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terça-feira, 6 de novembro de 2018

Diário do Metropolitan III: La Fanciulla del West

Sigo com este diário atípico, escrito num distanciamento de vinte dias dos fatos. Gosto do distanciamento, que nos permite lançar olhos mais agudos às coisas. Embora em absoluto eu desdenhe dos planos fechados, mais afetivos, minha personalidade se inclina aos mais distanciados, descritivos e analíticos... 
Eva-Maria Westbroek
Vi La Fanciulla del West (de Giacomo Puccini) duas vezes, naquela famigerada semana de idas e vindas ao Metropolitan: nos dias 12 e 17. O casting de ambas as récitas era substancialmente o mesmo: Eva-Maria Westbroek foi Minnie, a “garota do oeste dourado”, espécie de estadunidense “filha do regimento”; Zeljko Lucic foi Jack Rance, o xerife que a deseja. 
Ao redor dessas duas personagens orbita um conjunto de personagens que, embora vez por outra solem, funcionam sobretudo como coro; compondo o conjunto de imigrantes do sexo masculino importado da Europa ao distante meio Oeste norte-americano: gente que viaja sonhando fortuna, mas que ali peleja em trabalhos duríssimos e sem muita perspectiva de substancial retorno financeiro. A terceira personagem que se destaca do conjunto é Dick Johnson/Ramerrez, bandido mexicano que chega disfarçado ao salloon Polka, no intuito primeiro de roubá-lo, ganhando ali, num só tempo, o coração da jovem balconista Minnie e o desprezo de Rance. 
Kaufmann/Rammerez e
Westbroek/Minnie
Interpretado desde a abertura da temporada por Yusif Eyvazov, o vilão de voz melíflua e coração paulatinamente adoçado foi substituído, a 17 de outubro, por Jonas Kaufmann, que não por acaso segue sendo dos mais festejados tenores da atualidade. A lotação da casa esteve regular na primeira récita, tanto que comprei o ingresso no dia. Naquela modalidade “estudante” que mencionei no primeiro texto desta sequência, consegui um ingresso nas primeiras fileiras da plateia, reacomodando-me, ali, sem ter ninguém de ambos os meus lados ou diante de mim. 
Já o dia 17 estava um pouco mais concorrido. Vindo de uma série de cancelamentos no MET desde 2014, quando protagonizou com estrondoso sucesso Werther (Jules Massenet), Kaufmann foi visto com desconfiança pelo público nova-iorquino até a última hora: um dia antes da récita ainda havia quantidade expressiva de ingressos para todas as categorias; e mesmo no dia eu consegui trocar o meu (na mesma mencionada modalidade “estudante”), que era originalmente para o longínquo “Family Circle”, para a “Grand Tier” (no segundo andar da casa, orientação central, lugar bastante bom). 
Palco do MET visto da "Grand Tier"
Faço a perfumaria da coisa, aqui, por razões práticas. Primeiro, como sugestão aos eventuais novos frequentadores do local: embora eu tenha me mobilizado a adquirir ingressos com antecedência, em detrimento do que ocorre nas grandes casas de óperas do mundo no MET nós podemos, salvo raríssimas exceções, adquiri-los pessoalmente, na semana ou mesmo no dia da performance
Mas quero também ponderar sobre as diferenças entre os públicos desta casa e de outras casas de óperas notórias: além dos frequentadores fiéis, e de gente que ali aporta ou porque ama ópera, ou porque foi seduzido pelo MET on HD, o grosso do público pareceu-me composto por turistas, que passam pelo MET para o incontornável lustro cultural da viagem. A considerar pela lotação da casa nas récitas a que compareci, Anna Netrebko parece ter sido a única cantora lírica a migrar do star system operístico à cultura massiva, atingindo o status de superstar
Eva-Maria Westbroek é Minnie em La Fanciulla Del West
Voltemos, agora à La Fanciulla..., esta ópera de forma e conteúdo tão deslocados da produção de Puccini. Em primeiro lugar, no que toca a um tema caríssimo meu, a relação da obra com o teatro e (especialmente) com o cinema. O compositor italiano foi criticado à época por tomar tema tão supostamente alheio à sua cultura. Um western à italiana? 
