os filmes sobre ele são sempre os mais procurados, e há pelo menos três em VHS e DVDs, sendo o mais lembrado “Sonhos” (1990), de Kurosawa, onde é vivido por Martin Scorsese, no episódio do trigal com corvos. É só um episódio, mas a tecnologia permitiu que as imagens das telas mais queridas de Van Gogh comparecessem com a força impressionante que sempre tiveram. Os outros dois filmes são “Van Gogh” (1991), de Maurice Pialat, francês, e “Van Gogh – Vida e obra de um gênio” (1990), norte-americano, de Robert Altman. Não são muito bons, o primeiro pelo terrível vício francês de fazer filmes em que a emoção é descarnada pelos discursos, a secura desdramatizante, as racionalizações, o falatório, e o segundo por ser uma redução de uma minissérie realizada para a televisão holandesa. Nos filmes, o pintor é interpretado por Jacques Dutronc e Tim Roth, respectivamente.
Até há pouco tempo, porém, não existia em VHS ou DVD brasileiro o maior dos filmes sobre ele, SEDE DE VIVER, dirigido por Vincente Minnelli em 1956. Encontrei-o milagrosamente numa simples banca de revistas, a um preço razoável, e não pisquei para adquiri-lo, temendo que fosse mesmo um milagre fácil de se volatilizar. Traz Kirk Douglas no papel principal, e podem esquecer todos os outros Van Goghs: ele é definitivo, com a barba ruiva, a expressão atormentada e uma dignidade a toda prova.

Também o filme é o melhor de todos. Dirigido por Vincente Minnelli, cineasta de musicais clássicos e definitivos como “Agora seremos felizes” (1944) e “A roda da fortuna” (1953) e de dramas como “Assim estava escrito” (1952) e “Chá e simpatia” (1956), deu muito certo essa produção, e é o único Oscar da carreira de ator de Anthony Quinn – no papel de Gauguin, que, infelizmente, é curto, pois Quinn parece perfeito para encarná-lo e ele sim foi o Gauguin que os Sutherlands não conseguiram ser. Talvez por ficar pouco tempo em cena e ser só um episódio (embora crucial) na vida de Vincent.
É uma coincidência feliz que Vincent fosse dirigido por um Vincente, esse Minnelli que, quanto mais filmes dele se revê, mais se percebe que foi um dos gênios do cinema de Hollywood, infelizmente meio esquecido hoje em dia (o sobrenome só faz com que as pessoas se lembrem de que ele foi pai da cantora Liza).
Minnelli tinha paixão absoluta pela pintura de Van Gogh, e o filme reflete isso: nele, a cenografia é superior à de qualquer outra produção, as locações foram escolhidas com dedo de mestre e, de vez em quando, o filme simplesmente para para exibir telas e os lugares em que se basearam, provocando êxtases a partir do mais simples dos expedientes.
O que acontece de bom, nessa produção, é que Kirk Douglas é um Van Gogh contido, a julgar pelos padrões das cinebiografias de Hollywood que, exaltando os “grandes homens”, sempre tenderam para o meloso e o piegas. Já que a história dele é tão naturalmente tendente à ênfase e à hipérbole, Minnelli a conta com simplicidade, sem excluir a paixão. O cuidado que pôs na cor é um caso à parte: nunca se viu tamanha fidelidade à explosão cromática de Van Gogh em nenhum dos outros filmes. O filme é tão bom que o único pecado da produção é falhar no quesito trilha sonora: a música é de Miklos Rosza, que era compositor para épicos bíblicos e faroestes, tinha mão pesada e faz pensar demais na Hollywood tradicional. No resto, não há filme igual a esse, sobre o fou rou (o “ruivo louco”, como chamavam Vincent pelas ruas da Provença).
Quem leu o livro homônimo que deu origem a esse filme? É de Irving Stone, pouca gente se lembra, mas é ótimo, e foi um best-seller que fez muito pela divulgação da arte do holandês. Pois, é fielmente seguido. Mas, quem leu a comovente troca de cartas entre Van Gogh e seu irmão, Théo, e também o belíssimo “Suicidado pela sociedade”, de Antonin Artaud, encontrará razões de sobra para se deleitar com a produção.
É indispensável que os fãs de Van Gogh conheçam esse filme muito elevado e pouco concessivo, a despeito de sua aparente concessão às regras comerciais de Hollywood. É muito melhor que o filme de Pialat, e, devido a certo pedantismo, certos fãs de Pintura, arte em geral, acham sempre que os filmes europeus seriam mais refinados e cuidadosos em relação a essas coisas. Costumam ser, mas podem também ser áridos e presunçosos e, se franceses, particularmente chatos, discursivos e sem emoção.
Minnelli não tem medo de emoção alguma, e alguém que o tivesse não poderia filmar a vida de Van Gogh. No filme, discutindo com Gauguin, em cenas que levam ao drama conhecido, entende-se que foi um homem de intensidades, de uma grandeza emotiva que primeiro esmagou a ele mesmo, como se fosse literalmente canibalizado por seus grandes sóis vertiginosos. Tratar Van Gogh com dietas cartesianas é um total pecado. Artaud, chegando às glossolalias em seu texto sobre ele, compreendeu-o muito bem.
No filme, ele conversa com uma freira de um manicômio, que se deslumbra com uma pintura sua – esta traz a figura da Morte a ceifar em meio a um campo vibrantemente amarelo de trigo. “Como pode haver Morte em plena beleza, em plena luz?” – pergunta a freira, perplexa. Vincent, homem de mais sentir que falar, não consegue explicar. E o comovente é que é assim que ele morrerá: colhido pela morte, ardendo em sol e luz. Numa tragédia luminosa, torvelinho cósmico que o engolfa.

