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domingo, 24 de fevereiro de 2013

Oscar 2013. Parte 5: “Hitchcock”

“Hitchcock”, de Sacha Gervasi, é outro que presta homenagem ao cinema clássico. Homenagem de qualidade média, é preciso que se diga, malgrado o interesse do assunto escolhido: a carreira de Alfred Hitchcock no final dos anos 50, mais especificamente a faixa de tempo que compreende desde o sucesso de “Intriga Internacional” e até o sucesso retumbante de “Psicose”. 
Desnecessário dizer que o filme faz hagiografia. O tema é sagrado demais, e o público-alvo demasiado dado a sacralizações, para que um filme sobre Hitchcock vença o panegírico e mergulhe na humanização do mito... 
O original e a cópia
Falei meses antes sobre o ótimo “Fascinado pela Beleza”, em que Donald Spoto esmiúça a relação conturbada que Hitchcock tinha com o sexo feminino, sobretudo a esposa e muito especialmente as estrelas com as quais trabalhava. Nada disso há neste “Hitchcock”, cujo título tem a pretensão de englobar a universalidade da obra e das personas privada e pública do mestre do suspense.
Hitch aqui é o genial beberrão que apenas intimidava Janet Leigh visando tirar dela a excelência, e que no final das contas amava apaixonadamente sua Alma Reville – prova é o romântico beijo público que Sacha Gervasi faz as personagens do diretor e de sua esposa trocarem no final, enquanto compartilham dos aplausos pelo sucesso de “Psicose”. 
Hitchcock (Anthony Hopkins) e Alma Reville (Helen Mirren)
Trágico que, nesta altura do campeonato, Hollywood ainda tenha de se apoiar no happy end para vender seus produtos. Porque não necessariamente uma leitura do cinema clássico precisa copiar-lhe o epílogo (exemplo claro é “The Master”, que com qualidade relê a época com olhos modernos). O roteiro de “Hitchcock” possibilitava andamentos mais argutos que esse. 
Scarlet Johanson, Janet Leigh, na
antológica cena do chuveiro
 
Exemplo? O Hitch de Hopkins (que está bem como o personagem título, embora eu o tenha achado algo posado nalguns momentos, como se ele fosse o medalhão vivo do biografado) diz: “Em Hollywood, o diretor apenas é tão bom quanto a sua última obra.” E o filme, ao invés de ler a assertiva pela chave dramática, demonstrando o terror que é a necessidade constante de se superar no métier para ser bem considerado, ao invés de dar relevo aos contornos trágicos daquele homem de ego imenso cuja saúde se deteriorava e as relações interpessoais idem, ao invés disso tudo decide por uma abordagem upbeating, que toma Hitch como o homem de visão privilegiada que luta contra tudo e contra todos para ver sua obra-prima na tela branca. Ao fazer isso, a obra acaba por tomar “Psicose” como a maior das obras do diretor, confundindo o seu sucesso de público nos cinemas com a sua qualidade empírica. 
Um Hitchcock afável pega carona no carro da estrela
Não, não estou pintando a anti-imagem de Hithcock – que, diga-se de passagem, para mim é um deus. Porém, desde meu ponto de vista, seria intelectualmente mais estimulante que o público descobrisse a genialidade do homem por si só, ao invés de vê-la ensinada por a + b no correr deste “Hitchcock”. 
Mas o filme enfrenta um problema ainda mais sério: sua falta quase que completa de ritmo. Ele é escolar, notamos desde o princípio. Documentalmente escolar, logo perceberemos decepcionados, pois escapa de todas as chances que tem de construir tensão e suspense em prol da mais convencional das narrativas, que soma uma leitura açucarada do relacionamento de Hich com sua senhora e com sua estrela; e que prefere todo o tempo agrupar fatos de pesos semelhantes em detrimento de construir uma narrativa que estabeleça momentos de clímax (coisa que o biografado tão bem sabia fazer). 
“Hitchcock” não é um filme ruim, mas não alça grandes voos – tampouco os intenta. É, portanto, esquecível. É óbvio, coisa que Hitchcock não era. Duvido que o diretor aprovasse essa homenagem que lhe prestam, mesmo sendo narcisista como era...
*
Só agora percebo que nada disse sobre Helen Mirren, que desempenha no filme a esposa do diretor. Talvez porque o papel que deram a ela seja apagado demais... Mesmo assim, Mirren está bem, como sempre. Uma pena não terem lhe ampliado as possibilidades de brilhar. Ela certamente não decepcionaria. 