Não li, ainda, texto dedicado às bases cinematográficas desse enredo. O certo é que, embora o gênero western seja considerado tipicamente norte-americano (André Bazin considera-o mesmo uma das bases da cinematografia do país, além de construtor simbólico, no plano cinematográfico, da nação e do homem estadunidense), ele se espraiou rapidamente pelos países da Europa, por meio do cinema. 
Pesquisadora de cinema mudo de profissão, acompanhei surpresa, na Giornate del Cinema Muto do ano passado, a série de westerns rodados na Europa em paralelo aos produzidos nos Estados Unidos, entre fins de 1900 e princípio dos anos de 1910: produções francesas, italianas, de contornos próprios, mais livres e bem-humoradas que as norte-americanas, mas respeitosas à matriz estadunidense e fiéis à sua estrutura (os interessados podem ler as minhas notas de alguns exemplares desta produção aqui). 
Poster de Sulla Via Dell'Oro (1913), exemplo de western italiano
Blanche Bates em
The Girl of the Golden West
Se Puccini já provavelmente se havia deparado com o western a partir de filmes tanto europeus quanto norte-americanos, transladados para a Itália, ele teve acesso documentado a produções do gênero quando esteve no MET em 1907, para a produção de Madame Butterfly. Em Nova Iorque, compareceu a encenações de duas obras teatrais diferentes, adaptadas pelo dramaturgo, empresário e clérigo (!) David Belasco (autor da adaptação teatral de Madame Butterfly, encenada na Broadway umas poucas vezes no ano de 1900), ambas que tomavam como pano de fundo a Califórnia dos tempos da corrida do ouro: The Rose of the Rancho e The Girl of the Golden West. Esta última, que depois daria origem a La Fanciulla del West era protagonizada pela mesma atriz que dera vida à Cio-Cio-San de Butterfly, Blanche Bates. Foi sucesso estrondoso na Broadway, encenada mais de 250 vezes ao longo de três temporadas, de 1905 a 1908. 
Puccini se havia encantado pelo teatro de Belasco anos antes, quando assistiu à Madame Butterfly, também protagonizada por Bates. A atmosfera criada pela produção, sobretudo os jogos de luz que insinuam a passagem do tempo da noite à manhã que Cio-Cio-San espera pelo amado, o teriam seduzido ainda mais que o texto (parafraseio aqui o histórico da produção escrita na Playbill da peça, o qual, aliás, tem umas inconsistências que procurei corrigir usando o Internet Broadway Database). 
David Belasco
Neste encontro de Puccini com Belasco e Blanche Bates talvez se delineie um turning point na carreira do compositor. Em La Fanciulla del West, Puccini quase que totalmente abre mão no esquema tradicional de árias e duetos em prol de uma partitura que teça nexos dramáticos, em consonância com um libreto muito tributário do teatro. Tanto que porção não desprezível dos sons da obra é incidental, à maneira como se dava então no teatro. A música também coopera na construção daqueles espaços virgens e imensos, e dos dramas que emergem mais no jogo de cena que no canto, a exemplo do tenso carteado entre Minnie e Rance, o qual decidirá o destino de Ramerrez: apoiado em silêncios, na declamação e em pizzicatos
Belasco é personagem fundamental ao teatro e ao cinema do período, tendo descoberto, entre artistas notórios, Mary Pickford e Barbara Stanwyck (as quais rapidamente migraram para o cinema). Interessado pela cena teatral, não é exagero afirmar-se que Puccini contribui para que se migre a estrutura e a mise-en-scène deste âmbito (e do âmbito cinematográfico, que tanto dialogava com o teatral) para a ópera. Se La Fanciulla del West tem uma fluidez desusada quando consideramos a produção do compositor, é porque ela é tanto mais melodrama (na acepção primeira: drama teatrao acompanhado de música) que ópera. 
