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sexta-feira, 8 de maio de 2015

A atualidade de "O Rei do Gado"

Ainda compilo notas que me ajudem a dar conta da tarefa a que me propus no artigo passado: tentar explicar o papel da telenovela “O Rei do Gado” (de Benedito Rui Barbosa, dirigida por Luiz Fernando Carvalho, 1996-97) em nossa memória coletiva. 
Não é das tarefas mais fáceis. Eu poderia dar ao tema um enquadramento puramente técnico: levantar os altos números do IBOPE desta enésima reprise, quando comparados aos produtos saídos fresquinhos da mesma casa. Ou poderia colocar este folhetim lado a lado com os contemporâneos, e estabelecer uma óbvia – e, portanto, pouco desafiadora –, comparação que elevaria um em detrimento dos outros. Ou então, mergulhar em minhas recordações pessoais – já que, no final das contas, eu sou um dos sujeitos que enformam a tal memória coletiva a quem esta novela deve o seu sucesso. 
E então, puxo os fios da memória. Lembro-me do sertanejo de raiz ouvido pelo meu avô; do italiano macarrônico da “Nona”, minha centenária bisa; das canções napolitanas que eu cresci escutando; do “r” comprido que alongava as palavras (e os palavrões) ditos pela minha avó paterna, herança dos encontros e desencontros dela com gente daqui e d’além-mar. E as macarronadas, as polentas com frango. Os cáspitas, empiastros, maledetos e quejandas italianices que o convívio familiar incorporou ao meu dicionário, para o desespero de algumas professoras do colégio. Rever “O Rei do Gado” liga-me à moleca que eu era aos 14 anos, da qual os (des)caminhos da vida aos poucos me fizeram esquecer; daí aos nós na garganta e as lágrimas nos olhos serem meus companheiros constantes, enquanto estou diante da TV, vendo-a. 
A nostalgia é um bicho traiçoeiro. “Isso daria uma moda de viola.” – me replicaria o poeta-violeiro Pirilampo. Mas, não, refiro-me ao perigo que representam esses itens a que a pátina da afetividade nos impede de ver de todo. E firmo os olhos n’“O Rei do Gado”, tentando dissociar a novela empírica das recordações minhas que ela evoca. 
E ela sobrevive com louvor à prova. 
Há, ali, humanidade de sobra. Humanidade na sua acepção primeira. Não a bondade fajuta desses heróis contemporâneos, mas sim a natureza humana em toda a sua densidade: nas qualidades e nos defeitos – porque, como bem perceberam os Românticos, mestres do gênero folhetinesco, a qualidade do homem se mede pela extensão de sua luta para debelar seus pecados. 
Pureza demasiada incita o sentimento pouco cativante da soberba – a afirmação da inexistência do pecado é, para o cristianismo, já um pecado em si. E maldade demasiada, daquelas que não dão a ver mesmo uma nesga de luz, é algo simplesmente inverossímil – ao menos, para alguém que já passou da infância, que é o espaço por excelência para a catarse dos sentimentos primitivos. As extremidades de pureza ou maldade não favorecem a identificação do público com o espectador. 
Aí, volto para “O Rei do Gado” e me deparo com a Luana; a mocinha que guarda em si um mundo: roceira desmemoriada criada tal e qual bicho do mato, cujo palmear vagabundo por esse mundo de meu Deus leva-a a um assentamento de sem-terras, ao coração de um senhor de muitas terras, à recuperação de seus liames com o passado, e, enfim, à descoberta de sua rica ascendência. Destino, amor, disputa e luta de classes se misturam, nesse caldeirão cultural responsável por gerar o que de mais popular a literatura ocidental produziu nos últimos 200 anos. 
“O Rei do Gado” remete aos grandes romances dos Oitocentos, adicionando às balizas formais do gênero clássico uma temática puramente nacional. Os sem-terras dos tempos de Victor Hugo eram os operários arranjados em comunas, aos quais igualmente se juntava a miséria e a dignidade. Luana descende das moças campesinas de Balzac, definidas pela exiguidade de suas posses e pela grandeza de seus sonhos. Bruno, o “rei do gado”, tem entre seus ascendentes um Jean Valjean, um Edmond Dantès, homens falíveis, no entanto, cheios de grandeza psicológica – que se permitem perdoar as faltas alheias, por poderem espelhar, nelas, as suas almas conflituosas. 