quinta-feira, 16 de agosto de 2012

Hitchcock, o gênio assombrado


Ninguém mais ou menos familiar com a obra de Alfred Hitchcock é capaz de negar que ela apresenta um denso compêndio de neuroses.
Nela desfilam homens feridos física e/ou psicologicamente por armas às vezes tão mortais quanto desconhecidas. Homens fechados ao relacionamento amoroso, como o agente da inteligência norte-americana em tempos de guerra Cary Grant, de “Interlúdio” (Notorious, 1946), que convence a mulher de costumes fáceis Ingrid Bergman a se juntar aos Aliados, casando-se com um espião nazista. Homens aos quais a Guerra só fez emergir um complexo pré-existente, como o suposto médico e suposto assassino Gregory Peck de “Quando fala o coração(Spellbound, 1945), curado com a conjuração da psicanálise freudiana pela Dr. Constance Petersen (novamente Ingrid Bergman). Homens esquivos como o taxidermista Norman Bates de “Psicose”, que cobre com a capa da afabilidade outro feixe de complexos altamente tributários de Freud; cuja relação com a mãe se desdobra do complexo de Édipo para a projeção/identificação. 

Ou voyeristas como o fotógrafo ao qual James Stewart dá corpo em “Janela Indiscreta” (Rear window, 1954), a fugir da relação de carne e osso com a bela Grace Kelly para mergulhar o olhar na apreciação detalhada da vida alheia, a partir das lentes de aumento da teleobjetiva. 
Uma mente sã certamente não seria capaz de engendrar tais fantasmas. O próprio Hitchcock tratou de construir literatura a seu respeito, como forma de estabelecer os lastros reais, biográficos, das fantasias que dirigiu. A longa entrevista dada já no fim da vida a Truffaut é preciosa por mostrar, no esmiuçamento de alguns personagens, o quanto eles dialogam com as neuroses de seu diretor. A prisão que os pais lhe teriam impingido certa vez, quando ele ainda era garoto, se reproduz cinematograficamente, na sua obra, numa série de indivíduos atados. Atados, muitas vezes, por algemas empíricas, como a lourinha June de “O inquilino sinistro” (The lodger, 1927), presa pelo noivo como um simbólico (e sinistro) prelúdio do casamento; Madeleine Carroll, a quem Robert Donat subjulga nos “39 Degraus” (The 39 steps, 1935), a união forçada transformando-se rápido na aproximação amorosa; ou a algema do suspeito de terrorismo de “Sabotador” (Saboteur, 1942), a qual o tio cego da mocinha simbolicamente não enxerga – enquanto que a deficiência visual o faz ver aquilo que a aparência não mostra; a inocência do jovem perseguido. 
Os objetos cênicos adquirem valor simbólico nos filmes do mestre do suspense. Isso, claro, não é exceção em sua obra. Ocorre em todo grande cinema. Mas falamos de Alfred Hitchcock, que transformou-se a si num de seus mais interessantes personagens. O legado tão precioso que ele deixou à cultura não poderia deixar de motivar reflexões sobre a mente que o construiu. 
Um trabalho notável neste sentido é Fascinado pela beleza, de Donald Spoto, estudioso de cinema com longa lista de publicações na área e cujo estudo sobre a obra de Hitchcock gerou uma tríade de livros, da qual este é o último. Spoto abre o volume com uma longa lista de agradecimentos às atrizes que ele entrevistou. Nomes como Ingrid Bergman, Grace Kelly, Kim Novak, Eva Mary Saint, Tippi Hendren – praticamente todas as protagonistas figuram nela. Ao fim, uma bibliografia igualmente volumosa explicita que a obra não é fruto de meras conjecturas. Estas partes do texto são fundamentais, pois as conclusões da análise de Spoto são estrondosas. 

