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quinta-feira, 6 de fevereiro de 2020

Giornate del Cinema Muto de Pordenone 2019: Dia IV

Depois de um breve gap, seguem as resenhas sobre a 38. Giornate del Cinema Muto, que ocorreu no princípio de outubro de 2019 na cidade de Pordenone, na Itália.

Dia 4, 8 de outubro, terça 
O dia já se inicia com ação, com uma sessão all William Hart – muitos acordaram cedo para pegarem as sessões matutinas da admirável estrela cowboy, mesmo que à boca pequena corresse sobre ela a máxima: You’ve seen one, you’ve seen them all
Três filmes rodados nos estúdios de Ince – Inceville, para se ter uma ideia de sua dimensão de citadela. Dois trazem as suas duas facetas mais comuns, contrapontísticas, porém, complementares na lógica do western: “The Sheriff’s Streak of Yellow” (1915) e “The Gunfighter” (1917). No primeiro, Hart é o xerife do vilarejo que franqueia a liberdade ao fora da lei Bill Todd, cuja mãe acabara de falecer, porque aquele reconhece que a dita senhora de certa feita o salvara da morte. 
A “amarelada” do xerife, que dá nome ao filme, faz com que os habitantes do local lhe retirem o título. Fazendo ouvidos moucos à ameaça do xerife de que da próxima vez ambos acertariam suas contas, Todd retorna mais tarde ao vilarejo. O xerife recebe-o à bala e recupera o seu título. Já em “The Gunfighter”, dirigido pelo próprio Hart, ele interpreta o fora da lei que sequestra a modista Norma Wright noutra lonjura do Oeste. A mocinha acaba tocando a moralidade adormecida do vaqueiro machão, ao acusá-lo de “Assassino”. Para redimir-se, ele, instado pelas autoridades, sairá à captura de um temível bandido, acabando por encontrar a morte. Qual caixa de pandora, Hart traz invariavelmente em seu fundo a bondade... 
A segunda sessão matutina traz como bombom o “Otello” de 1909, produzido pela “Film d’Arte Italiana”, companhia que compunha, juntamente com a empresa análoga francesa, as hostes em prol de um cinema “artístico”. Para a realização de tal objetivo, além do esforço na rodagem das películas em locação, investiu-se largamente nas estrelas teatrais: “Otello” tem no elenco importantes atores do teatro italiano e procura sublinhar a presença empírica de Veneza sempre que possível - chega a abrir-se, numa das duas versões disponíveis da fita, num trajeto de gôndola de Iago rumo ao local onde estava o mouro e a sua amada Desdêmona, cena inexistente no drama de Shakespeare. 
Pintado de negro, Ferruccio Garavaglia desempenha o papel de Otelo; a estrela Vittoria Lepanto é Desdêmona e Cesare Dondini, Iago. Vimos a versão italiana da fita, gloriosamente colorida por estêncil (segundo o Catálogo da Giornate) - a outra versão remanescente, disponível na Cinemateca Francesa, embora tenha a mencionada abertura no Grande Canal veneziano, está em branco e preto. 
A seguir, o ponto fulcral do programa, “Il Fauno di Marmo” (1920), de Mario Bonnard, outro dramalhão delinquescente. 
Elena Sangro interpreta a princesa Maria dello Jutland, que vive uma relação passional com o Conde Giorgio – responsável por desmascarar o marido dela, envolvido num plano para derrubar o governo. O seu marido morre pelas mãos do conde, com a colaboração dela. Ambos partem para Roma, ela agora na pele de Myriam, e ele, de um monge. Delirante imaginação melodramática... 
O Catálogo da mostra brinda-nos com a informação de que o filme se baseou frouxamente no romance de Nathaniel Hawthorne “The Marble Faun”, obra de 1860 que levou gerações de turistas norte-americanos a palmilharem a Roma ali descrita. Amores impossíveis, ruínas históricas e um sopro aventuresco: décadas mais tarde, “A Princesa e o Plebeu” (1953) motivaria ímpeto turístico análogo pelos mesmos motivos.
A seguir, novamente o riso suplanta o drama. Mais uma sessão das slapsticks europeias dedicadas às “Nasty Women”: Cunégonde, Léontine e uma carreira de mulheres transpõem sem pudor os limites da disciplina à anarquia. 
“Léontine s’envole” (1911)

