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terça-feira, 6 de novembro de 2018

Diário do Metropolitan III: La Fanciulla del West

Sigo com este diário atípico, escrito num distanciamento de vinte dias dos fatos. Gosto do distanciamento, que nos permite lançar olhos mais agudos às coisas. Embora em absoluto eu desdenhe dos planos fechados, mais afetivos, minha personalidade se inclina aos mais distanciados, descritivos e analíticos... 
Eva-Maria Westbroek
Vi La Fanciulla del West (de Giacomo Puccini) duas vezes, naquela famigerada semana de idas e vindas ao Metropolitan: nos dias 12 e 17. O casting de ambas as récitas era substancialmente o mesmo: Eva-Maria Westbroek foi Minnie, a “garota do oeste dourado”, espécie de estadunidense “filha do regimento”; Zeljko Lucic foi Jack Rance, o xerife que a deseja. 
Ao redor dessas duas personagens orbita um conjunto de personagens que, embora vez por outra solem, funcionam sobretudo como coro; compondo o conjunto de imigrantes do sexo masculino importado da Europa ao distante meio Oeste norte-americano: gente que viaja sonhando fortuna, mas que ali peleja em trabalhos duríssimos e sem muita perspectiva de substancial retorno financeiro. A terceira personagem que se destaca do conjunto é Dick Johnson/Ramerrez, bandido mexicano que chega disfarçado ao salloon Polka, no intuito primeiro de roubá-lo, ganhando ali, num só tempo, o coração da jovem balconista Minnie e o desprezo de Rance. 
Kaufmann/Rammerez e
Westbroek/Minnie
Interpretado desde a abertura da temporada por Yusif Eyvazov, o vilão de voz melíflua e coração paulatinamente adoçado foi substituído, a 17 de outubro, por Jonas Kaufmann, que não por acaso segue sendo dos mais festejados tenores da atualidade. A lotação da casa esteve regular na primeira récita, tanto que comprei o ingresso no dia. Naquela modalidade “estudante” que mencionei no primeiro texto desta sequência, consegui um ingresso nas primeiras fileiras da plateia, reacomodando-me, ali, sem ter ninguém de ambos os meus lados ou diante de mim. 
Já o dia 17 estava um pouco mais concorrido. Vindo de uma série de cancelamentos no MET desde 2014, quando protagonizou com estrondoso sucesso Werther (Jules Massenet), Kaufmann foi visto com desconfiança pelo público nova-iorquino até a última hora: um dia antes da récita ainda havia quantidade expressiva de ingressos para todas as categorias; e mesmo no dia eu consegui trocar o meu (na mesma mencionada modalidade “estudante”), que era originalmente para o longínquo “Family Circle”, para a “Grand Tier” (no segundo andar da casa, orientação central, lugar bastante bom). 
Palco do MET visto da "Grand Tier"
Faço a perfumaria da coisa, aqui, por razões práticas. Primeiro, como sugestão aos eventuais novos frequentadores do local: embora eu tenha me mobilizado a adquirir ingressos com antecedência, em detrimento do que ocorre nas grandes casas de óperas do mundo no MET nós podemos, salvo raríssimas exceções, adquiri-los pessoalmente, na semana ou mesmo no dia da performance
Mas quero também ponderar sobre as diferenças entre os públicos desta casa e de outras casas de óperas notórias: além dos frequentadores fiéis, e de gente que ali aporta ou porque ama ópera, ou porque foi seduzido pelo MET on HD, o grosso do público pareceu-me composto por turistas, que passam pelo MET para o incontornável lustro cultural da viagem. A considerar pela lotação da casa nas récitas a que compareci, Anna Netrebko parece ter sido a única cantora lírica a migrar do star system operístico à cultura massiva, atingindo o status de superstar
Eva-Maria Westbroek é Minnie em La Fanciulla Del West
Voltemos, agora à La Fanciulla..., esta ópera de forma e conteúdo tão deslocados da produção de Puccini. Em primeiro lugar, no que toca a um tema caríssimo meu, a relação da obra com o teatro e (especialmente) com o cinema. O compositor italiano foi criticado à época por tomar tema tão supostamente alheio à sua cultura. Um western à italiana? 