Os críticos que torcem o nariz para a leitura biografista do objeto artístico terão dificuldades de debelar a argumentação construída pelo crítico. Spoto soma às entrevistas com as atrizes, atores, roteiristas e assistentes, a análise dos textos originais dos roteiros dos filmes e outros documentos de produção, para pintar com cores penetrantes a imagem do homem Alfred Hitchcock: encarcerado no seu tipo físico de glutão, apaixonando-se como um jovem romântico por suas estrelas ao ponto de desejar possuir-lhes o corpo e a mente. 
Pode-se, no início, acusar o sr. Spoto de sensacionalista ou bradar acerca da inutilidade de sua empreitada. 
Mas em certos trechos brilhantes, em que o crítico consegue alinhar as informações de suas fontes ao rendimento cênico de sequências de alguns filmes, só nos resta concordar com ele. Um exemplo é a análise de como sua paixão por Ingrid Bergman, explicitada em convites para martinis noturnos e na escritura de uma cena de “Quando fala o coração” que claramente aludiria a esse sentimento unilateral (a saber: a conversa entre a Dr. Petersen e seu apaixonado colega de profissão, que culmina com a seguinte resposta da doutora: “Ao me tocar você sente apenas seus próprios desejos e pulsações. Eles em nada se parecem com os meus.”), leva-o a tomá-la em primeiros planos extremamente emocionais, a tornarem-na feminina, frágil, monumental. 

Ingrid Bergman e Cary Grant, "Interlúdio" (1946)

Ingrid conseguiu manter seu diretor nas rédeas, conservando com ele uma relação de amizade para toda a vida. O mesmo não se deu com Tippy Hendren. Descoberta pelo diretor numa publicidade, a modelo sem qualquer experiência cinematográfica viu-se uma Eliza Dollittle nas mãos de um Pigmalião (ou nas mãos de um Svengali, como o próprio Hitchcock  se chamava, variante do homem que molda um ser que sacie seus próprios desejos). No pico de sua popularidade, o diretor julgava-se intocável (e efetivamente o era, como prova Spoto). Daí as tentativas de afastar Tippi Hendren do restante dos elencos de “Os Pássaros” (The Birds, 1963) e “Marnie” (1964), de colocar, no encalço da atriz, informantes a relatarem seus passos, de lhe fazer propostas explícitas. Presa por um long term contract, Hendren não via escapatória. 
Ela era a versão humana da doentia relação amorosa que vive com Sean Connery em “Marnie”. Em entrevista, Hendren conta que, durante a rodagem deste filme, Hitchcock lhe informara de que, daquele momento em diante, ela deveria estar completamente disponível para ele; sexualmente, inclusive. Spoto lembra do que a personagem de Connery diz a Marnie a certa altura do filme: “Você acha que eu sou algum tipo de animal que você enredou”, diz ela. “É isso mesmo o que você é. Dessa vez peguei algo realmente selvagem. E pretendo mantê-la em minha posse.”, ele retruca. Em rompantes românticos, o diretor externava à sua estrela os sonhos cinematográficos que nutria com ela (“Sonhei que os raios do sol entravam pela nossa casa pela manhã”...), tal e qual um garoto incapaz de diferenciar ficção e realidade, ou então alguém demasiadamente enredado pelas imagens em movimento, desejoso de tomar objetivamente parte delas. O que fazer quando o garoto iludido é, ao mesmo tempo, o artista criador da ilusão? 
Ingrid, Hitch e Gregory Peck nos bastidores de "Quando fala o coração" (1945)