Em recente entrevista, Maggie Hennefeld, uma das curadoras do programa e especialista no assunto, sublinhou o papel desses filmes libérrimos na luta contra o histórico cerceamento feminino. Aqui, uma das principais presenças é Léontine – jovem atriz francesa ainda não identificada pela historiografia do cinema, querida não só dos europeus como dos brasileiros, dada à grande presença de produções suas nos cinemas cariocas, no princípio da década de 1910. 
A liberdade feminina vivenciada nesses filmes explicita-se em “Léontine s’envole” (1911), na qual a mocinha ganha os ares da cidadezinha onde vive conduzida por dúzias de balões de festa. Já em “Léontine em apprentissage”, a jovem mostra-se incapaz de aprender variados ofícios que a tornariam a típica jovenzinha casadoira. Época luminosa esta do primeiro cinema, anterior à standartização hollywoodiana da conduta modelar, na qual a grande variedade de sujeitos e abordagens norteava a saciedade dos anseios dos mais variados públicos. 
À tarde, surge em cena, no filme central do programa – “Oh, Doctor” (Harry A. Pollard, 1925) –, uma das minhas grandes descobertas da Giornate de 2019: Reginald Denny. 
Como nessa minha não desprezível estrada pelo cinema silencioso eu deixei-o passar? Galã de perfeito timing cômico, Denny é uma das figuras mais carismáticas da década de 1920. Aqui ele é Rufus Billop, ricaço que, conforme o primeiro intertítulo nos anuncia, nasceu com um termômetro dourado na boca e foi desde sempre mantido numa redoma. Vêmo-lo jovem, com medo da própria sombra, pálido, órfão – não se assustem, trata-se de uma comédia. Supondo-se, como sempre, às portas da morte, e sabendo que apenas tomaria posse de sua fortuna dentro de três anos, Rufus consegue um adiantamento desse montante com três velhotes unhas de fome. A trama complica-se com a chegada à cena de Dolores Hicks – Mary Astor (suspiro/ovação do público enamorado presente na sessão). 
O plot organiza-se em torno do contraste do desejo dos velhos, de manter a saúde de Rufus pelos três anos de duração do contrato, e do desejo do moçoilo (tão enamorado por Mary/Dolores quanto o público da Giornate) de se mostrar digno de sua amada – daí o seu esforço canhestro de enveredar pelas atividades que, segundo a própria máxima de Hollywood, imprimiam a chancela de masculinidade aos seus praticantes: a corrida de carros, o motociclismo, o display de atletismo. Eterno morde e assopra hollywoodiano
Tudo termina bem, com uma hilária mostra de autoridade feminina no topo de um mastro em demolição da bandeira dos Estados UnidosO filme é de altíssimo interesse para aqueles que querem tanto um exemplo da saudável anarquia do cinema americano anterior ao Hays code quanto um antecedente direto das (maravilhosas) screwball comedies que vicejaram ali nos anos de 1930-1940*. 
No programa a seguir, um deleite para os olhos: “La morte che assolve” (de Alberto Carlo Lolli, 1918), numa belíssima restauração digital realizada pela Cineteca Italiana de Milão – a qual intentou mesmo uma reconstrução de cores à maneira das obras exibidas à época do lançamento do filme, com base noutras produções da estrela que o protagonizou: Elettra Raggio Rusconi. 