domingo, 30 de outubro de 2011

Era uma vez um tolo e uma vampira: desdobramentos da “Vampire” do poema de Rudyard Kipling nos filmes de 1915 a 1966

Vestindo unicamente uma túnica branca, a mulher reclina-se sobre o homem que jaz em seu leito de morte. Ela é uma vampira. Ele, sua última vítima. A pintura do inglês Phillip Burne-Jones causou sensação ao ser exposta em público pela primeira vez, em 1897. Tanto que, inspirado por ela, Rudyard Kipling compôs o poema “The Vampire”. Nos versos, um eu-lírico aparentemente perturbado estende-se longamente sobre o perigo representado por aquela mulher misteriosa, perto da qual os homens não passavam de tolos.

A fool there was and he made his prayer
(Even as you and I!)
To a rag and a bone and a hank of hair
(We called her the woman who did not care),
But the fool he called her his lady fair
(Even as you and I!)

Burne-Jones e Kipling não tiraram o tema do nada. O arquétipo da mulher fatal povoa o imaginário ocidental desde a antiguidade e, como a fênix, renasce continuamente das cinzas. A cada retorno, crescem suas vítimas e os sentidos a ele vinculados. A mulher descrita por Kipling empresta a vilania e o éthos misterioso das fêmeas medievais, tantas delas mortas acusadas de servirem o demônio. No que toca ao seu nome, também remete ao personagem de Drácula, a quem Bram Stokem deu vida no mesmo ano. Mas igualmente respinga a literatura Romântica, especialmente no que diz respeito à faceta exótica e erótica de tal produção. A “jovem fada”, ser belíssimo e selvagem que enreda o cavaleiro em armas, obrigando-o a vagar a esmo na “fria borda da colina” (“La Belle Dame sans Merci”, poema de Keats – 1919); a maga que se veste de menino no intuito de penetrar no mosteiro onde habita o monge Ambrósio e lá, o induz à libertinagem (“Monk”, romance de Lewis, 1796): aproxima essas mulheres a invulgar beleza, o porte altivo e dominador, a frieza, o canibalismo sexual.
La Belle Dame Sans Merci de Sir Frank Dicksee (1853 - 1928)