Spoto faz um trabalho relevante de desvelamento do eu conturbado de Hitchcock. Um trabalho fundamental, aliás, malgrado a animosidade com que o receberam os fãs mais ferrenhos do mestre. Puxado o véu, a imagem que aparece dele está longe de ser bela, mas ela ajuda a dar complexidade à reflexão sobre a Sétima Arte. 
O analista fala muito bem sobre os medos recônditos de Hitchcock emergirem, na imagem cinematográfica, por meio de símbolos. Há nessa assertiva um tanto da psicanálise que interessou ao diretor em dois pontos fundamentais de sua filmografia, distanciados quase 20 anos um do outro: “Quando fala o coração” e “Marnie”. Há, todavia, outro tanto de cinema. A imagem prenhe de sentido, ao ponto de atingir o valor de símbolo: esta não é também a especificidade do cinema? Hitchcock não nos deixa perder de vista o parentesco entre o símbolo que confere perenidade ao cinema e o símbolo por meio do qual o psicótico transfigura a realidade, já que é incapaz de lidar plenamente com ela. 
O cinema foi o divã e a fábrica de sonhos de Alfred Hitchcock. Deu-lhe a possibilidade de apresentar seus fantasmas à apreciação das massas. Exímio contador de histórias visuais que era, fê-las mergulhar em universos vários, na esteira das estrelas e de suas histórias de mistério. E acabou, ele próprio, por mergulhar neste mundo de faz-de-conta, Svengali sedento de novas Trilbies às quais pudesse transformar em rainhas para depois por elas se apaixonar. 
Kim Novak, "Um corpo que cai" (1958)

Há em sua trajetória muito do doentio percurso da personagem de James Stewart em “Um corpo que cai” (Vertigo, 1958), como bem observa Spoto. Apaixonando-se por uma mulher que não existe, já que é fruto da ficção inventada por um ex-colega de colégio no intuito de ludibriá-lo, Jimmy leva toda a segunda parte do filme a recriar a tão desejada figura feminina. Lá está ela, finalmente, à sua frente, arremedo quase perfeito da jovem supostamente louca e suicida: inclusos os cabelos louros que ele mandara tingir (os louros cabelos desde sempre objetos de desejo do fetichista Hitchcock) e o tailleur cinza que ele lhe comprara. Faltava apenas que ela prendesse seus cabelos num coque, e ele obriga a pobre moça a realizar o gesto final de despersonalização e, assim, dar acabamento à ficção. Anos depois Hitchcock diria a Truffaut: “era como se a mulher estivesse pronta para o amor, mas ainda assim se recusasse a tirar a calcinha”. A máscara corresponde ao desnudamento completo. Mais hitchcockiano que isso, impossível. 
Hitchcock e o apaixonado a quem James Stewart dá corpo, criador e criatura, descobrirão tarde a impossibilidade de realização completa da quimera. Porque, por mais deleitantes que possam ser as imagens cinematográficas, elas não passam de imagens: contornos feitos de luzes e sombras sem vida própria além daquela que nós lhes conferimos quando nelas nos detemos.

*
Para quem se interessar pelo livro, segue sua referência completa: Fascinado pela beleza: Alfred Hitchcock e suas atrizes, de Donald Spoto, publicado pela Larousse do Brasil em 2009. A Estante Virtual oferece edições novas a preços bem convidativos. 
As citações dos livros, mesmo as entre aspas, foram tomadas de orelhada. Eles estão em minha prateleira e eu, na estrada...

sábado, 13 de agosto de 2011

Os 112 anos de Hitchcock: notas sobre “Um corpo que cai”, a indústria do cinema e outras cositas mais