Rusconi fora, nas ribaltas, parceira de Ermete Novelli. No cinema, tinha uma reputação de diva comprovada por este filme, o único que sobreviveu dela. Era multifacetada – o “Programa” da Jornada nos lembra –, tendo exercido as carreiras de roteirista, diretora e produtora. Em “La morte che assolve” ela desempenha, num só tempo, os papéis da mulher abandonada pelo marido cruel e de sua filha, a qual acaba adotada por uma senhora norte-americana. 
Trata-se de um melodrama algo atípico, no qual a mãe – figura central no gênero melodramático – não morre para salvar a filha recém-encontrada, mas de causas naturais. Sua partida, e a “absolvição” a ela inerente, é prevista por este gênero tão ligado às convenções sociais, para o qual a mera existência de uma mãe com um semelhante passado macularia qualquer chance de ascensão social de sua filha. Resta, além da reafirmação desse que é um dos fundamentais gêneros artísticos do Ocidente, a performance matizada de Rusconi, que realiza um tour de force para se desincumbir de ambas as personagens. 
Após o jantar, encontramo-nos com a película que serviu de tema à Mostra: “Beverly of Graustark” (Sidney Franklin, 1926). A dama do título é Marion Davies, que passaria para a história do cinema como a canastrona depressiva e frustrada biografada no “Cidadão Kane” (Orson Welles, 1942), companheira do magnata da imprensa norte-americana William Hearst. O mergulho nos remanescentes da sétima arte demonstra-nos que a historiografia de tal arte é, helás, demasiado masculina. 
Davies é uma excelente comediante, cuja leveza e picardia mimetizam seus traços físicos de menina sapeca. Já devo ter falado aqui – se não falei, que pecado! – sobre “Show People” (1928), uma das mais belas reverências aos artífices (todos eles) do cinema, filme que é um dos amores da minha vida. Em “Beverly of Graustark” Davies reproduz o tipo que ela realizava à perfeição: a femme fatale debochada. Cai-lhe de para-quedas, sobre os ombros, o reinado de Graustark – a história tem mais lastros com o conto-de-fadas do que com a realidade –, uma vez que seu primo, recém-eleito príncipe do reino, fora tirado de circulação por um grupo oposicionista. Sabendo que o primo corria o risco de perder o trono caso não se apresentasse a tempo, Beverly traveste-se de homem no intuito de passar-se por ele. 
Para além das estripulias oriundas da atitude – a mais esperada delas é a moça encantar-se pelo belo Antonio Moreno, homem de armas do reino, e encetar uma vida-dupla para, num só tempo, saciar a sua paixão e manter as rédeas de Graustark enquanto o primo convalesce – está o ato político do travestimento, fundamental naquela sociedade na qual a subalternidade feminina era ponto assente. Como o filme nos mostra, em 1920, a máscara ainda era um adorno fundamental àqueles que desejavam transitar entre ambos os lados. 
A noite fecha-se com outro daqueles exemplares modelares de propagandas realizadas pelo cinema. O título, em tradução livre, é “Mary and Doug, ou quando Estocolmo e Kristiania foram virados de cabeça-para-baixo” (1924). É quase que alto-explicativo. As figuras referidas no título são Mary Pickford e Douglas Fairbanks, então arqui-famosos em todo o mundo. A comoção que ocasionavam nos locais por onde passavam era largamente repercutida pela imprensa especializada. Sabendo disso, o cineasta desconhecido responsável por esta pérola rodou uma propaganda (involuntária?) de ambos em visita aos dois locais explicitados no título, visando a emplacar certa marca de chocolates – doces recebidos por ambos das cidades como gestos de boas-vindas... 