O vampirismo delas é metafórico, o que não significa que, na literatura romântica, elas não convivessem com as vampiras literais. Um exemplo é a esplêndida Clarimonde do conto “A morte amorosa”, de Gautier. “Aquela mulher era um anjo ou um demônio, e talvez os dois; certamente não saía do flanco de Eva, a mãe comum.” – diz o pobre padre ao lembrar do momento em que os olhos dele encontraram os dela, quando ele era ordenado: “Que olhos! Como um raio, decidiram o destino de um homem.”. E efetivamente decidiram: o homem torna-se amante da vampira que, para se nutrir, bebia gotículas de seu sangue quando ele dormia.
O tema me interessa, aqui, pela relação que ele estabelece com o campo cinematográfico. Aliás, meu fascínio pela personagem da “Vampire” data da época em que inaugurei este blog, (quase) exatos três anos atrás. Nada melhor que lembrar do aniversário do meu filhinho trazendo-a de volta; especialmente considerando-se que o aniversário de “Filmes, filmes, filmes” é no Dia de Finados, dois após o Halloween... Meu fascínio foi primeiro gerado pela Theda Bara, hoje uma ilustre desconhecida da massa que vai ao cinema, porém, a principal atriz de meados dos anos 10. Em 1915, a atriz, então novata, encarnou a personagem de Kipling de modo tão altissonante que ela e sua película adquiriram fama instantânea. Na aurora do cinema de estúdio, parecia sensacional que uma atriz – ainda mais uma que desempenhasse papel de vilã – recebesse 100 cartas diárias, muitas com pedidos de conselhos; e açulasse as ligas de moralidade em torno de todos os EUA; e do dia para a noite começasse a rodar o mundo como símbolo de tudo o que era proibido e delicioso. Bara foi pioneira em mostrar o potencial mercadológico, social e simbólico do cinematógrafo.
O filme em questão, “A fool there was” (dirigido por Frank Powell para a Fox Films), apropria-se literalmente dos versos do poema de Kipling, que servem de intertítulo à encenação do declínio de um homem de família que se envolve com a personagem-título: “bela dama” tão conhecedora do “Desconhecido”, porém, tão alheia à moralidade comum. A fita aproveita-se igualmente da trama de “A fool there was”, drama em três atos de Porter Emerson Browne – encenado com tanto sucesso na Broadway (em 1909) que motivou o escritor à produção o romance homônimo; texto, aliás, dedicado a Robert Hilliard, criador do principal papel masculino no palco da Broadway e um dos responsáveis pelo processo de plágio movido contra o filme. A corte acusa o filme de se apropriar do título do livro, nada dizendo sobre a linha geral da trama – da qual, diga-se de passagem, ele também se apropria.
No poema, o caso entre a “Vampira” e o “Tolo” ganha o estatuto de símbolo: tempo e lugar são suspensos; em primeiro plano está a paulatina destruição do homem que desperdiçou “honra e fé e um intento verdadeiro” com a “mulher que não se importava”. Na peça e no romance, o símbolo é encarnado num tempo e lugar: a movimentada Nova Iorque do início do século XX, mais especificamente a elegante Fifth Avenue, onde cresce uma menina e os dois meninos que a amam. Todos são amigos. Depois de adultos, a jovem casa-se com um desses dois rapazes e tem uma filha. A família e o amigo vivem às mil maravilhas até que o homem – John Schuyler, o tolo em questão – é convidado a viajar ao estrangeiro a trabalho.
Seu encontro com a “Vampire” não fica devendo nada à literatura anterior que trata do tema. Também seus olhos são presas dos olhos da malvada: “[Deus] não me ajudou; e não consegui resistir. Eu tentei! Como tentei! Mas havia algo em seus olhos, eram olhos que queimavam e crestavam!”. Sua destruição é descrita nos mínimos detalhes no romance. No fim de seus dias, já preso de corpo e alma ao comando da femme fatale, torna-se “Uma imitação enfraquecida, miserável, digna de piedade do John Schuyler que ele havia sido.”. “Honra, e fé, e um intento verdadeiro, uma esposa, uma criança, uma reputação, um caráter”, tudo ele perdeu, restando-lhe apenas o “nu, úmido esqueleto”. Como um pássaro encantado por uma cobra, ou um príncipe encantado por uma bruxa má – analogias postas no romance – não havia escapatória ao ser humano escolhido como vítima pelo ser supra-humano. Isso aproxima “A fool there was” da literatura romântica e da decadentista/ simbolista do fim do século XIX, sensíveis ao intangível e ao misterioso que circundava o homem.
Katherine Kaelread, a Vampire da peça de Emerson Browne

