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quinta-feira, 20 de julho de 2017

O documentário reflete o panorama cultural carioca: “Eu, meu pai e Os Cariocas” e “Divinas Divas” (2017)

Rio de Janeiro, alvorada dos anos de 1940. No Catete, Getúlio Vargas leva, com suposta brandura, o país nos arreios – ditador populista que era. É esta toada agridoce que faz Severino Filho, o “pai” decantado em “Eu, meu pai e Os Cariocas”, a afirmar: “o Getúlio era um ditador, mas era uma pessoa maravilhosa”. Rio de Janeiro, decurso da década de 1960 – os anos de recrudescimento da mais violenta ditadura militar, do golpe ao AI-5, coincidem com a consolidação da primeira geração de travestis a atuarem no teatro Rival, um dos primeiros palcos da cidade abertos a esta sorte de performance
Passe-se, por ora, o latente golpismo tupiniquim. As referências políticas trazidas por ambos os documentários, e o recorte temporal atravessado pelos grupos neles retratados, deflagra a produção de duas obras esteticamente bastante diferentes, embora igualmente competentes. 
Lúcia Veríssimo debruça-se sobre a carreira do pai, e o grupo por ele formado: “Os Cariocas”, vozes do Rio de Janeiro naqueles anos feitos de sol e de mar. Sabemos que a cidade dourada fora em boa parte construída pelo Departamento de Imprensa e Propaganda para perpetuar Getúlio Vargas no poder – e a diretora não passa ao largo do lugar ambivalente ocupado por aquele governante. 
Todavia, o primeiro plano do filme, um travelling da faixa litorânea da Zona Sul carioca, ao som de “Rio”, de Roberto Menescal – “Rio que mora no mar...” –, fala tão alto à nossa memória afetiva que é impossível lágrimas não chegarem aos nossos olhos. Rio, topografia que já é um poema. O travelling luminoso com que nos brinda Veríssimo dá o tom de sua película, registro terno tecido pelos dedos da filha que acabou de perder o pai. 
“Eu, meu pai e Os Cariocas” abre uma caixa de recordações: da concepção do grupo, por parte de Severino Filho, à narrativa da sucessão de seus integrantes, ao longo das décadas (narrativa/sucessão por vezes hilária: de certa feita, Severino substituíu, em corpo e timbre de falsete, o lugar da irmã que precisou deixar o grupo quando engravidou). 
A história dos Cariocas costura-se paulatinamente à história do Brasil. As sofisticadas tessituras musicais do grupo ajudaram a germinar a Bossa Nova, compuseram com ela – uma prodigalidade de imagens estáticas e em movimento registram noitadas históricas, que a gente fica com dor de cotovelo de ter perdido, em que o grupo dividiu o palco com gente como Vinícius, Tom e João Gilberto. Vargas parece ser presença fantasmática naquele Rio-capital de até fins dos 50, em que a concepção musical ousara nos acordes e mantivera a poesia fresca no tema. Depois de 1964, tudo seria diferente, e Severino Filho despede-se da arte, para só retornar a ela vinte anos mais tarde – gesto eminentemente político. 
A mulher que cresceu permeada por um talento musical excepcional orquestra, em tom pessoal, as vozes que irão celebrá-lo. Severino Filho é morto, os tempos decantados pelos “Cariocas” são mortos, mas o documentário de Lúcia Veríssimo é antes uma ode que uma elegia. Diante da finitude incontornável da vida estende-se a memória, tal e qual perfumada sempre-viva. 
Leandra Leal coloca-se, em “Divinas Divas”, de forma menos pessoal, faz-se menos presente – ao menos empiricamente falando – mas é tão pulsante quanto a sua colega atriz e diretora. O deslocamento é consubstancial ao tema. Leal toma o grupo de travestis do Teatro Rival, na Cinelândia carioca, a partir do ponto de vista da menina que caminhava pelos meandros daquele espaço que pertenceu sucessivamente ao avô e à mãe, observando os bastidores do travestimento daqueles homens em mulheres. 
O recorte temporal tomado por tema é tratado em complexidade. Embora surja de forma menos patente do que se dá no documentário de Lúcia Veríssimo, o âmbito político assume um indiscutível primeiro plano. Malgrado as “Divinas Divas” neguem, quando entrevistadas, ter assumido qualquer papel político frente ao regime ditatorial, é inegável o tônus inesperadamente ideológico que possuía a sua opção pela “inversão” – afinal, num Estado de Exceção espera-se a aceitação das regras sociais, nunca a sua contestação. 
O mote de “Divinas Divas” é a remontagem do espetáculo homônimo, que o grupo havia protagonizado anos antes. O documentário nasce do mergulho nos bastidores desse reencontro, das memórias compartilhadas por Rogéria, Valéria, Jane di Castro, Camille K., Fujica de Holliday, Eloína, Marquesa e Brigitte de Búzios, da passagem de tempo que, se corrói, também faz germinar: daí a chegada da velhice, da doença, da morte, porém, também da multiplicação dos anos de aliança, das leis favoráveis à união estável entre parceiros do mesmo sexo... 
Surgem aos nossos olhos, alternadamente, os ensaios e a montagem final do espetáculo, a embevecer os espectadores – que veem a cena travesti acrescida de sentidos novos, cimentados pela passagem do tempo. Porém, o público igualmente acompanha o grupo despido dos froufrous da cena, entre as idas e vindas pela cidade, e as conversas francas que desvelam detalhes sobre uma sexualidade que a sociedade ainda vê de forma enviesada, sobre relações familiares ainda permeadas por zonas de penumbra. 
As memórias do Rival, que Leandra Leal soube fomentar com uma absurda maturidade, dão o testemunho de uma vida pulsante nascida das sombras. As noites de orgia, da Cinelândia aos clubes da Zona Sul, servem, pelo seu veio anárquico, de ruptura simbólica àqueles execráveis anos de chumbo.