Hoje os cinéfilos precisam comemorar: faz 112 anos que nasceu Alfred Hitchcock (13/8/1889-29/4/1980).
O que dizer desse inglês de alma cosmopolita cuja impecável sensibilidade artística gerou uma das obras mais densas da cinematografia mundial? Eu o amo apaixonadamente desde que era menina. Para mim, ele é quem melhor resume a Sétima Arte. Suas obras repletas de cenas de perseguição, grandes romances, traços detetivescos e bom-humor convidam o grande público à diversão. Porém, os elementos do melodrama rocambolesco são sempre sutilmente desvirtuados, para que saciem o gosto do público sem que traiam a arte.
Da primeira vez que vi “Um corpo que cai”, “Janela Indiscreta” ou “Psicose”, eu, que então devorava loucamente Agatha Christie, só queria descobrir o mistério que se escondia por detrás das personagens de Madeleine Elster, Lars Thorwald e Norman Bates. Quinze anos depois, volto a essas obras ainda com avidez. O diretor é um bruxo danado – algumas das faíscas que iluminam suas produções só se fazem visíveis para o espectador insistente.
Eu sou das devotadas, ao ponto de voltar pela 15ª vez a um filme como “Interlúdio”, por exemplo, mesmo que conheça de cor enredo e diálogos, apenas para prestar atenção nas tomadas, no modo como os planos são montados, na composição dos quadros, nas trucagens. Nem sempre dá certo. Mesmo que agora eu tenha mais maturidade e instrumentos críticos para captar as nuances dos diálogos ou o simbolismo dos objetos, muitas vezes acabo mesmo é enredada pela história. Ainda continuo torcendo para Cary Grant conseguir arrancar Ingrid Bergman da casa infestada de espiões nazistas; para ver Grace Kelly finalmente se colocar em posição de igualdade com o solteirão convicto Jimmy Stewart e, assim, dobrá-lo; para a velhinha informante de “A dama oculta” (1938) escapar do trem e cantarolar ao governo inglês a informação secreta em forma de melodia; para o belo Laurence Olivier se livrar do fantasma de Rebeca...
Tomar de passagem a filmografia de Hitchcock, apenas para o mérito da homenagem, geraria simplificações desnecessárias. Pelo menos 20 de suas 50 obras pedem mergulhos profundos que, infelizmente, não tenho meios de dar neste momento. Portanto, deixo os leitores com um bate-papo que Isabella Batista de Souza e eu fizemos sobre Hitch - e especialmente sobre "Vertigo"/"Um corpo que cai” (1958) - no final de 2010. Como eu, Isabella é da área de Letras. Vasculhando a internet em busca de referência sobre o filme para um trabalho de final de disciplina (na UFMG), ela trombou com o post que escrevi sobre ele em março de 2010. A conversa a seguir reflete o desejo dessas duas colegas de formação de entender o maior dos Hitchcocks.

I: Hitchcock é considerado o mestre do suspense e um dos melhores diretores de todos os tempos. Por que ele conquistou tamanha importância no cenário cinematográfico?