O público ama “O Rei do Gado” por reconhecer, mais intuitivamente ou menos, os lastros que esta novela estabelece com o seu arcabouço cultural: com a literatura que o formou, nos bancos da escola ou na vida; com as histórias contadas pela família, profundamente romanescas; com os filmes antigos – que beberam em grande medida desta mesma fonte. Falo obviamente das gerações passadas. Antes que os efeitos especiais passassem a dar as cartas na factura das tramas, antes que a violência obscena se tornasse um must nos enredos, respondendo à sede de sangue do público, só esperávamos o desenrolar vagaroso de fios sabiamente enovelados, a tessitura de tramas encorpadas – coloridas, brilhantes, quentes como os belos cachecóis que nossas avós nos costuravam. 
“O Rei do Gado” parte da tradicional premissa do amor entre dois jovens, membros de famílias que se odeiam. A Julieta e o Romeu de Rui Barbosa são Berdinazzi e Mezenga, multiplicados, ao longo da trama, em Giuliana, Luana, Rafaela, Enrico, Bruno, Marcos – gerações com as quais o autor percorre um lastro temporal de 50 anos. 
Lastro altamente significativo, que engloba dos últimos suspiros da monocultura do café aos latifúndios do gado de corte, da Segunda Guerra Mundial aos conflitos agrários, além do paulatino aculturamento dos italianos. As disputas entre as duas famílias por conta de uns poucos metros de chão multiplicam-se, em 50 anos, pela dimensão da fortuna – real e simbólica – que ambas amealham. Jeremias Berdinazzi, o único remanescente da tradicional família, é agora um grande produtor de leite; Bruno Mezenga, um grande criador de gado. À disputa pela posse das terras e pela permanência do nome soma-se, agora, o conflito geracional. 
O tema nasce shakespeareano para ganhar pouco a pouco contornos nacionais. A longínqua Guerra, que acaba por definir o destino da família Berdinazzi, encontra, na segunda parte da trama, uma rima visual com o Movimento dos Sem-Terras, graças ao qual os primos perdidos se reencontram e se apaixonam. Para além do colorido pitoresco que se dá ao MST, cumpre assinalar a delicadeza com que o grupo é apreendido, tomada implícita de posicionamento do autor frente ao então recente episódio de Eldorado dos Carajás, que terminara com o assassinato de dezenas de militantes pela polícia truculenta do baixo Pará. 
Bandeiras auriverdes tremulam no assentamento do incansável Regino, enquanto o senador Caxias peleja pela causa do grupo, diante de um plenário vazio. Zé Ramalho serve de trilha à luta inglória de ambos: “Vocês que fazem parte dessa massa./ Que passa nos projetos do futuro/ É duro tanto ter que caminhar/ E dar muito mais do que receber.” Só eu acho que essas imagens e dizeres adquirem, nesses nossos atuais dias em que atitudes reacionárias ameaçam manchar as conquistas arduamente alcançadas pelo nosso Estado de Direito, um inusitado poder disruptivo? Ainda mais quando exibidos com tanto sucesso, pela principal emissora do país? 
Para além do tema e da forma, “O Rei do Gado” ainda concentra um dos elencos mais inspirados de todos os tempos. Antonio Fagundes como o velho Antonio Mezenga e o neto Bruno Berdinazzi Mezenga, Tarcísio Meira como Giuseppe Berdinazzi, Raul Cortez como Geremias Berdinazzi, Letícia Spiller, uma menina, como Giovanna Berdinazzi, Stênio Garcia como Zé do Araguaia, Jackson Antunes e Ana Beatriz Nogueira como Regino e a esposa Jacira. Sem, de modo algum, ser exaustiva. 
Como esquecer os olhos de Eva Wilma (Marieta Berdinazzi) diante dos sofrimentos dos filhos? Ou de Raul Cortez, diante da tão repetida canção italiana, sobre os pracinhas mortos em combate? Ou da ombridade que Carlos Vereza imprime em seu senador Caxias? Ou do tour de force de Patrícia Pillar para criar a sua Luana – a maior distância entre pessoa e personagem que já se viu na TV brasileira: mulher a que os reveses da vida fez retraída, ressabiada, mas que ocasionalmente se expande em discursos que primam pela singeleza da linguagem e pelo lancinante do conteúdo (sua narrativa da colheita das "cerejas do café", por exemplo)?
