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sexta-feira, 2 de abril de 2010

Doris Day: a "girl next door" completa outro ano de vida




Plano de conjunto, em Cinemascope, da ensolarada Miami: praias, sol, calor, hotéis de luxo, carros, ruas e gente, muita gente, em meio à qual saltita uma garota. Dali em diante, a câmera andarilha se deixa seduzir pela jovem animada e a segue enquanto ela canta as suas inúmeras superstições, colocando em polvorosa os demais transeuntes dos quarteirões por onde passa. A cor, a música, a letra e a comédia física não deixam enganar: temos um Doris Day feature.
Efetivamente, a divertida sequência musical que abre "Lucky Me" (1954) remete-nos a outras tantas películas da moça que não parece fazer força alguma para ser simpática. "Ardida como pimenta" (Calamity Jane, 1953) toma-a primeiro em cima da diligência de Deadwood, a qual ela protege ferrenhamente dos selvagens enquanto canta

Oh, the Deadwood stage's a-headin' on over the hills,
Where the Injun arrows are thicker 'n porcupine quills.
Dangerous land, no time to delay,
So whip-crack-away, whip-crack-away, whip-crack-away!

E lá vai ela chicoteando os cavalos e atirando nos índios que a perseguem com tanta graça e bom humor que pouco pensamos no quão politicamente incorreta é a cena.
Aos olhos do século XXI, os filmes de Doris Day são no mínimo paradoxais. Eles inegavelmente reafirmam uns preconceitos e lugares comuns: em "Ardida como pimenta", além da agressão aos índios, há uma jovem masculinizada que aprende a ser mulher com uma corista - aprendizado que inclui uma faxina geral na casa onde vivia ao som de "A woman's touch"; em "The thrill of it all" (1963), é uma workaholic que depois percebe que seu lugar é ao lado do esposo e não na da emissora de TV onde trabalhava como garota-propaganda; em "The ballad of Josie" (1967), é uma viúva pacata que aprende a ser machona para defender sua propriedade, porém, acaba botando fogo nos jeans quando encontra um homem pra chamar de seu; em "Confidências à meia-noite" (Pillow Talk, 1959) é uma career woman socialmente bem posta e aparentemente feliz mas que, no fundo, anseia para si o mesmo que sua colega Josie ansiava.

The thrill of it all

Mas, mesmo apresentando atitudes e tipos sociais ultrapassados e/ou criticáveis, é impossível negar a graça desses filmes. Também podemos acreditar que a cantoria que interrompe a ação deixa o resultado final ainda mais artificial e datado. Porém, quando Doris começa a cantar "The black hills of Dakota", "It's magic" ou "Que será, será", ela acaba por nos enredar. Aí, não somos mais os espectadores críticos que veem o filme com o dedo em riste para apontar seus defeitos. Transformamo-nos naquele público ansioso dos grandes espetáculos alegres: queremos nos divertir e emocionar com as canções e cenas cômicas.
Doris chegou a fazer alguns filmes "sérios". "Midnight Lace", em que ela divide a cena com Rex Harrison e Myrna Loy, é um dos thrillers mais angustiantes que já vi. Ali, Doris está soberba como a mulher perseguida por um inimigo que nem mesmo nós sabemos se realmente existe. Em "Storm Warning" (1951), a atriz é uma jovenzinha apaixonada que desconhece estar casada com um membro da Klu Klux Klan. A irmã, interpretada por Ginger Rogers (que prazer ver duas de minhas atrizes favoritas atuando juntas!), verá o cunhado entre o grupo que lincha um estrangeiro (e não um negro) e abrirá os olhos da mocinha. Aliás, esse é um filme fascinante para que analisemos os artifícios usados pelos americanos para a construção de sua memória coletiva... Sem falar em "O homem que sabia demais" (The man who knew too much, 1956), um dos grandes Hitchcocks, em que ela dá um show como a mãe que teve o filho sequestrado.
No entanto, deliciosas, mesmo, são suas dinâmicas e hilárias comédias. Mérito da atriz, que conseguiu dar credibilidade a alguns papéis bem frágeis. Papéis como aqueles das películas que ela divide com o lindíssimo Rock Hudson. Em "Volta, meu amor" (Lover, come back, 1961), por exemplo, ela é uma virginal publicitária de Nova York que se vê tripudiada por um adversário (Rock) e acaba casando-se com ele depois de ser embriagada com biscoitos alcoólicos (?!). Ou "Confidências à meia-noite", em que a também virginal designer de interiores tem dinheiro para comprar roupas ma-ra-vi-lho-sas mas não consegue comprar uma linha telefônica para si, tendo que dividi-la com um Don Juan (Rock, que, obviamente, tentará seduzi-la). Doris, com sua competente atuação, escamoteia os furos do enredo e sublinha os achados do mesmo. De "Confidências...", minha cena preferida é aquela em que Rock conduz a carruagem através do Central Park. Primeiro, Doris e Rock e depois, o condutor, são tomados em planos americanos. A câmera lê os pensamentos que acompanham as ações dos personagens ("Há algo tão saudável num homem que gosta de animais" - a apaixonada moça diz; "Espero que esse bicho estúpido saiba pra onde está indo" - diz o rapaz; "Esse cara segura as rédeas como se segurasse as alças do metrô. Não sei qual é a dele, mas fico feliz por ela não ser minha filha" - diz o condutor...). Pronto: temos uma das cenas mais hilárias de todos os tempos.


