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quinta-feira, 1 de fevereiro de 2018

“Roda gigante” (2017): aos eternos retornos

O novo parque de diversões de Woody Allen é Coney Island, esse Neverland, esse mundo em miniatura voltado às emoções baratas, à diversão e ao faz de conta – metáfora perfeita do cinema, terreno onde o diretor brinca há décadas. Ainda que os resultados de suas viagens cinematográficas venham sendo nos últimos tempos irregulares, perdura a sua devoção à matéria de que é feita a arte, ao cinema feito de cinema, aos bastidores e às coxias, ao suor que faz brotar o sonho. 
“Roda gigante” é, a meu ver, a realização perfeita do cinema autoreflexivo semeado por Allen desde ao menos “A Rosa Púrpura do Cairo” (1985), outra preciosidade. Ali estavam em cena os efeitos da depressão americana e os ídolos feitos de celuloide enquanto alimentos baratos aos devaneios da população empobrecida. Cecilia, dona de casa banal que sofre dentro duma relação abusiva, torna-se de repente a consorte do herói da fita de aventura que ela revê ad nauseam; finalmente notada, desde dentro da tela, por aquele homem de papel de quem ela não tira os olhos. 
O mergulho empírico na ficção metaforiza o envolvimento afetivo do público com o cinema, com tudo o que há nele de prazeroso e de nocivo – como bem patenteia o desfecho agridoce da personagem, abandonada pelo príncipe cinematográfico, mas ainda em busca daqueles êxtases por meio dos quais ela via esvaecer a sua vida comezinha. A imagem da fuga da realidade por meio da arte apraz Woody Allen. Daí à sua volta, tal e qual Cecilia, ao cinema que fala de si – remetendo, num só tempo, a toda a arte metadiscursiva: o teatro, a literatura, a pintura. 
O eterno retorno do cineasta ao tema cumpre a máxima de Nietzsche de que “A arte existe para que a verdade não nos destrua”. A sua nova Cecilia é Ginny, uma estonteante Kate Winslet, num só tempo Emma Bovary e Blanche Dubois, duas mulheres que se entregaram arrebatadamente às ilusões para fugirem ao cotidiano mofino, acabando por perecer, engolidas pela realidade. Como Kate, Ginny é atriz. Kate finge-se de Ginny, que por sua vez diz “atuar” como garçonete, trabalho temporário frente à sua essência imutável – realidade em abismo. 
O pano de fundo de Ginny é cenário perfeito às lantejoulas baratas de sua ficção, um Coney Island em decadência, onde o marido conserta brinquedos, ela serve peixes e ambos vivem sobre a barraca de tiro-ao-alvo, tendo diante de si, em perspectiva, a imponente roda-gigante que serve de metáfora à vida, ao filme e ao filme-dentro-do-filme. 
O brinquedo incontornável aos parques, que permite aos olhos focalizarem do primeiro plano aos grandes panoramas; a roda que sorteia os números da loteria; a roda da fortuna, a mimetizar os reveses da vida; a roda que exerce um movimento rotacional sobre o próprio eixo, sem jamais sair do lugar, retornando sempre ao ponto de partida; a intraduzível wonder wheel, algo como "roda dos prodígios", "das maravilhas", "dos sonhos" – um pouco como o cinema, esta máquina que desloca o espírito, mantendo o corpo em repouso. 
Acepções todas presentes e exploradas no filme, no qual, por sua vez, temas e personagens caros a Allen retornam como déjà vu – como a Ginger Rogers e o Fred Astaire amados por Cecilia, que surgem num revival no cinema do Brooklyn, para deleite agora do filho de Ginny, cuja paixão pelo cinema só não supera a paixão pelos incêndios (Paolo Cherchi Usai, historiador de cinema mudo, deu a um livro seu o título sugestivo de Burning Passions, que alude num só tempo à cinefilia e à inflamabilidade do nitrato, emulsão onde se imprimiam os filmes antigamente). 