D: A obra de Hitchcock como um todo é importante para a história do cinema porque ele conseguiu elevar o filme de suspense (considerado até então um gênero menor) a objeto de arte. Os produtos do gênero hoje são influenciados pela obra do diretor – embora a massa dos filmes de suspense produzidas em nossos dias não chega aos pés da produzida por ele.
Todavia, embora hoje ninguém negue que o diretor é um dos maiores de todos os tempos, sua obra demorou para ser aceita pela Academia (apenas uma vez uma obra sua foi premiada com o Oscar de Melhor Filme – “Rebeca”, de 1940 – e ele nunca recebeu o prêmio de Melhor Diretor). Até a altura dos anos de 1960, Hitchcock era, no geral, considerado como mais um diretor da indústria do cinema, desejoso apenas de agradar o público para vender seu produto. Foi nessa época que os cineastas vanguardistas franceses enxergaram uma unidade em sua obra, o que respondia ao conceito de “autoria” criado por eles. Significava grosso modo que, mesmo produzindo seus filmes no centro da indústria cultural, alguns diretores teriam conseguido se descolar dos parâmetros meramente mercadológicos criados por ela. Exemplos de diretores de cuja obra se poderia depreender um estilo autoral seriam John Ford e Hitchcock: se se analisasse suas obras completas, seria possível perceber nelas o desenvolvimento e amadurecimento, ao longo do tempo, de alguns traços ou temas. Em 1962, François Truffaut, fundador da revista francesa Cahiers du Cinema, conduziu uma série de entrevistas históricas com Hitchcock, buscando derrubar por terra a ideia vulgarizada de que o diretor não produzia obras dignas de debate. As entrevistas, compiladas em português no ótimo Hitchcock/Truffaut: entrevistas, foram fundamentais para a mudança de posicionamento da crítica acerca da obra do diretor.

Vertigo, embora tenha sido um fracasso de bilheteria, está entre os 100 melhores filmes, de acordo com o Instituto de Cinema Americano. Por que essa obra carrega tão grande importância na carreira de Hitchcock e no cinema, em geral?

Bem, a questão da recepção das obras cinematográficas é curiosa. Nós hoje pouco sabemos sobre alguns filmes que geraram grandes bilheterias no seu tempo, porém, consideramos grandes obras outros que foram fracassos de público. Não convém levantar os motivos disso, que são muitos (e duvido que eu conheça todos), mas eles têm relação com uma série de fatores. Apenas um exemplo: No começo do cinema sonoro, os primeiros filmes musicais de Al Jolson (protagonista de “The Jazz Singer”, 1927, o primeiro filme sonoro rodado) foram assistidos por grande parte da população norte-americana, curiosa por ver nas telas pela primeira vez a sincronização de som e imagem. Hoje, poucos conhecem este artista e muitos de seus filmes são considerados apenas por sua importância histórica, já que não têm grandes qualidades artísticas.
Não podemos nos esquecer também de quão importante é a publicidade para a venda de um filme. A indústria norte-americana do cinema descobriu isso logo nos anos de 1910. Os departamentos de marketing eram peças importantes dos estúdios, tornando públicas as imagens dos artistas e as películas que faziam. Hollywood construía estrelas – mudava os nomes dos artistas que contratava, lhes inventava biografias chamativas, tudo isso para torná-los interessantes para o público que ia ao cinema e alimentava a indústria. Essa sede que o público tem hoje de conhecer as vidas das celebridades vem daquela época.
Hitchcock, como todos os outros diretores, sabia que o interesse do público era motivado por razões que nem sempre tinham relação com a esfera artística, por isso seus filmes foram tão bem sucedidos na época. O melhor exemplo talvez seja o caso de Psicose (1960): O diretor fez uma campanha junto ao público de “Não conte o final do filme para ninguém, para não estragar o prazer do espectador de conhecê-lo por si mesmo.” (isso pode ser conferido nos extras da edição do filme distribuída pela Paramount). Ele criava suspense junto ao público com relação à sua própria obra, ou seja, acima de tudo era um bom negociador. Além disso, era conhecedor do público que assistia aos seus filmes, portanto, elaborava as cenas objetivando determinadas reações das plateias. Isso fez com que parte considerável de sua obra tivesse obtido sucesso de bilheteria.
Tal sucesso não aconteceu com Vertigo, que, no entanto, teve cerca de 1 milhão e setecentos mil dólares de lucro (segundo informação do IMDB). Na entrevista a Truffaut, Hitchcock vê o filme como um fracasso porque afirma que as bilheterias apenas cobriram os gastos – estamos falando de um diretor que respeitava bastante a opinião do público. Isso considerado, é visível que o diretor não via no filme a relevância que hoje vemos nele. A análise retrospectiva da obra que ele nos deixou, no entanto, nos permite considerá-lo um dos mais importantes, porque nele o diretor atinge a excelência no manejo de temáticas e elementos com que trabalhou durante sua carreira: a sexualidade, as taras que se escondem na vida privada do homem burguês, etc.