quinta-feira, 24 de dezembro de 2015

“Chatô, o rei do Brasil” (2015): os benefícios da maturação

Estou vivendo dias nostálgicos desde o começo da semana passada. Uma amiga de longa data defendeu uma tese de Doutorado escrita paulatinamente ao longo de dez anos – caso sui generis; quem conhece o âmbito universitário sabe que as exigências amontam e os prazos escasseiam. Enquanto eu a via diante da banca, cheia da maturidade e da segurança que a gente só conquista com o tempo, pus-me a lembrar dos anos da graduação, dos professores mortos e aposentados, das aulas densas de literatura, do bom e velho IEL que não volta mais. 
A decalagem temporal nos obriga a colocar as coisas em perspectiva. Caso análogo acontece quando hoje vemos o recém-lançado “Chatô, o rei do Brasil”, de Guilherme Fontes, filme vítima de tantas pauladas ao longo de vinte anos. 
A trivia a seu respeito é notória demais para nos estendermos longamente sobre ela. O diretor e produtor do longa-metragem levantou financiamento para rodá-lo nos idos de 1995, época da retomada do cinema nacional. Estouro de verba e dubiedade na prestação de contas culminaram no engavetamento do projeto e no envolvimento de Fontes nas malhas da Justiça. 
Hoje, passada tanta água por debaixo da ponte, descobre-se que o filme existe enquanto obra completa. Tendo sido rodado de cabo a rabo, ao que tudo indica, foi agora montado (os detalhes do processo me escapam, já que não encontrei dados suficientemente explicativos a esse respeito) e está aí, mostrando com que euforia os artistas cinematográficos de meados dos 90 se recolocavam na cena de onde haviam sido bruscamente retirados graças à treva na qual o país mergulhou durante a Era Collor. 
Além da nostalgia de ver uma Leandra Leal adolescente atuando como gente grande (ela é Lola, a espanholita recém-saída dos cueiros com quem o protagonista se casa); além das então balzaquianas Andréa Beltrão e Letícia Sabatella e do juveníssimo Gabriel Braga Nunes, está a qualidade empírica do filme. Grande qualidade. “Chatô” é uma obra de pulso e, agora saído a lume, mostra que não causou barulho em vão. 
Prova de que o filme é bom são os haters virtuais – com os quais o “Chatô” dos anos 90 nem sonharia em conviver – que o filme conquistou. Acusaram-no de falsear a biografia de Assis Chateaubriand, magnata da comunicação que passou os últimos anos entrevado devido a um acidente vascular. Acusaram-no de romper com a cronologia na narrativa da vida do homem, como se uma obra cinematográfica de sopro biográfico fosse obrigada à linearidade e à apreensão estritamente factual da vida do biografado. Acusaram-no da pretensão de querer o respaldo artístico do poderoso Francis Ford Coppola, desdenhando da obra porque ela não o conquistou. 
No jornalismo, como na Academia, há cada vez mais a dificuldade de o analista se debruçar sobre a obra artística, preferindo tratar de seu contexto em detrimento de tomá-la a peito. Já que não sou nem colunista de fofocas, nem burocrata, nem técnica da Receita Federal, não pretendo fazer isso aqui. 