* Interessados encontram-no numa qualidade mediana no Youtube.

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

O Artista (2011): de volta aos tempos em que o silêncio valia ouro

Vivemos a Era do revival do Cinema Clássico. Homenagem ao centenário da estabilização do cinema como “máquina de contar histórias” ou constatação de que tudo o que valia a pena ser dito pela Sétima Arte já o foi e nos resta apenas redizê-lo? Dos indicados ao Oscar desse ano, “A invenção de Hugo Cabret”, “Meia-noite em Paris” e “O Artista” – a enumeração não é exaustiva – são exemplos de produções alinhadas à febre. Isso sem falar no curta de animação The Fantastic Flying Books of Mister Moris Lessmore”, que parece “The Wizard of Oz” (1939) transposto para o contexto da fruição literária, com direito a furacão, a trabalho análogo com as paletas do cinza e a colorida, e com livrinhos-anões dançando em torno do protagonista-Dorothy ao longo de um brown brick road... Em vários desses casos, a citação de obras antigas conseguiu bons resultados. Exemplo é o franco-americano “O Artista” (“The Artist”, Michel Hazanivicous, 2011), filme tornado cult desde que seu protagonista Jean Dujardin recebeu ano passado em Cannes o prêmio de Melhor Ator e a obra concorreu à Palma de Ouro.
“O Artista” conta a história de George Valentim, um star de cinema bem ao gosto dos anos 20 (charmoso, egocêntrico e milionário) e de Peppy Miller, aspirante a atriz que ruma à Hollywood em busca de fama – trajetória comum a milhares de jovens iludidas pelas revistas de fofocas cinematográficas da época. A câmera narrará paralelamente as trajetórias de ambos, trajetórias decididas pela transição do cinema silencioso para o falado. Certamente, já vimos esse filme antes – e “O Artista” não tenta esconder suas influências, antes as cita exaustivamente (não só ao longo da hora e meia de projeção como de modo textual, nas entrevistas do diretor), procurando estabelecer seu valor antes de tudo como homenagem às primeiras décadas do cinema de estúdio.
O filme é um charme do começo ao fim: tem personagens carismáticos, situações divertidas e tocantes. Tem o mérito de recontar para as novas gerações a história do cinema silencioso no seu momento mais dramático, a transição dos silents para os talkies. E ainda o faz a partir da forma: em branco e negro e sem o uso de diálogos. O roteiro (também de Hazanivicous) é estruturado com competência, com raros momentos de pouco interesse e uma ocasional (e bem-vinda) fuga do dramalhão pelo humor. É um filme muito bom, mas não chega a ser grande devido ao seu próprio contexto de produção e circulação: um filme silencioso e branco-e-preto só seria aceito nesses tempos de tagarelice filmada, 3D, High Definition e quejandas inovações tecnológicas se fizesse concessões ao grande público. A estratégia deu certo, tanto que o filme anda enchendo salas ao redor do mundo. Pretendo, daqui em diante, olhar com algum cuidado para essas estratégias:
George Valentim, encarnado de modo brilhante por Dujardin, é Douglas Fairbanks, John Gilbert, Ronald Colman e, porque não, Rodolfo Valentino (seu nome não é casual). Porque o ator incorpora bem o gestual desses galãs dos silenciosos, o que é um mérito seu; e porque a película desenvolve-o segundo as personas privadas e cinematográficas dos galãs dos anos 20 – desses, apenas Colman fez a passagem para o cinema falado; as carreiras dos outros dois morreram com a chegada do som (e Valentino morreu antes de Hollywood decidir pela transição). Ele é também – e, sobretudo – o Don Lockwood de “Cantando na Chuva” (1952), que por sua vez já era uma soma dos galãs anteriores temperado com tap dancing.
Peppy (Bérénice Bejo) é a diluição de uma porção de estrelas que galgaram com esforço os degraus da fama, como, por exemplo, Gloria Swanson, que só ascendeu a protagonista de filmes sérios depois de ser girl da Keystone e saco-de-pancadas de comédias pastelão. Ela tem suas matrizes ficcionais não só na Kathy Selden de “Cantando na Chuva”, corista aspirante a atriz de cinema por quem o galã Lockwood se apaixona, como nas várias stars de “A Star is Born”, especialmente Janet Gaynor (1937) e Judy Garland (1954) – ambas descobertas por astros que vão se apagando enquanto elas ganham espaço no céu de estrelas de Hollywood.
Tais influências são trabalhadas com afinco (e, porque não dizer, paixão exacerbada) em “O Artista”, umas vezes até com prejuízo da trama. Um compêndio de referências iria encompridar desnecessariamente o texto, portanto, deixemo-lo de lado e vamos nos concentrar nas principais: as cenas de luta de George Valentim (“The Mark of Zorro”, de Douglas Fairbanks 1920 e, depois, o filme-dentro-do-filme de “Cantando na chuva”); seu encontro com a jovem, no set de filmagens e os planos do galã caminhando entre cenários e da jovem caminhando pelas ruas do estúdio (“Cantando...”); a estética art déco do cenário onde ambos bailam a cena final e os ângulos em que os planos são tomados (qualquer filme de Ginger Rogers e Fred Astaire, exceto o primeiro e o último – nos outros oito a elegância dos amplos cenários brancos casava-se perfeitamente à imagem dos atores); o fato de se encontrar, na música, um meio-termo entre a voz e o silêncio (“Cantando...”).
Além dessas relações que dizem respeito ao enredo, “O Artista” cita inúmeros outros clássicos na composição de suas sequências: o “Cidadão Kane”, na montagem paralela que, por meio de pequenas cenas na mesa do almoço, mostra o adensamento do abismo que separa o ator em decadência e sua esposa; “Sunset Boulevard” (1950), na cena em que o ator já decadente se observa no écran; e “Pennies from Heaven” (1981) - esta canção, que compõe a banda sonora de “O Artista”, só faz salientar que ele executa um movimento análogo de paráfrase do cinema clássico ao que o filme de Steve Martin fez nos anos 80. E mais, a cena que eu suponho a mais bonita do filme, aquela em que Peppy veste-se com um dos braços do terno do galã para ganhar dele um abraço impossível, foi livremente baseada na comovente cena de Stela Maris” (1917) em que a órfã (Mary Pickford, a estrela-das-estrelas daqueles tempos) interage com o terno do homem que a adotou. Uma dessas referências chegou a causar polêmica: o uso literal de um longo trecho do score de “Um corpo que cai” (1957), composto por Bernard Hermann, culminou no repúdio formal de Kim Novac, a protagonista da fita de Hitchcock.
Porém, eu
suponho que nada tenha influenciado “O Artista” tanto quanto o fez “Show People” (King Vidor, 1928).