Não li, ainda, texto dedicado às bases cinematográficas desse enredo. O certo é que, embora o gênero western seja considerado tipicamente norte-americano (André Bazin considera-o mesmo uma das bases da cinematografia do país, além de construtor simbólico, no plano cinematográfico, da nação e do homem estadunidense), ele se espraiou rapidamente pelos países da Europa, por meio do cinema. 
Pesquisadora de cinema mudo de profissão, acompanhei surpresa, na Giornate del Cinema Muto do ano passado, a série de westerns rodados na Europa em paralelo aos produzidos nos Estados Unidos, entre fins de 1900 e princípio dos anos de 1910: produções francesas, italianas, de contornos próprios, mais livres e bem-humoradas que as norte-americanas, mas respeitosas à matriz estadunidense e fiéis à sua estrutura (os interessados podem ler as minhas notas de alguns exemplares desta produção aqui). 
Poster de Sulla Via Dell'Oro (1913), exemplo de western italiano
Blanche Bates em
The Girl of the Golden West
Se Puccini já provavelmente se havia deparado com o western a partir de filmes tanto europeus quanto norte-americanos, transladados para a Itália, ele teve acesso documentado a produções do gênero quando esteve no MET em 1907, para a produção de Madame Butterfly. Em Nova Iorque, compareceu a encenações de duas obras teatrais diferentes, adaptadas pelo dramaturgo, empresário e clérigo (!) David Belasco (autor da adaptação teatral de Madame Butterfly, encenada na Broadway umas poucas vezes no ano de 1900), ambas que tomavam como pano de fundo a Califórnia dos tempos da corrida do ouro: The Rose of the Rancho e The Girl of the Golden West. Esta última, que depois daria origem a La Fanciulla del West era protagonizada pela mesma atriz que dera vida à Cio-Cio-San de Butterfly, Blanche Bates. Foi sucesso estrondoso na Broadway, encenada mais de 250 vezes ao longo de três temporadas, de 1905 a 1908. 
Puccini se havia encantado pelo teatro de Belasco anos antes, quando assistiu à Madame Butterfly, também protagonizada por Bates. A atmosfera criada pela produção, sobretudo os jogos de luz que insinuam a passagem do tempo da noite à manhã que Cio-Cio-San espera pelo amado, o teriam seduzido ainda mais que o texto (parafraseio aqui o histórico da produção escrita na Playbill da peça, o qual, aliás, tem umas inconsistências que procurei corrigir usando o Internet Broadway Database). 
David Belasco
Neste encontro de Puccini com Belasco e Blanche Bates talvez se delineie um turning point na carreira do compositor. Em La Fanciulla del West, Puccini quase que totalmente abre mão no esquema tradicional de árias e duetos em prol de uma partitura que teça nexos dramáticos, em consonância com um libreto muito tributário do teatro. Tanto que porção não desprezível dos sons da obra é incidental, à maneira como se dava então no teatro. A música também coopera na construção daqueles espaços virgens e imensos, e dos dramas que emergem mais no jogo de cena que no canto, a exemplo do tenso carteado entre Minnie e Rance, o qual decidirá o destino de Ramerrez: apoiado em silêncios, na declamação e em pizzicatos
Belasco é personagem fundamental ao teatro e ao cinema do período, tendo descoberto, entre artistas notórios, Mary Pickford e Barbara Stanwyck (as quais rapidamente migraram para o cinema). Interessado pela cena teatral, não é exagero afirmar-se que Puccini contribui para que se migre a estrutura e a mise-en-scène deste âmbito (e do âmbito cinematográfico, que tanto dialogava com o teatral) para a ópera. Se La Fanciulla del West tem uma fluidez desusada quando consideramos a produção do compositor, é porque ela é tanto mais melodrama (na acepção primeira: drama teatrao acompanhado de música) que ópera. 