Porém, a história de Porter Emerson Browne é, sobretudo, uma peça moralista. No cerne da questão está a ambição do homem, que abdicava da segurança do lar e da proximidade da família e rumava ao desconhecido. Mesmo sua força e pureza de caráter, reafirmados ad nauseam nas primeiras 100 páginas do livro, não conseguem ajudá-lo quando ele se encontra com os olhos e depois, com o restante do corpo da mulher fatal. À segurança do lar ele prefere o amor da vamp: amor que queima “como o fogo do inferno”, tão excitante quanto a rosa vermelha cujas pétalas ela debulha sobre ele. Tudo isso é contado com fortes tintas melodramáticas, que insistem em pintar a felicidade no seio do lar e num matrimônio sadio em contraposição à saciedade sexual nos braços da vampira – alegria intensa porém, mentirosa (“false heaven of unreal joys”, como pomposamente descreve o romance), como a história desfilará escolarmente ante os olhos do público.
O fim do homem é a mais vil das mortes: abandonado pela família e amigos e decrépito, ele despenca aos pés da vamp, que debulha sobre seu corpo as últimas pétalas vermelhas que ela lhe oferecerá. Aqui não há dupla interpretação – diferente do conto de Gautier, em que o padre, depois de matar a vampira, questiona-se se ele seria realmente mais feliz sem ela. No final da peça – diz a crítica dela publicada na época – a luz que banhava o casal de libertinos indicava com clareza que não era o céu que os esperava; expediente que a própria crítica aplaude, já que “textos moralizantes nunca são demais” – ela afirma.
O cinema, desde seu surgimento, acompanhou o teatro no emprego da personagem tipo da mulher fatal. Porém, no escuro da sala de exibição elas pareciam ao público mais deleitantes do que perigosas. Em “A fool there was”, a “Vampire” de Theda Bara termina com um riso sardônico enquanto desfolha rosas sobre o cadáver de John Schuyler. Nada de luz indicando punição: o homem é punido; ela sai vitoriosa. Não muito depois, por influência das ligas de moralidade, as vamps das telas principiariam a amargar claras punições pelos seus atos. Antes disso, Theda Bara vira ídolo de homens e mulheres, velhos e crianças; é transformada pelos fãs em conselheira e até leva a cabo o insólito papel de madrinha dos soldados americanos durante a Primeira Guerra (ela recebe o cetro ao som de entusiastas Vamp! Vamp! Vamp! vindos dos soldados, como lembrou-me certa vez o amigo Ricardo Leitner).
Fotografia de divulgação de "A fool there was"

Depois de Theda Bara, muitas mulheres fatais amargaram com a morte os crimes que cometeram. Os anos de 1910 para 1920 foram, para o cinematógrafo, de busca de um crescente realismo; de uma crescente humanização de arquétipos – como constata Edgar Morin no saborosíssimo (e inteligentíssimo) As estrelas: mito e sedução no cinema. A vamp de Theda Bara era uma força da natureza; selvagem, inexplicável e indomável. As posteriores eram mais humanas, suscetíveis ao amor, à consciência de seu erro e, na lógica pedagógica do melodrama, merecedoras de punição. Conforme o realismo assenta-se ao cinematógrafo, personagens como a “Vampire” de “A fool there was” são consideradas mais e mais ridículas (para constatar o fato basta que assistamos a trechos deste filme com os pressupostos de hoje). Isso as leva a serem lidas pelo cinema, nos anos subseqüentes, pelo viés do humor.
Exemplo delicioso é a participação de Gloria Swanson num episódio do “The Beverly Hillbillies” de 1966, no qual ela incorpora a personagem de Theda Bara num filme rodado dentro do episódio. O “Tolo” é o pai de família, uma espécie de Zé Buscapé, o que por si só já dá dimensão de humor à apropriação. A graça ainda será multiplicada pela encenação ultrateatral do casal, pela alteração do conteúdo e alguns diálogos – numa clara referência à película de Bara – e pelo desfecho diametralmente oposto, já que o pai larga de bom grado a mulher fatal para ficar com a esposa e a filha. Abaixo há os dois vídeos para a comparação (e a diversão).