Explosiva é também a paixão de Ginny por Mickey, guarda-vidas da praia de Coney Island que é imbuído pelo diretor – narrador-mor da obra – do papel de narrador-personagem; personagem brechtiano que representa à excelência o papel do espectador: é dotado da onisciência, como Deus, mas não tem domínio algum sobre a história, pois, embora ele a narre, ela já está paradoxalmente fechada no tempo de sua contação. 
A ruptura com a quarta-parede proposta pela personagem do narrador e, ao mesmo tempo, a imposição de uma narrativa fechada e auto-suficiente, remete à noção grega de “fortuna”, caminho pré-determinado do qual o herói trágico, por mais que se esforce, é impossibilitado de fugir. E então, retornamos à imagem da roda, incontornável ao filme. 
Ao refletir sobre o fazer artístico, Allen coloca na roda a metafísica: indeciso entre unir-se à amante – mulher mais velha vítima de outra relação abusiva, para a qual ele é uma espécie de salvador (daí a efetividade da metáfora do “guarda-vidas”, como bem lembrou a amiga Imara Reis) – ou se declarar à bela jovem que retorna ao pai para fugir ao marido mafioso, Mickey (Justin Timberlake) busca o auxílio de um filósofo. 
A resposta que recebe dá de ombros aos devaneios românticos em prol do pragmatismo, como um bom autor que, para desenredar o emaranhado da ação, apela tão somente à coerência interna. Woody Allen é o autor de um roteiro repleto de erudição que a todo tempo se testemunha em processo de escrita – nas piscadelas de Mickey à câmera, na incontornável presença de referências literárias e teatrais, a prenunciarem o desfecho amargo: Tchekhov, Tennessee Williams, Flaubert. 
O roteiro dialoga bem com a direção, que caminha num constante resvalar, em mão-dupla, do cinema ao teatro. Jim Belushi, Juno Temple, Justin Timberlake e Kate Winslet são escalações perfeitas, contracenando bem demais, além de tudo, com uma das grandes protagonistas da obra: a câmera. Mas a protagonista absoluta é Winslet, que em estado de graça vai esgarçando paulatinamente ao público a matéria de que a sua personagem é tecida, até que todos os fios das ilusões se mostram rotos e ela resta ensandecida e só, com o velho vestido branco com que se vestia de Blanche Dubois em seus áureos anos de ribalta. 
No intuito de furar os limites entre a arte e a vida, a câmera ora caminha ágil, em planos-sequências que buscam captar os acontecimentos in totum, ora monta perspectivas clássicas, a darem destaque à preponderante roda. Tais quadros, saturados, ora remetem à pintura impressionista de fins do XIX e século XX, ora à cinematografia norte-americana dos anos de 1950, época em que se passa a obra. Van Gogh, Leonid Afremov, Douglas Sirk. Se vida pulsa no filme, pulsa com mais força a percepção, cara à ficção desde séculos, de que a vida é, como tão lindamente disse Shakespeare, “uma história contada por um idiota, cheia de som e fúria, significando nada”, daí o papel incontornável das ficções de lhe construírem os liames e, assim, de lhe darem algum sentido.
Preciso agradecer à Stella Florence pela luz a respeito da metáfora do retorno. Na mosca, ma chérie!