Poster da montagem teatral
No plano temático, todas as coordenadas do melodrama western estão presentes na ópera. Eu poderia fazer correr rios de tinta (ou, neste caso, de bits...) discorrendo sobre o melodrama teatral e a sua apropriação pelo cinema, coisas que pesquiso há tempos e que já se transformaram em partes inalienáveis de mim mesma. Para resumir a ópera: a recessão econômica norte-americana das últimas décadas do século XIX obrigou a união de companhias fixas especializadas em teatro melodramático e em musicais, determinando a concepção de uma nova dramaturgia, que passava a valorizar tanto os bailados quanto o drama. 
Se já o melodrama histórico oriundo da Europa tem como característica primordial a mistura do alto e do baixo, do páthos e do humor, isto se intensifica no contexto norte-americano. Obras como The Girl of the Golden West testemunham esta evolução do gênero no “novo mundo”. 
Apropriada por Puccini (o libreto é de Guelfo Civinini e Carlo Zangarini), La Fanciulla del West tem como protagonista uma virginal heroína melodramática, que, todavia, ao contrário das personagens congêneres europeias, frágeis e submissas, é forte e ativa. Em torno de si, orbitam dois homens cuja vilania é relativizada: Rance e Rammerez. 
Rance, o xerife, é personagem fundamental dos westerns – homem que simboliza a implantação da justiça naqueles vastos rincões. 
O gênero western epiciza a saga da civilização do Oeste americano, a paulatina imposição da lei escrita como substituta da vingança individual (o olho-por-olho, dente-por-dente). 
La Fanciulla... flagra este desdobramento, colocando em cena um juiz que, para fazer justiça, precisa refrear seus instintos amorosos cocom m relação à mocinha e, por conseguinte, sanguinários em relação ao homem que ela ama. Juiz que, no entanto, é dividido entre a lei e o cavalheirismo: ao ponto de permitir que Minnie reste com Ramerrez, ao perder para ela no carteado. Nem Minnie é a pureza stricto sensu – já que, para conservar o seu amado, trapaceia no jogo –, nem Ramerrez é o herói típico melodramático, desprovido de máculas: 
Entra em cena disfarçado, topos clássico do gênero. É mexicano, nacionalidade por excelência dos vilões dos westerns teatrais/cinematográficos do período. Mas é homem dividido entre o papel de bandoleiro – herança maldita deixada pelo pai, diz ele de modo pungente – e o desejo de ascensão moral. A elevação espiritual/purificação moral que ele vivencia, sob o teto de Minnie – como ela diz de boca-cheia, no desfecho da história –, e o final feliz de ambos são exceção se considerarmos o gênero melodramático, nos quais ao bandido é dado usualmente o patíbulo. 
Essas características fazem de La Fanciulla del West uma obra preciosa. No que toca à protagonista, nenhuma ópera italiana tem personagem tão preponderante. O papel requer uma intérprete excepcional, única mulher a dividir a cena com as duas fortes personagens masculinas e um grande coro de homens. 
No Metropolitan, o papel coube a Eva-Maria Westbroek, que se saiu deslumbrantemente bem (foi, aliás, o meu maior encantamento naquela semana). Mulher alta, rosto firme, voz cheia e sensual, Eva-Maria é, em cena, daquelas fêmeas proverbiais. Além de ótima cantora e atriz, tem o physique du rôle perfeito para a personagem, que ela veste logo de saída, na brilhante cena inicial: quando, ao mesmo tempo firme e doce, adentra o salloon em meio a uma contenda, tingindo de lirismo, em consonância com as notas de Puccini tão bem conduzidas por Marco Armiliato, a testosterona ambiente. Falo de physique aqui no sentido lato. Ela e Kaufmann já não são os jovens requeridos para o papel. E, por isso mesmo, dão com extrema beleza corpo à dor da solidão e à necessidade de amor.
Nenhum dos dois vilões da obra é vilão clássico, incontornavelmente odiento. Zeljko Lucic, que é um brilhante Scarpia (arqui-vilão de Tosca),é um ótimo Jack Rance, obstinado e comovente. 