Exibida por ocasião do aniversário de 50 anos da Rede Globo, "O Rei do Gado" sustenta-se como o que de melhor a emissora exibiu este ano. Que a novela esteja prestes a completar seu vigésimo aniversário é, no mínimo, irônico. Esperemos que o seu sucesso sirva de injeção de criatividade aos criadores da emissora.

terça-feira, 27 de agosto de 2013

Flores Raras (2013)

Recomendo. Ainda que Bruno Barreto tenha cometido um acerto mais temático que cinematográfico, ao colocar em primeiro plano o relacionamento amoroso entre a poetisa americana Elizabeth Bishop e a arquiteta brasileira Lota de Macedo Soares, a idealizadora do Parque do Flamengo. Gloria Pires dá na coprotagonista Miranda Otto beijos de grande importância simbólica, ela que é sobretudo conhecida como cria dessa televisão pretensamente evoluída, mas no fundo retrógrada, afeita aos velhos modelos de dramaturgia e de humanidade.
No âmbito da forma, “Flores Raras” é tão bem aparado quanto os jardins de Lota em Samambaia, sua propriedade de Petrópolis. Ou àquele oásis cosmopolita que depois ela construiria diante da Baía de Guanabara, o qual, a contar por esta bibliografia cinematográfica, potencializa a sua mania de grandeza até quase levá-la à loucura.
O filme faz boa leitura das personagens principais, especialmente da poetisa, cuja alma ela revela na poesia que ritma toda a primeira parte – a parte mais bela e mais coesa do filme, na minha opinião. Para além de um suposto biografismo na obra de Bishop, na qual não desejo entrar aqui porque pouco conheço, vale ressaltar os ganhos dramáticos que Barreto conseguiu ao desenhar a evolução literária da artista americana em relação com sua apreensão mais visceral da existência, na medida em que ela descobre a calidez do país exótico e o amor carnal. Miranda Otto constrói brilhantemente a trajetória da puritana que floresce como artista e mulher ao se deixar penetrar pela flora e fauna fluminenses. Durante o percurso, a câmera adquire seu olhar.
Seu par romântico, a mulher que a guia à liberdade artística e afetiva, é em tudo o seu oposto: mulher segura de si, resolvida sexualmente, confiante em sua tarimba como arquiteta. Glória Pires fá-lo muito bem – o que não é de se surpreender, tratando-se de Glória Pires – ainda que não faça emergir as sutilezas de sua personagem tanto quanto a colega americana, por limitação do roteiro: a assertividade de Lota torna sua alma impermeável, e então encontramos uma mulher que se resolve na superfície (talvez porque, na sociedade machista dos anos 50, uma mulher que buscava sucesso profissional precisasse vestir uma carapaça de frieza para conquistar o respeito de seus pares).
As diferenças existentes entre as duas mulheres mostram desde logo que elas não podem ficar juntas. O diretor trabalha esta ideia cinematograficamente, deixando a cisão patente na estrutura do filme. A primeira parte trata de desvelar com cuidado o contraditório Rio de Janeiro à sua visitante. O caju que quase a leva à morte torna-se, no filme, símbolo do fruto proibido, prenunciador de sua entrega a Lota. Na medida em que passa o tempo, o paraíso tropical revelará sua verdadeira face à mulher. “Quanto mais conhecemos o Brasil, menos o entendemos.”, ela dirá muito mais tarde numa mesa repleta de grã-finos que, com sua companheira, brindam a ditadura recém-instaurada. Na segunda metade do filme, a burocracia dá-lhe o tom. Trata-se, talvez, de uma metáfora fílmica do novo regime. O certo é que Lota e Elizabeth não mais se acertam, e o olhar do espectador (falo de mim, por certo...) se perde entre as idas e vindas de Lota ao canteiro de obras donde brotará o Parque do Flamengo, as recaídas alcoólicas de Bishop, os altos e baixos de sua relação com Lota.