domingo, 24 de novembro de 2013

A corrupção e outras drogas sedutoras: de "Blue Jasmine" (2013) à trambicagem nossa de cada dia

Um novo Woody Allen acabou de aportar por aqui. Junto, quase, do escândalo de dimensões faraônicas que sacudiu as estruturas – já não tão firmes – da prefeitura de São Paulo. A semelhança entre ambos os acontecimentos só é forçada aqui porque descobri, hoje, que a delatora da fraude do ISS é uma conterrânea minha. Il faut honrar a prata da casa... 
Allen voltou à boa forma. “Blue Valentine” é um filme bem feito, charmoso e volúvel como a corrupção de colarinho branco. Ao dizer que Cate Blanchett arrasa, choverei no molhado. De todo modo, cumpre reverberar a maestria, o domínio, a profundidade inequívoca com que ela dá vida à vulgaríssima esposa do ricaço de vida equívoca interpretado por Alec Baldwin - personagem não só verossímil como verdadeira, a contar pela valinhense que resolveu pôr a boca no trombone tão logo notou que sua fonte secaria. 
Incensa-se a semelhança entre "Blue Jasmine" e “Uma rua chamada pecado” ("A streetcar named desire", 1951), obra-prima de Kazan, Leigh e Brando. No entanto, a aproximação entre um filme e outro é tão gritante que a homenagem soa uma apropriação canhestra. Sally Hawkins (Ginger, irmã da protagonista) não é Kim Hunter; Andrew Dice Clay (o troglodita namorado de Ginger), embora muito bom, definitivamente não é Marlon Brando. Já Cate Blanchett é muito Vivien Leigh e, principalmente, muito Cate Blanchett. A atriz impregnou sua personagem de uma psicologia tão intensa quanto incabível para o papel da alpinista social cujo objetivo é sustentar a boa-vida de aparência que leva ao lado do marido. 
Blanchett tem estofo para vestir suas personagens como uma vida própria, mesmo que emprestada. No “Aviador”, ela desceu à essência de Kate Hepburn, embebendo-se da alma de sua biografada, mais do que de seus maneirismos superficiais. Em “Blue Jasmine” ela é uma perfeita descendente da Blanche Dubois de Vivien Leigh – mulher que ficcionalizava a existência para fazê-la mais palatável. A diferença entre ambas as atrizes está na densidade das personagens que representam. Leigh constrói em cima de uma personagem que já era profunda: mulher frágil levada à ruína física e moral por impossibilidade de suportar o esfarelar da família. O chão de nuvens sobre o qual a etérea Blanche passa a caminhar sustenta-lhe parcamente a sanidade. 
Jasmine não passa de uma arrivista a quem a cegueira é opção para a ascensão social. Sustenta seu casamento enquanto escolhe olhar para as joias que ganha do marido em detrimento das amantes e das falcatruas que ele comete, e caso clássico, resolve denunciá-lo quando se vê em vias de perder o prezado status. A história praticamente biografa o caso envolvendo minha conterrânea. 
Cate Blanchett dá foros de grandeza à mulher mesquinha. 
Espero não ter soado moralista, pois não é esse o caso. Woody Allen realiza neste filme uma leitura aguda da sociedade que obriga o forjamento de Jasmines para darem conta dos figurões a quem a mulher não passa de um brasão social. A história cruelmente se repete quando a mulher-atriz (afinal, a aristocrática Jasmine é na verdade Janette, flor nascida de solo muito mais reles) descobre-se, numa espécie de mercado de carnes da alta-sociedade, escolhida, conquistada e depois repudiada por certo diplomata/político – tipo bem acabado da política (inter)nacional. 
Jasmine caiu das nuvens douradas em que Blanche sonhava para chafurdar no esgoto da corrupção terrena. O microcosmo da sociedade criado por Allen tanto ganha em realismo quanto perde em poesia. Prezo o esforço do diretor, mas prefiro mil vezes os castelos que Blanche constrói no ar ao pouco charmoso pragmatismo de Jasmine – mesmo que ele esteja mergulhado no mais sedutor blues.