A cena que se segue ao pedido de casamento que ele faz a Minnie, no primeiro ato da ópera (quando ela lhe lembra risonha que ele já é casado), a narração de sua solidão e necessidade de afeto, é de comover as pedras. Além de grande cantor, que ator ele é! Saí de La Fanciulla mais mexida com Eva-Maria e com ele que com ambos os Ramerrez. 
Aliás, a personagem do barítono é, nesta obra, bastante mais interessante e assertiva que a do tenor. Ramerrez/Johnson tem em La Fanciulla a passividade dos mocinhos melodramáticos clássicos, conduzidos ao sabor do destino. Jonas Kaufmann percebe isso muito bem. Yusif Eyvazov – que achei um belíssimo cantor, no concerto que ele dividiu com Netrebko em São Paulo – desincumbiu-se com consistência da personagem, mas sem brilho. Kaufmann, além da sorte de ser lindo de morrer e ter sex appeal, tem ainda o carisma necessário para interpretar uma personagem que durante tempo considerável está em cena sem nada dizer. Ele tem o corpo/a inteligência para estar em cena sem nada dizer e, ainda assim, significar. 
Um exemplo: há uma cena passada na cabana de Minnie, no ato 2, em que Johnson, baleado, precisa se esconder de Rance. Há na casa um sótão, para onde ele sobe (a produção faz uso dos cenários milimetricamente realistas produzidos nos anos 90). Desenrola-se então uma longíssima cena entre Minnie e Rance, que culmina com a descoberta de Rammerez. Durante toda a cena, Yusif manteve-se deitado, longe dos olhos do público. Kaufmann demora longo tempo para desmoronar, sustentando-se nas paredes do sótão até que seu personagem não aguente mais e deslize para o chão. Ópera é também teatro, ele o sabe. 
Mas Ramerrez sem dúvida protagoniza o último ato da ópera, onde há uma das poucas árias da produção: Ch’ella mi creda, na qual o bandido corrigido por amor, e que agora está prestes a ser enforcado, pede aos perpetradores que Minnie não fique sabendo de seu destino. 
O Kaufmann que amamos, repleto de drama, delicadeza e paixão, aparece todo ali, com seu timbre escuro tão bem dominado. Ele e a maravilhosa Eva-Maria (que pessoalmente é tímida!...) – a qual interrompe intempestivamente o evento funesto para salvar o seu homem – muito se merecem. 

Remeto aqueles que quiserem uma comparação mais detalhada entre os dois Rammerez à resenha publicada pelo New York Times por ocasião da estreia de Kaufmann, que pode ser acessada por aqui.

Vi o terço final da ópera de um assento que vagou na plateia, a partir 
do qual registrei os aplausos finais.

quinta-feira, 21 de abril de 2016

A ópera ilumina o teatro: “Adriana Lecouvreur” (1902) no São Pedro (SP, abr. 2016)

O Theatro São Pedro encenou, durante o mês de abril, esta ópera de Francesco Cilea, raríssima na cena paulistana, cuja première mundial deu-se em Milão em 1902. O acaso feliz levou-me até ela no justo dia em que o país fervia numa encenação de teatro do absurdo digna de Ionesco. Antes, muito antes os derradeiros passos da vacilante Adriana pelos sendeiros da vida que a má pantomima que nos fizeram representar longamente os nossos digníssimos parlamentares... 
Na plateia do São Pedro, meu tête-à-tête com “Adriana Lecouvreur” proporcionou-me um daqueles encontros raros comigo mesma. Em minha doce ilusão de eterna estudante, sonho encontrar o elo perdido que une as artes. Francesco Cilea e o libretista Arturo Colautti apontaram-me o caminho, ao tecerem o manto bordado com que Adriana sonharia nos palcos da arte e da vida. 