Hitchcock, a esposa e a equipe de filmagem na Europa dos anos de 1920

A linguagem da câmera, os planos, o próprio nome do filme (Vertigo) – todas essas expressões carregam significados. Na resenha sobre o filme, você fala de como o “modo como imagens e sons se agrupam dizem mais sobre os personagens que o enredo”, exemplificando a primeira cena, em que John Ferguson e Midge Wood se encontram. Quais recursos o diretor utiliza para expressar características dos personagens, além das explicitadas no enredo? E quais são essas características?

Eu tentei pontuar um pouco isso ao longo da resenha (que, aliás, foi escrita numa tarde e não tem qualquer intenção de fechar uma interpretação da obra). Quis dizer que o enredo de Vertigo é básico comparado à excelência com que ele é construído cinematograficamente. Essa cena que você sublinhou, por exemplo. De acordo com o enredo, nela precisamos ficar sabendo que John está doente e recebendo apoio da amiga, que sente por ele um amor platônico. Quantas vezes não ouvimos histórias assim? Isso beira a subliteratura. Porém, o trabalho de Midge, o silêncio com que ela escuta o que lhe fala o homem e o modo como ela o olha quando ele menciona o episódio do casamento, bem como o modo como ela o ampara quando ele despenca da escada, trazem à tona essas ideias de modo incrivelmente conciso e denso, o que torna a cena tão fascinante.
Hitchcock é notório por escolher obras literárias menores para transformar em filmes. Perguntado por Truffaut sobre porque nunca havia adaptado nenhum clássico, afirmou algo como: “Porque essas obras têm muitas palavras e todas são importantes.”. Nós, que somos da Letras, devemos atentar a isso: o diretor percebe que o mundo construído pelos grandes romancistas passa pelas palavras que escolheram utilizar – retirar uma palavra do todo seria destruir a obra. Isso fica claro tão logo vemos as adaptações cinematográficas de Memórias Póstumas de Brás Cubas ou Dom Casmurro – as piores são aquelas que desejam com mais veemência copiar literalmente a obra de Machado de Assis para as telas. Em Vertigo, Hitchcock estava interessado em trabalhar as ideias de modo cinematográfico (o que, aliás, é uma constante na produção dele). Por isso nessa cena faz uso de símbolos para mostrar a força de Midge e a fraqueza de John. O modo como a cena é organizada através da montagem diz mais que quaisquer palavras. Por exemplo (sem nenhuma intenção de fazer uma análise exaustiva): O sutiã que a mulher desenha mostra seu papel empreendedor. Ele não é usado como um símbolo da inferioridade feminina com relação ao homem, mas sim simboliza o papel da mulher que trabalha. Neste sentido, contrapomos Midge e John: ela ganha seu próprio dinheiro, ele foi aposentado por problemas psicológicos. O modo irreverente como ela trata a sexualidade ao longo da cena mostra que ela é assertiva, enquanto a fragilidade de John torna-o passivo. Ao mesmo tempo, vemos que ela ainda é apaixonada por ele. Esses elementos, trabalhados na composição dos quadros dessa cena e na montagem dela, serão trabalhados ao longo do filme – quando Midge cuida de John no manicômio, quando cola seu rosto no corpo da suposta antepassada de Madeleine, no quadro que pinta, etc.


com Janet Leigh (Psicose)

Nesse mesmo post você fala, também, da maneira que, na visão de homem apaixonado de John, a mulher “misteriosa” se assemelha a um objeto de arte. Quando isso acontece e quais os símbolos responsáveis por tal interpretação?