domingo, 26 de junho de 2011

Meia-noite em Paris (2011): comediazinha simpática para público cult

Woody Allen volta com maior fôlego depois de dois fiascos artísticos, o over the top “Tudo pode dar certo” (Whatever works, 2009) e o amargo “Você vai conhecer o homem dos seus sonhos” (You will meet a tall dark stranger, 2010). É certo que a fase dourada da carreira do diretor ficou nos anos 70 e 80 – com brilhos esparsos pontuando trabalhos posteriores, como “Vicky, Cristina, Barcelona” (2008), que julgo ser o seu filme mais interessante dos últimos cinco anos. O que não quer dizer que ele esteja completamente fora de forma. Artista prolífico e digno, Allen consegue imprimir sua marca em suas obras. Nunca produz filmes medíocres tendo em vistas unicamente o lucro – prova disso é o fracasso de bilheteria de muitas de suas produções em sua terra natal. Neste caso, não é diferente. “Meia-noite em Paris” é um típico Woody Allen – para o bem e para o mal. É um Allen acima da média – portanto, vale a visita no cinema – sem, todavia, ser uma obra-prima. Seu público fiel poderá se divertir, pois revisitará, neste filme, o melhor que o diretor já produziu para a sétima arte.
Allen ainda produz uma obra “autoral” nesta época em que parâmetros meramente mercadológicos norteiam o grosso da produção cinematográfica americana: os conflitos amorosos, a visão apaixonada e nostálgica à arte, a cidade vista como protagonista da história, o humor filosófico. Esses elementos são como peças de um quebra-cabeça, ordenados e reordenados pelo diretor em cada produção. O problema é que a ideia de “autoria” é muitas vezes usada como muleta, transformando a criação artística no emprego de uma série de procedimentos em direção a um fim já conhecido. Inegavelmente isso é seguro. Porém, tirar a ousadia da equação não faz o jogo ficar sem graça? Conjecturas como estas acabarão tomando conta do cinéfilo que conhece um pouco da produção de Allen assim que ele se deparar com “Meia-noite em Paris”.
O filme abre com planos gerais da cidade de Paris enquanto a banda sonora pespega no público uma canção antiga tocada numa vitrola. Ao fim da música, uma tomada da personagem de Owen Wilson – roteirista cinematográfico de sucesso irremediavelmente apaixonado por Paris – e da namorada recostados na amurada de uma das famosas pontes parisienses: “Essa cidade é uma maravilha. Você não acha Paris maravilhosa? Eu queria viver aqui” é mais ou menos o que ele diz.
Os sucessivos planos gerais de pontos turísticos da cidade, o trabalho do protagonista, o teor do discurso com que abre o filme, a música antiga, tudo isso remete claramente a “Manhattan” (1979). Em “Manhattan”, Isaac (Woody Allen) é um roteirista televisivo frustrado que joga para o alto seu emprego seguro para se tornar romancista; em “Meia-noite em Paris”, Gil (Owen Wilson) é um roteirista cinematográfico frustrado que idem. As canções do norte-americano George Gershwin costuram “Manhattan”; as canções do norte-americano Cole Porter costuram “Meia-noite...”.
Mais que um trabalho “autoral”, Allen faz aqui cópia de si mesmo. Se não é um problema para quem desconhece a filmografia do autor, isso deveras desconcerta quem a conhece. Eu fui uma das desconcertadas, não porque persiga sua obra, mas porque casualmente havia revisto seu canto de amor à Nova York um dia antes de ver seu canto de amor a Paris. Não fiquei muito confortável com a sensação de déjà-vu que reiteradas vezes me acometeu, talvez porque a melodia maravilhosa que soa do filme de 79 torna-se, neste, impostação inócua: como se Ella Fitzgerald, depois de entoar um de seus melhores Cole Porters, passasse seu microfone para mim (eu sou super desafinada).
Seguindo o paralelo entre ambos os filmes – Allen obriga-me a fazê-lo – Owen Wilson é, em “Meia-noite em Paris”, alter-ego do diretor. Corrijo-me: Wilson é o próprio Allen, que tenta transformar o autor em versão perfeita do que ele fora em seus melhores papéis (“Annie Hall” e “Manhattan”). Sejamos sensatos: como Woody Allen, só Woody Allen. E olhe lá... Perdoamos o tipo casmurro e nerd por meio do qual, nesses dois grandes filmes, conhecemos os conflitos sexuais da intelectualidade dos anos 70, porque Allen conseguiu através deles se transformar num personagem por vezes cativante. Owen Wilson não tem esse mesmo poder, não porque ele seja pior ator que Allen, mas porque o tipo que socialmente consolidou (de personagem tola de farsas tolíssimas) não dá credibilidade ao papel. Wilson não é tão bom ao ponto de fazer o público se esquecer das personagens que anteriormente desempenhou. Seu Gil torna-se uma colagem do cômico tolo com o casmurro nerd. Pelas mãos dele, Allen torna-se pastiche de si. Isso coopera para dar ao filme um tom farsesco que se estende para outros âmbitos.