A matriz: “Show People” (1928)

Cruzei com esta obra-prima esquecida de King Vidor por um acaso um tanto quanto cinematográfico. Quem o sugeriu foi o Sistema do IMDB, que por algum motivo obscuro sabia que eu precisava vê-lo. A obra é protagonizada por Marion Davies, que não é outra senão a amante de Randolph Hearst parodiada por Orson Welles em “Cidadão Kane” (1940). Ao contrário do que pinta o ferino Welles, Davies era uma atriz cômica sensacional, e está especialmente luminosa em “Show People” na pele da mocinha que, por influência do pai, decide tentar o sucesso na capital do cinema. Ela adentra Hollywood, passa pelos estúdios e, pescada na entrada dos extras de um, é jogada em cena ao lado de um galã. O paralelo com “O Artista” não para por aí. A jovem é Peggy Pepper (e a semelhança nos nomes não é casual, pois Miss Pepper é tão apimentada quanto a Miss Peppy de “O Artista” é vivaz). E cabe ao galã – que dessa vez não passa de um ator principal de comédia pastelão – treiná-la para o sucesso.

A moça sobe como um foguete ao céu de estrelas de Hollywood e o rapaz segue no pastelão, mas quem se sai realmente bem é o público, que tem o prazer de conhecer detalhes dos dois mundos – o que mais me fascina em Hollywood é seu duplo movimento de mostrar ao público os pouco realistas bastidores das produções para depois convencê-lo que as histórias filmadas eram a mais pura realidade.
No nosso passeio pela Hollywood de 1928 – feito no calor da hora, o que o torna ainda mais fascinante – trombamos com Chaplin (sem os andrajos do mendigo que ele tornou célebre), com Douglas Fairbanks, com Mary Pickford, todos se desempenhando a si próprios (melhor dizendo, todos reforçando os tipos que o star system lhes criou). Menciona-se Gloria Swanson, àquela altura uma das grandes do cinema e que, segundo o mocinho, “antes de tudo foi obrigada a fazer comédia pastelão”. Surgem nele cenas que depois outros filmes tornariam notórias, como a personagem de Judy Garland encenando um close para o marido em “Nasce uma Estrela”, ou a personagem de Gene Kelly beijando paulatinamente os braços da nobre que ele amava numa sequência de filme-dentro-do-filme em “Cantando na chuva”. Isso sem contar o uso notável que “Show People” faz da banda sonora, incorporando na película, logo na alvorada do som, as canções populares americanas escritas por clássicos como Irving Berlin e os leitmotiven das personagens – procedimento que depois se tornaria padrão (e é padrão até hoje). “The Artist” usa em seu score alguns acordes do leitmotiv do par romântico de “Show People”, “We’ll meet again”, de Abner Greenberg. Isso para eu não me estender nas outras várias citações que ele faz do filme, e que certamente o leitor foi percebendo ao longo da leitura. Uma, final, e que salta aos olhos, é o título das películas: porque “The Artist” concentra seu universo no ator principal; “Show People”, na indústria do espetáculo.