Outra - essa quase farsesca - é aquela em que a designer ofendida mostra todo o seu veneno na decoração a la "Mil e uma noites" que produz no apartamento do rapaz. "Behold the work of a woman in love", diz o farsante, mal sabendo que isso o esperava:


Uma música de suspense soa ao fundo, aumentando a hilariedade do conjunto. A gota d'água é a canção "You are my inspiration xxx" gravada no piano - leitmotiv satírico do devasso protagonista, compositor da Broadway que presenteava suas inúmeras namoradas com uma mesma canção, cujo verso alterava de acordo com os nomes das garotas.

Amanhã, 3 de abril, a jovem que parece nunca envelhecer completa 86 anos. Não nos deixemos enganar pela idade: mesmo longe das telas há pelo menos três décadas, ela continua aquela mesma jovem entusiasmada cuja imagem sedimentou em dezenas e dezenas de filmes. Trocou os casacos de pele pelas calças de moleton e comanda a "Doris Day Animal Foundation", uma associação protetora dos animais reconhecida pelo Estado. Agora que não é mais dominada por Hollywood, ela só aparece quando e como quer.
Alguns anos atrás, aluguei "Não me mandem flores". Vi uma vez, vi de novo no outro dia. Então, aluguei "Confidências à meia noite" e fiquei incrédula. Como alguém poderia ser tão charmosa, engraçada e cantar tão bem? Confesso, um pouco envergonhada, que não consegui resistir. Eu queria entrar na tela e bater um papo com ela. Como não dava, escrevi uma daquelas fan letters que, depois de termos crescido, juramos que nunca mais escreveremos, e enviei-a à atriz. Dois meses mais tarde, recebi do carteiro um grande envelope. Imaginem qual não foi minha reação quando li "For Danielle/ love/ Doris Day"? Que surpresa saber que, fora das telas, Doris Day continuava sendo a mesma adorável girl next door!
Bem, o que mais dizer da moça (e à moça) que me emocionou fora e dentro das telas, se não "Happy birthday, dear. I wish you the happiest life!"?

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Os admiradores da atriz poderão ouvir as homenagens que duas rádios farão a ela amanhã: a KIDD 630-AM da Califórnia e a Fred Net Radio de Baltimore.




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Doris Day conversa com o locutor da rádio KIDD 630 AM da Califórnia (3/4/2010)