Poster da produção original 
Esta ópera baseia-se, como tantas, numa obra teatral, a peça de Scribe e Legouvé “Adrienne Lecouvreur”, de 1849. Trata-se de um melodrama típico, repleto das intrigas, corações partidos, peripécias, sangue e lágrimas comuns ao gênero. Não por acaso, entrou para o repertório de Sarah Bernhardt, tornando-se um prato cheio para os malabarismos de sua voix d’or, não sem deixar de agradar uma personalidade artística notável do fim do XIX como Eleonora Duse, que revolucionou a cena de então ao despi-la dos seus tradicionais ouropéis para imprimir uma inusual naturalidade às suas personagens. 
A Adrienne histórica era feita da mesma cepa que Duse e Sarah, como elas, a principal atriz de seu tempo: foi a grande diva da Comédie Française no princípio do século XVIII, outra revolucionadora da cena, da qual procurou eliminar a declamação em prol de uma elocução menos alambicada. 
Sarah Bernhardt em
Adrianne Lecouvreur (1896)
A adaptação da cena teatral para a operística era, então, moeda corrente. Duas óperas célebres no repertório ocidental saíram de originais da lavra de Scribe: L’elisir d’amore, de Donizetti e La sonnambula, de Bellini, adaptação de uma peça teatral e de um balé-pantomima, respectivamente. O próprio Scribe fora libretista, autor de Robert le diable, ópera com música de Meyerbeer. Quanto mais remontamos no tempo, mais percebemos o constante entremear das artes, que joga por terra a segmentação clássica, segundo a qual a ópera e a tragédia eram os exemplos maiores de manifestações artísticas, cabendo a gêneros como o melodrama, a opereta ou a pantomima o rês-do-chão da arte. Prova incontestável disso é “Adriana Lecouvreur”, que além de tomar como fonte uma obra teatral, presta uma bela homenagem à ribalta. 
“Adriana...” é contemporânea da “Tosca” de Puccini, ópera de 1900 baseada no melodrama escrito anos antes por Sardou. Ambas inscrevem-se no esforço de deslindamento de novos percursos para o gênero que acabara de perder dois de seus grandes mestres, Wagner e Verdi. 
No final do XIX, Puccini e Leoncavallo reverberavam renovações estilísticas e sociais, trazendo para o cerne da cena operística tipos até então desdenhados, como a boemia francesa, as classes populares italianas e a classe teatral. O povão demoraria até os Românticos para ganhar foros de heroicidade. Já os profissionais da cena, malgrado a grande relevância que tinham numa sociedade para a qual o teatro era um dos principais divertimentos, traziam sobre os ombros séculos de estigmas sociais –basta dizer que Sarah Bernhardt, uma das maiores de então, era observada de perto pela polícia responsável pelo controle da prostituição (como nos comprovam os registros policiais que integram a recente exposição Splendeurs et misères des courtisanes, do francês Musée d'Orsay).  
Como Tosca, Adriana ganha altas doses de humanidade. Já falei de Tosca ao vê-la pelo espelho de Greta Garbo (em The Mysterious Lady, de 1928). Assim como a obra de Puccini, a de Cilea coloca em cena a autorreferência em busca do realismo, moeda corrente na arte do período. A obrigatoriedade dos cantores líricos ao antirrealismo, a se chegarem ao proscênio e cantarem, ganha em verossimilhança quando os enredos os colocam a representar efetivamente os papéis de outros. Se “Tosca” atinge isto no primeiro ato, deslizando-se posteriormente para o comentário político, “Adriana Lecouvreur” é atravessada por tal intuito. 
O jogo cênico principia a colocar o público diante do camarim da grande diva, que se prepara para adentrar a cena. Ali, à reprodução de trechos do papel se segue a visita do amado Maurizio, o suposto soldado (na verdade, um nobre galanteador, sucessor direto ao trono francês) a quem a atriz entregara seu coração. Dali por diante, vida e arte se misturam e se iluminam: 
Adriana é a plebeia com porte de rainha. Naquela sociedade estamental de princípios de 1700, ela ouvirá do amigo Michonnet que a única nobreza que lhe cabe é aquela emprestada pela cena do teatro: “Deixe os grandes homens com seus grandes problemas.” A rainha de mentira jamais poderia ascender à realeza. No entanto, a história da jovem atriz é lida pelo espelho do século XX, crescentemente libertário, no qual uma “mera atriz, obra da Musa” valia tanto ou mais que uma nobre. O teatro era o palco da nova aristocracia, daí a Michonnet pedir que Adriana não abandonasse sua carreira, a única verdade num mundo que ruía. Mas aí já era tarde. 