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Influenciado por tantas obras-primas, não tem como "O Artista" não ser bom. Porém, quem conhece os filmes citados corre o risco de passar mais tempo a elencar as referências que a mergulhar na história e fruí-la. É certo que as citações dos clássicos aciona a memória afetiva, ajudando no envolvimento do público. Mas ela é feita no filme com demasiada pertinácia, o que o faz vez por outra esbarrar na obviedade, ou então, que o eixo narrativo seja abandonado em prol do exercício de erudição cinematográfica. O filme ganharia, por exemplo, se investisse no aprofundamento das personagens principais, que não passam de tipos de pouca densidade psicológica. A simplificação certamente contribui no entendimento da história para a massa do público desacostumada aos silents, mas é só se conhecer meia dúzia dos grandes da época (dramas como "The Crowd", "Aurora" ou "A última gargalhada", thrillers como "Nosferatu", épicos como "The Gosta Berling Saga" e comédias como "Lady Windermere's Fan", de gênios como Lubitsch, Murnau e King Vidor) para se relativizar seu valor.
Por isso, penso que os melhores momentos da trama são aqueles em que as citações são observadas criticamente. Valentim encarando a tela branca, tal qual Norma Desmond, mas para dizer “Você é um covarde!” é um grande momento. Mas o melhor é mesmo o abraço simbólico que Peppy dá em seu amado – abraço que cria um novo sintagma no já formidável dicionário de gestuais do cinema silencioso.
Por fim, não podemos deixar de lado a grande sacada do filme – o elemento que é mais intrinsecamente dele: o desdobramento dos signos referentes à palavra. A cena inicial, também um filme-dentro-do-filme, em nada se distanciaria de “Ed Wood” (1994) se o protagonista não dissesse, em letras garrafais: “I WONT SPEAK”. Aqui, pessoa e personagem se integram numa mesma persona – elemento caro ao cinema de estúdio, que elimina as barreiras entre o mundo dos sonhos criado para as telas e o mundo real.
Valentim passará o filme silencioso em silêncio, porém, seus gestos serão tão copiosos como eram os dos artistas que, segundo Metz, tentavam transformar cada palavra num movimento de corpo. A narrativa, sempre subjetiva, mimetizará o desespero do protagonista com relação à sonorização dos estúdios por meio de uma inteligente sequência de pesadelo, sequência em que ele escuta, intensificados, todos os ruídos do mundo, menos sua própria voz.
É certo que o filme simplifica a questão, ao transformar o bloqueio do ator com relação à palavra num desvio psicológico dele, evitando assim falar dos artistas enxotados da cena por terem vozes pouco condizentes com os tipos que representavam ou dos conluios das companhias para que algumas carreiras naufragassem. Porém, o expediente acaba por funcionar, e eu acredito que durante algum tempo se vai falar da cena final: momento catártico em que, depois de um frenético número de sapateado, a gente escuta pela primeira vez a voz do protagonista. Nessa hora me senti como o público que, depois de esperar por meia hora a primeira palavra de Greta Garbo em "Anna Christie", pôde finalmente respirar aliviado.


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Eis, abaixo, a tal sequência de "O Artista" em que é usado o score de "Um corpo que Cai". Caso haja problemas na visualização ela pode ser baixada por aqui:






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Esse post foi escrito com a ajuda de: o livro A significação no cinema, de Christian Metz; o documentário "A batalha por Cidadão Kane"; o site do Mary Pickford Institute, cuja resenha sobre Stela Maris (por Hugh Neely) me levou ao filme e Jonas Nordin, que apresenta o trecho de "Um corpo que cai" vítima de litígio no blog All talking, all singing, all dancing"; a indicação que Elisa Coelho me fez do curta-metragem. "Show People" pode ser encontrado aqui.