No que toca à questão financeira, cumpre a ressaltar, aqui, o bom emprego da verba dirigida ao projeto. A história do folclórico milionário Assis Chateaubriand ganha contornos de festa do rei do camarote. Há ali uma estética do exagero com alto potencial crítico, que prenuncia as culminâncias do funk ostentação e do novo-riquismo: há de se ter de tudo, e muito, e já, e se publicizar largamente a respeito. 
Tento puxar pela memória de que descende a estética de “Chatô”. Talvez de “All that jazz” (Bob Fosse, 1979), ótima biografia disfarçada do diretor e coreógrafo de Bob Fosse na qual se implode não só a linearidade como os limites entre a Terra e o Céu (ou o inferno). O homem que dá a vida pelo show biss acabará dando-se a si próprio em espetáculo: as cenas de sua derradeira comédia musical misturando-se aos delírios vivíssimos que ele protagonizava na cama de hospital. 
Há disso no “Chatô” de Guilherme Fontes, já que Chateaubriand não era apenas fruto do show biss, como era um de seus articuladores brasileiros – ele é, lembremo-nos, o responsável pela chegada da TV no Brasil, e o dono da TV Tupi (1950), primeira emissora nacional. 
O filme (não li o livro do qual a obra de originou, de Fernando Morais) costura-se subjetivamente: um Chatô (Marco Ricca, ótimo) preso a uma cama de hospital tece os liames entre o presente e o passado que narra (a infância pobre, a formação, o casamento, a fome louca que tinha de sucesso/riqueza/mulheres/amor...). Seu passado costura-se à história do Brasil: seu casa-e-separa com Getúlio, suas intervenções nos programas de sua emissora de TV. 
Para além da “verdade histórica” daquilo que ele narra – já de saída minada, uma vez que quem conta o caso é um homem cuja saúde se deteriora –, está o gesto crítico do diretor. “Chatô” é a alegorização da política e da cultura nacionais. O Assis Chateaubriand cinematográfico é uma espécie de Chacrinha – só agora, do distanciamento temporal, conseguimos abarcar completamente a dimensão crítica daquele carnavalesco animador, por décadas a figura de maior destaque da TV brasileira. O nosso ridículo, a nossa macaqueação deleitosa do estrangeiro são postas em cena com escárnio, com Chacrinha como com “Chatô”
Ademais, a distância de 20 anos entre a rodagem da trama e a sua aparição pública lhe dá sentidos novos, um pouco pela nova conjuntura histórica, um pouco pelo poder mágico da máquina cinema de congelar o tempo. 
Ao mesmo tempo em que o filme espelha magistralmente a pornografia política nacional – que hoje atingiu os píncaros –, abre-se como um baú de tesouros e liberta caras e vozes com as quais a nossa memória afetiva já nos acostumou. 
Prometi uma análise de pulso do filme e só toquei a sua superfície – em casa de ferreiro o espeto é de pau... Mas a noite de Natal se aproxima e a resenha, de tão comprida, provavelmente será lida poucas vezes até o fim. Fica aqui um registro mais nostálgico que crítico. No frigir dos ovos, festejo o fato de o filme ter demorado tanto a sair. Li as primeiras notas sobre ele nalguma revista Querida, quando era uma moleca mal saída da infância. Eu precisava dessas duas décadas para digeri-lo como ele merece.