Nessa segunda parte, Barreto abandona a poesia em benefício de uma narração que alinhava episódios, mas não lhes dá força dramática para que signifiquem em conjunto. Isso resulta numa obra com alguns momentos de muita beleza e outros fastidiosos. Por isso, suponho que o grande acerto de “Flores Raras” seja a escolha das atrizes que compõem seu triângulo amoroso – o restante do elenco não recebe um tratamento mais individualizado. Pires e Otto fariam bonito numa possível – já cogitada – corrida ao Oscar, e mesmo o filme tem uma arquitetura conservadora que combina com a Academia. No tocante a mim, meu prêmio particular é de Miranda Otto, que ao me revelar uma grande escritora que eu pouco conhecia, revelou-me o seu imenso talento; vou começar a perseguir uma e outra a partir de agora.
Tracy Middendorf, Miranda Otto, Glória Pires

sábado, 9 de abril de 2011

Vale Tudo: do tempo em que telenovela ainda era coisa séria

A Rede Globo assumiu empreitada de risco meses atrás, quando começou a veicular pelo Viva a telenovela “Vale Tudo” (escrita por Gilberto Braga, Aguinaldo Silva e Leonor Bassères e dirigida por Dênis Carvalho e Ricardo Waddington), que mobilizou o país quando foi exibida em rede nacional entre 1988 e 1989. Mesmo que a empreitada tenha sido levada a cabo num canal por assinatura, o burburinho que a novela começou a gerar desde sua estreia (em outubro do ano passado) sem dúvida obrigou a emissora a repensar o seu modo de fazer teledramaturgia.
O porquê disso compreende-se logo que se examine um capítulo – qualquer um – da trama. Ao fazê-lo, é impossível não se ser inundado pela torrente de realidade que brota da tela. E tal realidade brota com tanta maestria que se torna palpável até mesmo para aqueles que a conheceram só de nome. “Vale Tudo” fotografa em cores vivas o Brasil recém-saído da Ditadura, que enfrentava uma inflação aviltante, desvalorização da moeda corrente e, portanto, altos índices de pobreza.
O momento político torna possível a crítica direta, e aí não é mais preciso criar – como em Roque Santeiro – uma metáfora de cidade corrompida para se referir ao Brasil. Assim, o país mostra na tela a sua cara: toda ela, no que há em si de mais hediondo e de mais humano; de mais trágico e de mais engraçado. Como bem lembra Sílvio de Abreu em entrevista dada recentemente à revista Filme-Cultura, aquela era uma “época muito divertida dramaturgicamente”. A conturbada situação permitiu que se introduzisse nesta telenovela um elemento caro à arte desde muito tempo: a crítica social. Ainda mais se considerando o lugar peculiar que cabe ao seu gênero – obra aberta, que pelo seu imediatismo pode dialogar diretamente com o momento histórico no qual é criada, participando em sua modificação.
Os espectadores do século XXI não deixarão de tomar um choque de realidade ao serem confrontados, logo no primeiro capítulo da trama, com a datilógrafa que afana rolos de papel higiênico e sabonetes do banheiro da empresa onde trabalha para que, assim, possa ter esses produtos de primeira necessidade até o fim do mês. Antes do esgoto-Brasil de “Deus nos Acuda” (1992-3) tragar os ricaços, a merda em que viviam os brasileiros era ironicamente pintada em “Vale Tudo” pela ação da jovem que não tinha nem mesmo condição de comprar produtos para fazer sua higiene íntima. E isso enquanto, noutro canto do Brasil, a humilde agente de turismo deixava a casa que a filha lhe roubara, vendo ter sido vã a tentativa de ensinar à menina que, em tempos de crise, a honestidade ainda era o melhor caminho.
“Vale Tudo” está a anos-luz dos idílios-românticos-em-terras-estrangeiras que usualmente aparecem nas novelas das 8, os quais, de tanto que foram repetidos, já perderam todo o charme. Ao invés das gastas exóticas paisagens japonesas ou lugares turísticos notórios, tomados como cenário de não menos gastas histórias de amor fadadas à desgraça até que no último capítulo todos vivam felizes para sempre, “Vale Tudo” abre no escuro de um quarto e no final de um relacionamento onde sobram recriminações e tapas. A cena é dura como a realidade, porém, é escrita e encenada com tanto primor – o que, aliás, é uma constante na novela – que se torna bela.