Ao se ver traída por Maurizio, amante da Princesa de Bouillon, Adriana denuncia-os publicamente por meio do monólogo da Ariadne Abandonada – Scribe e Legouvé chegam aqui às alturas de Shakespeare. O resultado é trágico: Adriana é envenenada pela rival, esvaindo-se vagarosa como Violetta Valery fizera cinquenta anos antes, nos braços do homem que ela mais tarde descobrirá que verdadeiramente a ama. 
O saldo da ópera – cabalmente reproduzido pela montagem paulistana – é o convencional alçado às alturas do sublime. O dramalhão que é característica fundamental do enredo de “Adriana Lecouvreur” fica em segundo plano, diante da sinceridade que pauta a construção da heroína, homenagem às grandes divas do teatro ocidental, vistas por tanto tempo com reservas. A música de Cilea, repleta de belíssimas melodias, definitivamente contribui para a elevação do enredo comezinho a alturas desusadas. Uma ária como Io son l’umile ancella não deve nada à celebérrima Vissi d’arte, vissi d’amore, da “Tosca”, duas delicadas profissões de fé: 

Eu sou a serva humilde/ do gênio criativo./ Ele me dá voz,/ Eu a envio ao coração.../ Sou a voz da poesia,/ o eco do drama humano,/ o instrumento frágil,/ escrava nas mãos do criador.../ Suave, alegre, terrifiante/ meu nome é Fidelidade/ Minha voz é um suspiro/ que morre com o amanhecer... 

Ao alinharem ópera e teatro, homens como Cilea e Puccini prenunciaram a profunda influência que a cena lírica teria da teatral. Se tenho uma admiração quase que religiosa pelos grandes atores – que são meu ideal inatingível, já que, além de tímida, não tenho talento algum para os palcos –, dobro-me de joelhos diante de um bom cantor lírico: o poder de deslizar entre a contenção dramática do teatro e o arroubo sentimental da ópera é algo que para mim tem foros de magia. O Teatro São Pedro apresentou, no domingo, um bom exemplo disso, dispondo em cena um elenco (dirigido por André Heller-Lopes) disposto a viver com fúria as peripécias – de um gosto por vezes duvidoso – inventadas duzentos anos atrás. 
A sinceridade artística supera o que há de perecível nos enredos. Minha objetiva mental terá para sempre registrado o ódio tragicômico que Denise de Freitas imprimiu à sua Princesa de Bouillon, a delicadeza do Michonett de Johnny França, a suavidade com que Eric Herrero conduziu seu Maurizio, nos derradeiros momentos da vida de Adriana, e a heráldica e, não obstante, a doçura que Daniella Carvalho emprestou à protagonista, das glórias da ribalta até a crua realidade da morte. Temos entre nós grandes vozes, que ainda agora enchem meu coração, erguendo-me a dez metros do chão, para além das tristuras da vida.
*
Salvo indicação ao contrário, todas as fotografias da montagem paulistana - levantada em coprodução com o Festival de Ópera de Manaus - eu retirei da página de Facebook de Heller-Lopes (sem pedir licença, do que me desculpo...). Elas dão a ver as belezas do figurino (de Fábio Namatame) e da cenografia (de Renato Theobaldo).

domingo, 17 de agosto de 2014

A diva vai à ópera: autorreferência em “A Dama Misteriosa” (1928), com Greta Garbo

Curioso esse The Mysterious Lady, segundo filme de Garbo dirigido por Fred Niblo (o primeiro, The Temptress, de 1926, é uma obra-prima). A história, numa primeira vista d’olhos parece não passar de “veículo” à exibição da atriz, mercadoria valiosa na época – os stars valiam, então, mais que as histórias; estas importando, sobretudo, enquanto meios de veiculação das imagens deles ao redor do globo. O plot: Karl (Conrad Nagel), jovem militar austríaco em ascensão, apaixona-se por uma bela jovem apenas para descobri-la uma espiã russa. 
