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quarta-feira, 23 de outubro de 2024

Giornate del Cinema Muto de Pordenone 2024: parte 1


Costumeiramente produzo boletins concernentes à programação da Giornate del Cinema Muto de Pordenone (da sua modalidade online nos últimos anos). Agora, escrevo do palco do evento, mesmo que essas notas possivelmente sejam publicadas posteriormente. 
A cidadezinha italiana de Pordenone (de cerca de 15 mil habitantes, a cerca de 80 km de Veneza) é um oásis para os amantes de cinema mudo, não canso de dizer. Nela encontram-se, ao longo de 8 dias, arquivistas, acadêmicos, músicos e amantes devotados deste cinema. 
A cidade pacata é palco privilegiado para o Festival, convidando o espectador à imersão – embora os bares e restaurantes sedutores e os sorvetes maravilhosos eventualmente o desvirtuem. Ela é um oásis também porque congrega interessados na arte em vários âmbitos, gerando não apenas espetáculos memoráveis, pautados pelo esforço de se aproximar essas sessões das exibições cinematográficas ocorridas na Era do cinema silencioso, mas também tornando possíveis as conexões no intuito de se continuar a preservá-lo e difundi-lo. 
É difícil de se falar sobre a programação de uma mostra desta dimensão – 8 dias de duração e 15 horas diárias de exibição cinematográfica. No calor da hora, isso ocorre apenas se o escrivinhador/espectador se recusar a dormir, ou então resolver pular sessões, o que não é o meu caso. E se deixamos as obras descansarem alguns dias dentro de nós, corremos o risco de nos esquecermos de detalhes. Tomei esta última decisão, e por isso optei, desta vez, por fazer uma apresentação geral dos programas, o que ajudará o leitor a perceber a sua amplitude e, quem sabe, o convidará a prestigiar a mostra no próximo ano, seja pessoalmente, seja em sua modalidade virtual (a exemplo dos últimos anos desde a Covid, uma seleta dos filmes é disponibilizada virtualmente ao longo da semana da Giornata). 

Overview 
Surpreendi-me com a diversidade da programação deste ano. A amplitude da programação nem sempre significou diversidade – ano após ano, repetia-se o olhar que, se era sensível, também era notadamente eurocêntrico. Discussões sobre o “Sul Global” e a emergência do “outro”, ocorridas desde o Me too e as manifestações que se seguiram à morte de George Floyd, faziam antecipar um redirecionamento do olhar dos curadores dos programas. 
Efetivamente, este ano foi programada, por exemplo, uma quantidade considerável de filmes latino-americanos, enfeixados no programa “América Latina”. E então, ampliou-se o público espectador, multiplicaram-se os hispano-hablantes pelas ruas da cidade (mesmo que os brasileiros continuassem a ser poucos...). 

Para além do programa, houve discussão sobre esses filmes tanto no Collegium (grupo de jovens interessados que, se aceitos neste programa artístico-educacional, podem assistir às sessões e ouvir palestras diárias que os direcionam sobre a programação da mostra), e houve o debate sobre um livro importante que acabou de ser publicado no Brasil, de Luisa Malzoni, da Cinemateca Brasileira, sobre a restauração da cor no cinema silencioso em nosso país. Para além das sessões já conhecidas e ansiadas, a exemplo de “Riscopertes”, que nos permite assistir a filmes já conhecidos com a qualidade musical e visual que a Giornate costumeiramente produz, houve um programa voltado ao cinema do Uzbequistão, que me era completamente desconhecido, e aquele país levou à cidade uma animada comitiva, formada por arquivistas, interessados, pesquisadores, e por dois músicos, que fizeram com que a maior parte dessa programação fosse acompanhada por instrumentos típicos. 
O olhar voltado às minorias ainda se observou no programa voltado a Anna May Wong – atriz sino-americana que foi obrigada a envergar o hábito tradicional que o cinema hollywoodiano impunha ao Oriente, e bravamente bateu-se com ele – e naquele dedicado aos “Feminist Fragments”. Vamos às notas sobre esses programas! Elas serão divididas em 7 textos, a serem publicados com periodicidade diária.