Outra releitura inteligente do tema é feita na “Roda da Fortuna” (dirigido por Vincente Minnelli, filme que foi tema do post abaixo), mais especificamente na sequência musical “Girl Hunt: a Murder Mystery in Jazz”, protagonizado por Cyd Charisse e Fred Astaire. Este filme, como o anterior, faz uma leitura metalinguística da arte; desta vez, do teatro. O número soma mistério e dança, numa referência ao filme noir – outro gênero que fizera largo uso da mulher fatal – e ao cinema musical. Desta vez, não retornam trechos do filme de Theda Bara, mas sim do poema de Kipling. A sequência apropria-se de símbolos criados pelo poeta, todavia, desfragmenta-os e os ressignifica. O farrapo, o osso e o chumaço de cabelo (rag, boné, hank of hair) aos quais o “Fool” de Kipling faz sua oração serão, no número musical, transformados nas pistas que levarão o detetive protagonizado por Astaire a descobrir o assassino ladrão de esmeraldas.
Ao longo do número, acompanhamos as andanças do homem, apresentadas de modo fragmentário e aludindo todo o tempo aos símbolos em questão: quer seja no ateliê de alta costuras, na loja de perucas ou no insólito “Bar do Esqueleto”, onde ele novamente encontrará a mulher “má” e “perigosa”, de vestido vermelho colado ao corpo e andar deslizante de cobra. A mulher – Cyd – deslizará por seu corpo e o convidará para dançar, introduzindo no sincopado número de jazz - plenamente compartilhado por ambos - a dureza e a assertividade comum ao arquétipo das mulheres fatais.
Figura diametralmente oposta é a loura delicada – também interpretada por Cyd – cujos passos de balé servem como símbolo da necessidade que ela tem de proteção. Porém, o detetive e o público descobrirão no desfecho que a malvada não era a vamp e sim, a mocinha loura. Ela é morta pelo detetive machão que verá, ao fim e ao cabo, que “alguma coisa estava faltando” para si. Faltava-lhe a mulher fatal: “Ela era má, era perigosa. Eu não podia confiar nela. Mas era o meu tipo de mulher.”. É com ela que ele acabará a história – e bastante feliz, aparentemente...

Os objetos artísticos que surgiram a partir da pintura de Burne-Jones, nos quais me detive aqui, deixam claro o que atesta Edgard Morin sobre a paulatina humanização do arquétipo da vamp. Ao me deter sobre os exemplos, procurei demonstrar como isso acontece. A “Roda da Fortuna” dá o último passo, penso eu, ao inverter o arquétipo. Fico pensando no quanto tal inversão não se relaciona ao papel que a mulher daquela época desempenhava na sociedade. Ela saía mais às ruas, votava, tinha mais voz ativa, tomava decisões; não era mais o bicho desconhecido e temido pelo homem, que ele se via obrigado a proteger ou subjugar. O que igualmente gerou outro tipo de homem: um que não se incomodava em ser domado, contanto que ele e a domadora se divertissem. Afinal, um relacionamento regado a rosas vermelhas poderia ser muito mais excitante (em todos os níveis) que as rosas brancas oferecidas pelas sensaboronas mocinhas dos anos de 1900, 1910.
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Me ajudaram a escrever o post, além de Morin, Mário Praz (A carne, a morte e o diabo na Literatura Romântica).