Poster da montagem teatral
No plano temático, todas as coordenadas do melodrama western estão presentes na ópera. Eu poderia fazer correr rios de tinta (ou, neste caso, de bits...) discorrendo sobre o melodrama teatral e a sua apropriação pelo cinema, coisas que pesquiso há tempos e que já se transformaram em partes inalienáveis de mim mesma. Para resumir a ópera: a recessão econômica norte-americana das últimas décadas do século XIX obrigou a união de companhias fixas especializadas em teatro melodramático e em musicais, determinando a concepção de uma nova dramaturgia, que passava a valorizar tanto os bailados quanto o drama. 
Se já o melodrama histórico oriundo da Europa tem como característica primordial a mistura do alto e do baixo, do páthos e do humor, isto se intensifica no contexto norte-americano. Obras como The Girl of the Golden West testemunham esta evolução do gênero no “novo mundo”. 
Apropriada por Puccini (o libreto é de Guelfo Civinini e Carlo Zangarini), La Fanciulla del West tem como protagonista uma virginal heroína melodramática, que, todavia, ao contrário das personagens congêneres europeias, frágeis e submissas, é forte e ativa. Em torno de si, orbitam dois homens cuja vilania é relativizada: Rance e Rammerez. 
Rance, o xerife, é personagem fundamental dos westerns – homem que simboliza a implantação da justiça naqueles vastos rincões. 
O gênero western epiciza a saga da civilização do Oeste americano, a paulatina imposição da lei escrita como substituta da vingança individual (o olho-por-olho, dente-por-dente). 
La Fanciulla... flagra este desdobramento, colocando em cena um juiz que, para fazer justiça, precisa refrear seus instintos amorosos cocom m relação à mocinha e, por conseguinte, sanguinários em relação ao homem que ela ama. Juiz que, no entanto, é dividido entre a lei e o cavalheirismo: ao ponto de permitir que Minnie reste com Ramerrez, ao perder para ela no carteado. Nem Minnie é a pureza stricto sensu – já que, para conservar o seu amado, trapaceia no jogo –, nem Ramerrez é o herói típico melodramático, desprovido de máculas: 
Entra em cena disfarçado, topos clássico do gênero. É mexicano, nacionalidade por excelência dos vilões dos westerns teatrais/cinematográficos do período. Mas é homem dividido entre o papel de bandoleiro – herança maldita deixada pelo pai, diz ele de modo pungente – e o desejo de ascensão moral. A elevação espiritual/purificação moral que ele vivencia, sob o teto de Minnie – como ela diz de boca-cheia, no desfecho da história –, e o final feliz de ambos são exceção se considerarmos o gênero melodramático, nos quais ao bandido é dado usualmente o patíbulo. 
Essas características fazem de La Fanciulla del West uma obra preciosa. No que toca à protagonista, nenhuma ópera italiana tem personagem tão preponderante. O papel requer uma intérprete excepcional, única mulher a dividir a cena com as duas fortes personagens masculinas e um grande coro de homens. 
No Metropolitan, o papel coube a Eva-Maria Westbroek, que se saiu deslumbrantemente bem (foi, aliás, o meu maior encantamento naquela semana). Mulher alta, rosto firme, voz cheia e sensual, Eva-Maria é, em cena, daquelas fêmeas proverbiais. Além de ótima cantora e atriz, tem o physique du rôle perfeito para a personagem, que ela veste logo de saída, na brilhante cena inicial: quando, ao mesmo tempo firme e doce, adentra o salloon em meio a uma contenda, tingindo de lirismo, em consonância com as notas de Puccini tão bem conduzidas por Marco Armiliato, a testosterona ambiente. Falo de physique aqui no sentido lato. Ela e Kaufmann já não são os jovens requeridos para o papel. E, por isso mesmo, dão com extrema beleza corpo à dor da solidão e à necessidade de amor.