A descoberta, tardia (ela enreda o rapaz para apoderar-se dos documentos secretos que estavam em posse dele), fá-lo ser degradado e preso, e patrioticamente desejar vingança. É, portanto, uma história de ranço belicoso, a porejar repúdio pelo incompreendido elemento estrangeiro, como tantas já rodadas (e que ainda o seriam) na América vinda da primeira Grande Guerra. 
Não é neste enredo mais epidérmico que encontraremos alento, mas sim na imagem etérea que ele constrói de Garbo, imagem para a qual concorrem, além da fotogenia da atriz (aliada a uma inteligência de expressão oriunda de um talento inato – a jovenzinha de vinte e dois anos exibe, aqui, a eternidade dos deuses, coisa que espantosamente fizera desde sua primeira produção, The Gosta Berling Saga, rodada quando ela tinha dezessete); a excelência dos novos processos de fotografia; e, finalmente, o subtexto, que dá carnadura à trama. 
Em Greta Garbo: a cinematic legacy (nunca é demais recomendá-lo aos admiradores da atriz, de fotografia e da Hollywood dos anos 20 e 30), Mark Vieira informa-nos que a obra beneficiou-se de uma então recente transição técnica da fotografia: a adoção do filme “panchromatic” (em substituição ao “ortho”) e das luzes “Mole”, que suavizavam e iluminavam as imagens. Sublinha-se, assim, o etéreo da persona criada por Garbo. 
Mas, The Mysterious Lady não seria um veículo tão apropriado à atriz não tratasse ele, também tematicamente, de retirá-la do rés do chão onde transitam os reles mortais, elevando-a a um intangível céu estrelado. 
Garbo (tímida e antissocial, segundo aqueles que a conheceram nos seus anos de MGM) nunca foi, em cena, a típica girl norte-americana. Nunca trabalhou em loja de departamento, em casas de família. Nunca privou com garotas de sua idade. Seu rosto parecia talhado às grandes tragédias: às vicissitudes amorosas, à solidão, à fome, ao silêncio. Daí sua Dama das Camélias (1936), suas Annas Kareninas (além da versão de 1935, ela rodou uma silenciosa: Love, de 27), sua Anna Christie (1930). E Queen Christina (1933), Romance (1930) – a rainha e a prima-dona, rainha em microcosmo. Sua única “ingênua” stricto sensu foi, até onde me lembro, a Marianne de The Divine Lady (1928), ironicamente seu único filme perdido, e mesmo nele, a mística que não se encontra no conteúdo revela-se no título. 
Em A Dama Misteriosa, a prima-dona se junta à movie queen. Atrelam-se implicitamente os caracteres da diva de ópera e da diva do cinema. Há autorreferência a rodo nessa obra, além de um humor ferino subjazendo à básica historinha de amor entre a espiã (arrependida) e o soldado. Garbo, com aquela face superlativa que a natureza e a Max Factor lhe deram, desenha a personagem com sutileza desusada – ressaltada pelo poder do filme pancromático –, revelando, na mesma medida, a passionalidade preponderante do papel, e a graça metalinguística que jaz no subtexto da obra. 
Ela é primeiramente tomada num camarote de ópera. Ela observa a prima-dona; o galã a vê. Nós a vemos pela reflexão dos olhos dele: aquele ser sublime, imponente, intangível. Isso o perde – e a nós, míseros iludidos, incapazes de perceber a encenação que se superpõe à essência daquela mulher. Mas disso, da encenação, nós (ele e o espectador) apenas nos daremos conta mais tarde. A graça dessa sequência é que a personagem está a representar tomando o palco como espelho. A prima-dona que se dilacera em cena é Tosca, da ópera homônima (de 1900, de Puccini, libreto de Illica e Giacosa) igualmente autorreferencial.