O paradoxal é que essa maestria foi em parte fruto da necessidade, já que a Globo daquele tempo estava distante do domínio técnico que tem hoje. Daí os planos de conjunto e/ou stills da gente humilde carioca repetidos ad nauseam ao longo dos capítulos; daí as imagens escuras; as vacilações do elenco impressas em película; os constantes primeiros planos, que optam por flagrar os dramas internos das personagens em detrimento da cidade majestosa (mas repletas de contrastes tantas vezes deixados de lado pelas telenovelas atuais) na qual a história se passa.
Até mesmo a dificuldade prática da Globo de mandar para fora do país seu elenco converteu-se em um ganho dramático, já que os países estrangeiros considerados então símbolos da civilização (os Estados Unidos, a França, a Itália) não passam de miragens para o público, o que mimetiza a distância que separava o Brasil das potências do Norte – distância marcada não só em léguas mas nos cruzados que diariamente se desvalorizavam, afastando-se do dólar. A contingência cooperou para que esta telenovela construísse admiravelmente bem os personagens aproveitando-se de algo que tinha de sobra, que era o talento de gigantes do gênero: além dos já mencionado escritores e diretores, atrizes e atores como Regina Duarte, Antônio Fagundes, Glória Pires, Beatriz Segall, Lídia Brondi, Renata Sorrah, Lília Cabral, Natália Timberg – para ficar apenas neles e não me estender ao restante do sempre correto elenco.
“Vale Tudo” é um microcosmo da sociedade que bota em cena. Supera a divisão estanque da comédia de costumes quando decide não se restringir aos tipos, criando caracteres bem delineados, complexos como os homens, o que só faz aumentar seu potencial de crítica inteligente. Daniel Filho, que estapeia a personagem de Regina Duarte na cena que abre a produção, é também o pianista sonhador seduzido pela miragem do Primeiro Mundo. Numa de suas mais belas intervenções, descreve em detalhes ao amigo rico uma Nova Iorque que ele apenas conhecia na imaginação. Quando está em cena, enche a tela com sua presença agridoce, pontuada pelas canções de uma Broadway que ele nunca viria a conhecer pessoalmente e por sua tentativa de ganhar a vida com sua arte – algo praticamente impossível naquele momento.
Renata Sorrah dá corpo de forma admirável a uma frágil alcoólatra que constantemente luta para domar seus demônios interiores. Alguns o público conhece: a personalidade assertiva da mãe, que a esmaga; o medo de perder o esposo; o temor de que sua arte seja rejeitada. Outros, não, já que sua ultrassensibilidade é também um traço característico de sua personalidade. Traço que, aliás, é bastante bem definido pelo mordomo-cinéfilo Eugênio, que encontra analogia cinematográfica para todos. Se a ambiciosa Maria de Fátima é comparada à alpinista social levada à cena por Katharine Hepburn em “Alice Adams” (1935), Heleninha nos é primeiramente apresentada como a Judy Garland de 1952. Aproximação mais que perspicaz, não só por tomar o estado físico da atriz que retornava à ativa depois de um recolhimento numa clínica de recuperação, como para estabelecer uma aproximação entre ambos os estados psicológicos. A analogia coopera para a construção de uma personagem matizada. Seu vício não a torna unicamente digna de nossa piedade, já que sua sensibilidade lhe permite desempenhar algumas das cenas mais comoventes da novela: não há melhor exemplo do que aquela em que ela é indiretamente responsável por fazer com que Celina libere Raquel da promessa que fez de se afastar de Ivan, ao afirmar à tia que as pessoas mudam, cometem erros, portanto, não merecem ser julgadas.
Esses exemplos apontam o magistral tratamento dado ao texto da telenovela, cuja graça, poesia ou acidez estão a serviço de idéias que tinham uma flagrante relevância naquele final de anos 80. Aí está uma das diferenças mais perceptíveis entre ela e o grosso da teledramaturgia de hoje. A situação capenga do Brasil sobressai-se em “Vale Tudo”, servindo como dínamo das ações de boa parte das personagens. A situação dramática do país coopera para a construção de episódios intensos e verossímeis. Conhecendo o contexto da época –recriado tão bem – não é difícil nos flagrarmos dando razão à filha desnaturada quando ela afirma que ninguém poderia progredir naquela situação valendo-se da honestidade. Também não é difícil nos surpreendermos sendo coniventes com o mocinho quando ele decide recomeçar a vida no estrangeiro com os 800 mil dólares roubados que por acaso caíram em suas mãos.