Nenhum dos dois vilões da obra é vilão clássico, incontornavelmente odiento. Zeljko Lucic, que é um brilhante Scarpia (arqui-vilão de Tosca),é um ótimo Jack Rance, obstinado e comovente. 
A cena que se segue ao pedido de casamento que ele faz a Minnie, no primeiro ato da ópera (quando ela lhe lembra risonha que ele já é casado), a narração de sua solidão e necessidade de afeto, é de comover as pedras. Além de grande cantor, que ator ele é! Saí de La Fanciulla mais mexida com Eva-Maria e com ele que com ambos os Ramerrez. 
Aliás, a personagem do barítono é, nesta obra, bastante mais interessante e assertiva que a do tenor. Ramerrez/Johnson tem em La Fanciulla a passividade dos mocinhos melodramáticos clássicos, conduzidos ao sabor do destino. Jonas Kaufmann percebe isso muito bem. Yusif Eyvazov – que achei um belíssimo cantor, no concerto que ele dividiu com Netrebko em São Paulo – desincumbiu-se com consistência da personagem, mas sem brilho. Kaufmann, além da sorte de ser lindo de morrer e ter sex appeal, tem ainda o carisma necessário para interpretar uma personagem que durante tempo considerável está em cena sem nada dizer. Ele tem o corpo/a inteligência para estar em cena sem nada dizer e, ainda assim, significar. 
Um exemplo: há uma cena passada na cabana de Minnie, no ato 2, em que Johnson, baleado, precisa se esconder de Rance. Há na casa um sótão, para onde ele sobe (a produção faz uso dos cenários milimetricamente realistas produzidos nos anos 90). Desenrola-se então uma longíssima cena entre Minnie e Rance, que culmina com a descoberta de Rammerez. Durante toda a cena, Yusif manteve-se deitado, longe dos olhos do público. Kaufmann demora longo tempo para desmoronar, sustentando-se nas paredes do sótão até que seu personagem não aguente mais e deslize para o chão. Ópera é também teatro, ele o sabe. 
Mas Ramerrez sem dúvida protagoniza o último ato da ópera, onde há uma das poucas árias da produção: Ch’ella mi creda, na qual o bandido corrigido por amor, e que agora está prestes a ser enforcado, pede aos perpetradores que Minnie não fique sabendo de seu destino. 
O Kaufmann que amamos, repleto de drama, delicadeza e paixão, aparece todo ali, com seu timbre escuro tão bem dominado. Ele e a maravilhosa Eva-Maria (que pessoalmente é tímida!...) – a qual interrompe intempestivamente o evento funesto para salvar o seu homem – muito se merecem. 

Remeto aqueles que quiserem uma comparação mais detalhada entre os dois Rammerez à resenha publicada pelo New York Times por ocasião da estreia de Kaufmann, que pode ser acessada por aqui.

Vi o terço final da ópera de um assento que vagou na plateia, a partir 
do qual registrei os aplausos finais.

domingo, 22 de outubro de 2017

Giornate del Cinema Muto de Pordenone 2017 (1/4)

Pesquisadora de cinema silencioso que sou, raramente abordo-o neste blog. Já diz o ditado: Em casa de ferreiro o espeto é de pau... As notas a seguir, escrivinhadas ao correr da intensa Jornada de Pordenone (que ocorreu entre 30 de setembro e 7 de outubro), cumprem nem que seja de passagem este objetivo. Lamento não ter realizado esforço análogo antes: depois de oito dias intensos de projeções, quinze horas por dia, filmes, atores, diretores, enredos embaralham-se em nossa mente. Uma mostra de cinema é como um porre – aproveita-se tudo intensamente, e dias depois não se tem mais que uma ideia geral do que aconteceu. Ao contrário dos porres, no entanto (sem querer desmerecê-los...), a experiência se instala num canto de nosso inconsciente e emerge, quando menos esperamos. As notas dividem-se em quatro postagens, publicadas ao longo desta semana. O Catálogo do festival pode ser acessado aqui

Primeiro dia: 30 set. 2017, sábado. 