Hitchcock emoldura a personagem de Kim Novak – você percebeu isso bem ao apontar, abaixo, a moldura que envolve o perfil da atriz, assemelhando-a a uma estátua grega. Isso também é patente na cena da floricultura e, imediatamente depois, na do museu de arte. A composição de imagens nessas duas cenas se assemelha: Na primeira, John abre uma porta no final do beco e dá num lugar incrivelmente florido; na segunda, a fria construção do museu recebe um quadro de temática e cores análogas. Ambos os lugares convidam o mergulho na imagem (o mergulho na ficção, por parte do personagem principal que observa a cena e por parte do espectador, que, por tabela, a vê). Isso também pode ser lido como uma metáfora no mergulho do espectador no objeto produzido pela Sétima Arte: teóricos na época ressaltavam o papel da montagem cinematográfica na identificação do espectador com a história apresentada nas telas. Lembra-se da Rosa Púrpura do Cairo, quando a personagem de Cecília é convidada pelo mocinho do filme a entrar na tela? Woody Allen tornou literal a metáfora da projeção do espectador no filme.

Em várias cenas, as molduras são presentes no cenário (em alguns, com abundância). Na cena em que John vê Madeleine, pela primeira vez, há um momento em que ela se levanta da mesa, com sutileza, ao fundo uma moldura a envolve. Ela sai da mesa, passa por outra moldura, para e quando sai do restaurante sua imagem está em um espelho. Esses enquadramentos poderiam ser interpretados como uma metáfora do “segredo” do filme?

Do meu ponto de vista, essas composições sugerem o mistério que envolve a personagem (já que o mistério que a circunda é criado primeiramente pelo suposto marido dela e em seguida pelo próprio John); o romantismo com que o protagonista a observa; e, em última instância, a existência da mulher apenas enquanto construção ficcional – já que, como uma pintura, ela é apenas fruto da interpretação de alguém. Neste sentido, creio que podemos dizer que isso metaforiza o segredo do filme, sim.

Você diz que “Madeleine não é apenas uma mulher fugidia, ela é uma mulher que não existe (para perceber isso logo do princípio, o espectador precisa ver o filme uma segunda vez)”. Gostaria que você explicasse o porquê da afirmação de que “o espectador precisa ver o filme uma segunda vez” e falasse mais do envolvimento do telespectador, manipulado, ou não por Hitchcock.

Bem, eu escrevi o texto quando já tinha visto o filme umas dez vezes pelo menos. Uma obra de substância como essa vai se revelando para os espectadores aos poucos. Só prestamos atenção na relação entre o elemento pictórico e a ironia que envolve a personagem, por exemplo, quando já conhecemos o final da história – ou seja, depois que já sabemos que a misteriosa Madeleine não passava de uma simplória vendedora, e que a imagem de mistério dela foi construída para nós, como um pintor bom corrige as imperfeições de uma pessoa ao desenhá-la. Ao vermos o filme pela primeira vez, somos enganados tanto quanto Johnny. Depois de o vermos algumas vezes, conseguimos organizar seus símbolos em direção a uma interpretação. Sobre a manipulação do cinema, lembro os debates fomentados por Béla Balázs e Edgar Morin sobre o modo como a montagem direciona o olhar do espectador. No cinema, somos levados a enxergar com os olhos das personagens: quando uma personagem olha para determinado objeto, nós também o olhamos. Isso acontece pela alternância entre as objetivas indiretas (o olhar da câmera aos objetos) e as subjetivas diretas (o olhar do personagem aos objetos) – por exemplo, a câmera focaliza o personagem e, em seguida, focaliza o que ele vê. Esse movimento contínuo faz com que tenhamos a sensação de estarmos do filme, daí nossa identificação – ou seja, daí a sermos manipulados pelo diretor, já que é ele o responsável por organizar os olhares aos personagens, às coisas e os olhares dos personagens às coisas.
Hitchcock e Ingrid Bergman