A situação do país era grave e a essa telenovela não se contenta com soluções simplistas. Por isso, suas personagens são desdobradas em suas facetas positivas e negativas. Só quem escapa ao matiz é a lendária Odete Roittman (criada com perfeição por Beatris Segall), intrinsecamente má, de uma maldade obscena, ridícula – e, portanto, risível. “Vale Tudo” estabelece um sofisticado diálogo com a Sétima Arte, que não só dá as caras na trama em menções literais como inspira seus caracteres. Se Raquel é uma sensacional versão tupiniquim da cozinheira Mildred Pierce, (da película homônima de 1945) – mulher que mesmo depois de rica não consegue escapar ao preconceito da filha –; a personagem de Odete remete ao farsesco Hitler criado por Chaplin no “Grande Ditador” – basta lembrarmo-nos das constantes rajadas de frases num francês impecável que ela profere, fazendo-se tão incompreensível quanto o líder nazista satirizado pelo artista inglês. Ridícula mas, não obstante, perigosa, como são todos os megalomaníacos.
Ao tratar de modo tão complexo os homens e as relações que estabelecem entre si, “Vale Tudo” demonstra extremo respeito pelo espectador. A novela é miniatura da cidade onde se esbarram ricos e pobres, cultos e incultos e um turbilhão de pessoas de interesses dessemelhantes – e então, tem coragem de fazer esses vários discursos emergirem ao longo da narrativa. Quanta distância entre ela e os produtos pasteurizados da nossa teledramaturgia atual, repletas de vilães caricatos e de mocinhas casadoiras choramingas que nos dão, a cada estreia, a desagradável sensação de já termos “visto este filme antes”. Ao contrário das produções de hoje, “Vale Tudo” pressupõe um espectador adulto, aberto à reflexão. Sua reexibição, 22 anos após sua estréia, está deslocando o espectador de sua zona de conforto.
E, se não bastasse a assombrosa qualidade do roteiro, somos ainda presenteados com um dos elencos mais afinados de todos os tempos, o que só faz potencializar a qualidade do texto. Eu podia começar por qualquer um para comprovar a veracidade do que aponto, mas é minha obrigação moral concentrar-me em Regina Duarte. Verdadeira operária, Regina é sem dúvida quem mais aparece em cena, sempre excelente, inspiradora e digna de atenção. Quem a vê como a trabalhadora honestíssima Raquel esquece-se por um momento que ela já havia sido a passional Porcina (minha musa). Mais surpreendente é o quão rápido ela consegue nos convencer, na segunda fase da telenovela, que se tornara mulher rica – pintando uma elegância modulada pela simplicidade do que fora no passado. Com a cooperação de seu galã, compõe ainda umas cenas românticas inesquecíveis, nas quais consegue criar uma atmosfera de sensualidade que eu nunca vi semelhante na TV. Um exemplo patente é a cena em que ambos, depois do assentimento de Celina, voltam a deitar-se juntos pela primeira vez: uma cena quase teatral, quase posada, lindíssima, bastante eficiente por sugerir ao invés de desenrolar todo o ato aos olhos do público. É óbvio que tanto talento não ganhe espaço na teledramaturgia atual. Aqui, vale a frase de Norma Desmond, de "Sunset Boulevard": Regina, você é uma grande atriz. A televisão é que ficou pequena.
Mas, a contar pelos últimos acontecimentos, parece que nem tudo está perdido. O burburinho que “Vale Tudo” fomentou chamou a atenção para um grupo de excelentes artistas que a tempos não davam o ar da graça na TV. Nathália Timberg ganhou um espaço na novela das 8, Regina Duarte estreará em breve na macrossérie “O Astro”, Beatris Segall participou do (divertido) especial de Susana Vieira. Hoje mesmo, na Folha “Ilustrada”, Lauro César Muniz afirma que a teledramaturgia precisa ser modificada para não perecer. Assuntos palpitantes dos quais ela pode se apropriar é o que não falta. O problema é que agora a situação periga inverter-se. Acostumado à “produção em série”, é possível que o público rechace produções que se descolem dos lugares-comuns. A mesma Folha que publica a entrevista de Muniz constata que, quando “Roque Santeiro foi reprisada no Vale à Pena Ver de Novo (2000), chegou a perder em audiência para o Chaves. Esperemos para ver, sempre na torcida para que vença a qualidade.