Dia de chegada à cidadezinha que fica a uma hora de Veneza. A instalação na cidade, o reencontro com almas-gêmeas do ofício que a gente só vê uma vez por ano, a inscrição coincidem com o início da programação cinematográfica, que acaba sendo em parte deixada de lado. Consegui assistir à sessão denominada Origini Del Western 3 (que dá continuidade ao programa iniciado no ano passado), conjunto de filmes franceses rodados entre 1911 e 1913, dirigidos em sua grande parte por Jean Durand, que mimetizam o western norte-americano sem intenções jocosas aparentes (ainda que bem-humorados) – antes, desejando abarcar o público ianque, que tanto amava o gênero. 
Le Revolver matrimonial (1912) é um bom exemplo: a atriz costumeira desse conjunto de fitas, Berthe Dagmar, mulher de rosto anguloso e nariz aquilino – distante do padrão clássico de beleza – é transformada na moçoila namoradeira gauche, que todos os empregados do seu tio desejam, mas que se casará com o cowboy norte-americano recém-contratado (casamento apenas formalizado porque o ministro é pego literalmente no laço pelo jovem eufórico). Repleta de carisma, a atriz ao invés de ser posta em ridículo pelo seu rosto pouco convencional (como era costume no grosso da produção cinematográfica de então) acaba por ganhar as graças o público, tornando-o conivente com seus infortúnios de moça apaixonada. 
Esses westerns recém-restaurados (ou recém-vindos a lume) atestam a assertiva de Bazin, de que uma pequeniníssima porção das obras desse gênero basilar da cinematografia norte-americana havia sobrevivido ao tempo. O fato de esses exemplares terem sido rodados na França ajuda a complexificar o quadro, leva-nos a pensar nas trocas mútuas ocorridas entre ambos os países. Ainda a título de comparação, cinematograficamente esses filmes são rodados em planos longos, planos gerais, investindo-se nos gestos largos, características típicas do cinema francês de então. 
Na seção “Riscoperte”, Redescobertas, um conjunto de fitas (várias delas vistas brevíssimas, à maneira daquelas rodadas pelos Lumière) tematizam um assunto sui generis: as mulheres aviadoras. É curioso encontrar, neles, a presença das mulheres tomadas em planos paralelos, ora ao lado das máquinas voadoras que pilotam, ora posando com graciosos bichos de estimação (cachorros – como a Lillian Gish do Nascimento da Nação – ou macaquinhos). Metonimicamente, busca-se reforçar uma feminilidade que caminha a contrapelo dos trajes de aeronauta e do esporte tipicamente masculino. 
O filme que fecha o programa, L’Autre Aile (Henri Andréani, 1924), obra francesa recentemente restaurada, trata de modo primoroso desta ambivalência, sendo ainda um modelar exemplar de cinema a contar cinematograficamente uma história. A mulher (Marthe Ferrare, ótima) perde o homem que ama para a velocidade, essa sanha moderna. O filme trata com ambiguidade a nova mania desportiva dos muito ricos, num só tempo a adulando e censurando. A multidão vê os desportistas se aproximando, mas a jovem apenas faz observar os aviadores transmutados em soldados de César, a marcharem triunfantes para a morte. O namorado perecerá, e ela vai até o corpo como se a movesse uma força invisível, não esboça qualquer reação. É o fogo que o consumiu que ela terá dali por defronte dos olhos – o fogo ou a hélice do avião em ruínas, que rodam num torvelinho diante de si. Procurando vingá-lo da morte e ser mais forte que o ar, ela ato-contínuo ingressará no esporte. 

Segundo dia: 1 out., domingo. 
Mulheres fortes – a Giornate deste ano está repleta delas. Uma seção que atravessa o festival é denominada Nasty Women, mulheres más/ vis/ antipáticas/ desagradáveis/ torpes (mesmo quando o enquadramento histórico do nosso gênero é problematizado, acabamos por ser classificadas segundo estereótipos...). Compostas, sobretudo, por slapstick comedies, as mulheres ali depreendidas vão além dos rótulos mais comezinhos de “ingênua” e de “vampiras” – aliás, como corresponde ao gênero cômico, ironizam-nos. Mulheres que ultrapassam o rótulo de pureza e de candidez que a cinematografia clássica lhes cola (na esteira de outras artes e gêneros, como o teatro e o folhetim). 