Parênteses: embirrei com o gênero operístico durante muito tempo (burrice minha, nem preciso dizer) pelo over dos enredos, como se tudo precisasse obrigatoriamente seguir a cartilha realista para que valesse alguma coisa. Mas acontece também que Puccini era, como seus libretistas, contemporâneo da busca do teatro pelo realismo cênico. Vem daí, possivelmente, seu desejo, nesta ópera, de colar a personagem à ação, narrando a história da prima-dona - personagem de natural grandiloquência - que se vê obrigada a se entregar a um rico e influente pulha para ter em troca a liberdade do amado, pego em atos políticos contestáveis. 
Tania (Greta Garbo) observa o encontro entre Tosca e o barão Scarpia, chefe de polícia romano. No palco, a diva, contrita, canta possivelmente a celebérrima Vissi d’arte, vissi d’amore (Vivi de arte, vivi de amor), ária se tornará leitmotiv do filme – escolha sui generis, uma vez que, sublinhemos, estamos falando de um filme rodado ainda durante a voga do cinema silencioso. Há aí uma flagrante tomada de posição da MGM em favor do filme silencioso, em detrimento do falado – The Jazz Singer, da Warner, lançado havia poucos meses, virava a indústria do cinema de ponta cabeça. 
A música, elemento-chave da ópera, se tornará, no filme, imagem. Vissi d’arte reaparece primeiro na casa de Tania, tocada pelas mãos do jovem militar já semienredado pela espiã. Ela a canta: “Vivi de arte, vivi de amor/ Nunca fiz mal a ninguém/(...) Sempre com fé/ Adornei com flores os altares/ Dei joias ao manto de Nossa Senhora”, etc. etc. Impossível que o público da época, tão contemporâneo a esse sucesso de Puccini, não percebesse a referência, ainda que implícita, silenciosa. Possivelmente, mesmo as orquestras das salas de exibição reproduziam musicalmente o tema, nos momentos cabíveis. A versão de The Mysterious Lady recentemente lançada nos EUA (num box imperdível, com Flesh and the Devil e The Temptress) infelizmente não o percebeu – sua trilha original não remete em nenhum momento à ária, ou à Tosca de modo geral. 
O uso que o filme faz da canção é, claro, sardônico. Tania vivia de fazer mal aos outros. Mas a mise-en-scène criada pela mulher ardilosa prepondera. A câmera alia-se a ela, e então veremos um prodígio de fotografia – o cinema silencioso atingia as culminâncias da técnica ironicamente em seus estertores – narrar, paulatinamente, a evolução do caso amoroso: jogos de luzes e sombras sobre o casal, na mansão de Tania, enquanto ele está ao piano e ela canta; delicadeza de fábula à sequência de ambos no campo: as flores, o riacho, a cascata, as árvores, suavemente apreendidos, contribuem na consecução do quadro pitoresco. O que o filme busca é bem isso: o pitoresco da paisagem e as cambiâncias sedutoras do cinza para construir-se explicitamente como ficção. 
Uma vez na Rússia, os dois personagens continuarão a fingir – desta vez, estando Karl já cônscio do verdadeiro papel de Tania. Quando ele penetra no covil dos agentes russos e se vê novamente diante da mulher responsável por sua degradação (a cena do rebaixamento do militar é igualmente notável), decide denunciar-se em público. Ela intervém. No intertítulo, lê-se: “Nós temos um público perigoso, músico./ Devemos desempenhar bem.” 
O reencontro do casal faz emergirem umas necessárias convenções do cinema dos anos 20. Tania percebe que ama o militar, que sempre o amou. Após um último – inesquecível – número de Vissi d’arte, reverberado pela diva muda, o casal roubará, com quiproquós dignos da Tosca (com direito mesmo a um assassinato, cometido pelas mãos da moça), certos documentos que redimirão Karl. E, ironia final com a malograda prima-dona de Puccini: na película, os pombinhos ameaçados viverão felizes para sempre...