segunda-feira, 31 de outubro de 2016

Hobart Bosworth, “Behind the door” e o herói partido ao meio

O cinema clássico teve um poderoso aliado no Melodrama, gênero que perfazia o ideal de sanidade de corpo e espírito clamado pelas ligas de moralidade do redor do mundo. Sua ética, embora secular, mimetiza a cristã: como no cristianismo o percurso pedregoso da vida prepara o corpo para a bem-aventurança eterna, na estética melodramática a aceitação humilde dos revezes do destino conduz à ascensão, não apenas celestial, mas moral – e, em não raros casos, social. “Senhor, dê maturidade à minha alma, antes de ela desencarnar”, ouve-se da boca do padre da Carruagem Fantasma (de 1921). Victor Seastrom, o ator e protagonista da obra-prima sueca, dá de ombros ao dito bíblico, recebendo como paga por uma vida de esbórnia a árdua missão de conduzir as almas dos mortos ao longo de todo um ano. O cinema standard era uma religião sisuda: punia severamente aqueles que se distanciavam de seus ditames. 
Por isso, a rodagem de um filme como o norte-americano Behind the door (de Irvin Willat), no recuado ano de 1919, é algo que se anotar. A obra conta a história de Oscar Krug, americano de meia-idade, de rosto severo e ascendência alemã que, por amor da jovem e primaveril Alice Morse, deixa o ofício na marinha e passa a tocar uma loja de brinquedos, nas redondezas de onde ela vive. Vemo-lo debruçado, a sonhar, ao balcão de seu hospital de brinquedos; a curar, com suavidade, a bonequinha que acabara de ser atropelada... Apenas esses contornos anunciam matizes desusados à produção cinematográfica da época. Os Estados Unidos recém-saídos da Primeira Grande Guerra devolviam, neste filme, o status de humanidade ao povo alemão – lembremo-nos que, neste mesmo 1919, o seriado The Perils of Pauline é remontado pela Pathé europeia e o seu vilão rebatizado com um nome germânico. Mais ainda, misturavam-no simbolicamente com a sua carne, construindo um protagonista que, embora oriundo de família alemã, recebe explicitamente o rótulo de “norte-americano”. 
A trama comandada por Irvin Willat entrelaça duas temporalidades: o ano de 1917 e “cinco anos mais tarde”. Ao mesmo tempo em que remete ao momento em que os EUA aderiram ao conflito, acena para um futuro que supera o momento histórico do filme. O passado pinta em tons pastéis o idílio amoroso do casal, malgrado a rejeição do pai da jovem, que quer o homem maduro fora da cidade. Willat conduz uma firme crítica à xenofobia – que avultara durante a Guerra, mas ainda se fazia sentir. Para provar-se um verdadeiro “americano” e, enfim, poder servir a pátria que seus ascendentes escolheram para si, Krug precisa meter-se em duelo com os cidadãos locais. O conflito em microcosmo não apenas prenuncia a envergadura física e moral do personagem – que, sozinho, vence um grupo numeroso – como os contornos mais negros de sua alma, e do filme como um todo. Os oponentes reconhecem-no logo um igual e o abraçam. Mas, o sangue no qual ele está banhado sujará o lencinho alvo da bela Alice (Jane Novak, que tem o tipo físico de Pearl White). Efetivamente, tampouco o destino da moça se revelará suave. 
Ambos se casam e Krug recebe como atribuição o comando de um navio de guerra da frota norte-americana. Expulsa de casa, a jovem irá ter com o marido. Impedida, por força das regras, de estar no navio, esconde-se, até que um torpedo inimigo lança-a ao mar junto do marido e de toda a equipagem. Behind the door atrás da porta – abre de forma lúgubre, com um amaríssimo Krug chegando do mar rumo à sua loja de brinquedos, encontrando-a em ruínas e, depois de pôr os olhos no lenço ensanguentado da amada Alice – espólio daquele dia de litígio –, rememorando os fatos que haviam sucedido ao longo daqueles anos. Quando vê Kate ao mar, o público sabe, portanto, que algo de muito ruim lhe acontecerá. Todavia, nada – nenhuma narrativa anterior, ao menos que eu tenha notícia – prepara o espectador para o teor dos acontecimentos que se desdobrarão. A jovem acaba tornando-se, com o marido, a única sobrevivente do naufrágio, apenas para terminar, sozinha, nas mãos da tripulação de um submarino alemão. Seu destino apenas será conhecido nos desdobramentos finais da trama, quando o marido, que jurou vingança, está prostrado diante do algoz da jovem – o qual desta vez ele resgatara do mar. 
É fundamental, agora, que eu fale de Hobart Bosworth – um ilustre desconhecido para mim até a Giornate del Cinema Muto deste ano, quando o vi, e vi esta obra magistral, pela primeira vez. Ao vê-lo, pensei numa versão muda do James Stewart de Vertigo, embora a semelhança talvez esteja menos nos dois homens que nas duas tramas, ambas a rescenderem a mais dolorosa desolação, malgrado – ou, talvez, justamente por isso – mergulhem de olhos fechados no mais desabrido amor-romântico. É um misto de ódio e desespero o rosto de Hobart Bosworth, ao perceber que o submarino que encontrara o casal pertencia ao inimigo. Sua contenção ao se encontrar novamente com o algoz, e falsear para descobrir a verdade, caminha na contracorrente da tipificação do cinema clássico. 
Temos aí uma personagem que revela, na superfície, uma alma cheia de densidade. Ao descobrir, com o público, o que ocorreu à jovem – ela fora violentada por toda a tripulação e depois, morta, atirada ao mar –, torna-se um moderno Orestes, cometendo a mais lúgubre das vinganças distante dos olhos do público; “atrás da porta” que dá título ao filme. Behind the door despede-se do Melodrama para enveredar pelo Drama Romântico – tormentoso, avesso à ética cristã – ou pela Tragédia. A vingança parece ser, ali, clamor dos deuses, como na Electra de Eurípedes. Tanto que o perecimento final do protagonista – sobre o balcão da loja de brinquedos, onde ele fora tão feliz – o leva ao encontro da esposa, rumo a um céu que não é nem o do Melodrama, nem o do cinema clássico; daí talvez o porquê de o filme ter ficado no limbo por quase cem anos, até ressurgir glorioso em Pordenone.