Os filmes dessa seção cumprem um recorte temporal de 1898 a 1917. Ironizam o status quo social, ao qual essas mulheres procuram em vão se encaixar: tentam encontrar um emprego honesto ou encontrar brinquedos cabíveis ao “sexo frágil”, mas não conseguem, já que parecem portadoras do infortúnio. Uma das fitas ironiza o desvelo exagerado que certos donos têm por seus animais de estimação: 
The Devil's Pawn (1918)
Depois de tiranizar um cachorro e ser devidamente punida pelo patrão – que o convida à casa e à mesa familiar –, a jovem é tomada de um apaixonamento instantâneo e exagerado pelos bichos, carregando para ali todos aqueles com os quais ela cruza pela rua – gatos, cachorros, patos, um burro... A slapstick é um lugar modelar para a negação disruptiva do status quo. Os degraus da loucura são galgados rumo ao clímax: os patrões chamam a jovem à razão quando a casa está prestes a desabar, desenlace catártico. 
Por trás dessas fêmeas descabeçadas está a indústria cinematográfica de uma sociedade patriarcal, podemos pensar. Viajemos até o grande filme do programa: The Devil’s Pawn (Victor Janson, Eugen Illés, [+ Paul Ludwig Stein?], 1918), protagonizado por uma Pola Negri já tocada pelo gênio, ainda que muito moça, ainda em sua fase europeia. Rodado na Alemanha, o filme é exasperante. Negri é a jovem judia russa que decide, após a morte do pai, partir da cidadezinha natal a S. Petersburgo para frequentar a universidade. 
The Devil's Pawn (1918)
Ali chegando, é proibida de ficar, a menos que adquira the yellow ticket, chancela ambígua: entregue às prostitutas, dava-lhes liberdade de circulação na mesma medida em que fomentava o controle social. Rodado no local onde se situaria o Gueto de Varsóvia, o filme parece visionário, o passe amarelo assemelhando-se à estrela de Davi que marcaria anos depois a comunidade israelita e acabaria por decidir o seu destino. O filme acaba formatado na moldura convencional do melodrama. Um conjunto de coincidências (a chave do “destino” melodramático) levam a moça a se matricular na universidade utilizando o nome da irmã morta do ex-tutor, que descobre a fraude e, ao reencontrar a moça, acaba por lhe revelar um segredo que lhe fora contado pelo pai adotivo dela: ela na verdade era filha do médico do hospital universitário onde era atendida. Detalhe: a jovem tenta se suicidar porque o rapaz de quem ela gosta descobre que ela é portadora do tal yellow ticket. Procura mimetizar a morte da mãe, médica estudiosa que, abandonada pelo namorado (e pai da moça), comete suicídio. O papel assertivo da mulher na sociedade patriarcal é conquistado com sangue, é o que mostram as histórias da mãe e da filha. Negri desempenha ambos os papéis com sutileza, plenamente convincente como as mulheres que se preocupam mais com o intelecto que com os dotes físicos. 
A Norway Lass (1919)
Fonte: Catálogo da Giornate del Cinema Muto 36
Num dia voltado às mulheres, vale a menção um belo filme sueco rodado cinco anos antes do brilhante Gösta Berling’s Saga (Mauritz Stiller, 1924), e da mesma estirpe, A Norway Lass (Synnöve Solbakken, John W. Brunius, 1919), romance de formação em 7 atos (a divisão esboçada acena para a relação que a história estabelece com o teatro), trajetória do jovem Synnöve Solbakken (interpretado por Lars Hanson na idade adulta) da “barbárie” à “civilização”. Filme túrgido e belo como um romance de Balzac.