O filme nos apresenta, grosso modo, dois núcleos: a Paris contemporânea e a Paris dos anos 20.
Do primeiro tomam parte a namorada do protagonista e os pais dela; a guia turística (Carla Bruni) e a vendedora de discos de Cole Porter. O segundo é composto por uma dúzia de artistas de todo o mundo que povoaram Paris depois da 1ª G.M.: Porter, Hemingway, Scott e Zelda Fitzgerald, Dalí, Bruñuel, Gertrude Stein etc. Os cenários da efervescente Paris dos 20 são magnificamente compostos. Há um cuidado quase que documental na composição da casa de Gertrude Stein (Kathy Bates) tal qual a descreveu Hemingway em “Paris é uma festa” (balanço nostálgico da juventude do escritor e da juventude da arte moderna concluída nos anos 60). Isso se estende para as frenéticas festas ao ar livre e libações noturnas ao som de composições musicais do período: o charleston dançado no parque de diversões e o bar no qual um Cole Porter safadinho canta a deliciosa “Let’s do it. Let’s fall in love” são verdadeiros festins para os nossos olhos (e ouvidos).
No entanto, isso nem sempre se revela num ganho dramático, já que tais ambientes não são suficientemente aproveitados para o desenrolar da história. Allen não transfere para sua película a importância que esse grupo teve na Paris daquele tempo. Esses artistas lançaram bases para a vanguarda cinematográfica – que objetivava fazer frente à produção convencional norte-americana; um tanto razoável da produção literária da época foi decidida em meio à algazarra, nos bares e festas e em casa da Madame Stein – que Hemingway pinta em todas as suas contradições em “Paris é uma festa”. Tais elementos estão ausentes do filme, que transforma os artistas em tipos caricaturados em traços grossos: Hemingway (Corey Stoll) parece a todo o momento estar posando para o retrato impresso em suas obras completas, além de repetir como mantra, ridiculamente, características definidoras de seu trabalho (“A linguagem tem de ser seca.” etc.); Dalí (Adrien Brodi) é uma perfeita casca dentro de um conteúdo que esvazia ao máximo o rótulo de “surrealista” dado à sua obra.
É curioso de se ver – ao menos para o público que conhece as referências; na sessão a que assisti, muitos abandonaram o barco antes do final e outros tantos saíram reclamando de terem perdido tempo – só isso. Do grupo, se salva Adriana, personagem fictícia desempenhada por uma ótima (como sempre) Marion Cotillard, mas sua delicadeza não consegue dar suficiente humanidade ao conjunto, já que ela pouco aparece em cena – e aparece nuns diálogos pouco inspirados.
O galho contemporâneo da história é composto por uma Rachel Mc Adams tão pobremente composta como os pais dela. Personagem plana, desagradabilíssima como a loira chata que, como seus progenitores, humilha o namorado de cabo a rabo da história: e ele estranhamente a segue como um cachorrinho.
A vivência empírica nos anos 20 – aliás, altamente tributária de “Rosa Púrpura do Cairo”, pois torna literal a metáfora da viagem no tempo proporcionada pela arte, como faz o filme de 1985 ao tratar do cinema – é costurada com razoável eficiência com o presente. A noção, implícita ao longo da história, de que o presente só é compreendido na distância temporal – o que o torna tão sedutor às próximas gerações – é escolarmente explicitada no desfecho, na cena em que a personagem de Marion bota ponto final à amizade colorida com o protagonista (a única coisa a dar calor humano à história) para viver na belle époque de 1890 – passado que tanto a seduzia.
Se isso está longe de compor um todo completamente descartável, compõe um em grande medida frustrante. Faltou ao diretor imprimir a “Meia-noite em Paris” o ritmo da cidade-luz do mesmo modo como ele fez em “Manhattan” com a cidade homônima. O apego a um passado de sucesso artístico perigosamente mostra um Allen que tem pouco a oferecer no futuro.

quarta-feira, 25 de maio de 2011

Manhattan: 1921, 1925, 1979, 2011...




Nunca estive pessoalmente em Manhattan, mas ela já bateu em minha porta tantas vezes que a sinto parte de mim. Culpa dos livros, das músicas e dos filmes; de Woody Allen, Rodgers & Hart, Antonio Ferro e de tantos literatos e artistas que procuraram reterem-na em suas obras. Portanto, meu passeio mental por esse pedaço de Nova Iorque tem de obrigatoriamente passar pelos olhos daqueles que o registraram e são os grandes responsáveis por inventar a cidade que seus visitantes reais e virtuais conhecem – já dizia Oscar Wilde que nosso olhar às coisas está pautado pela arte. Woody Allen sublinha isso na belíssima declaração de amor à cidade que é “Manhattan” (1979), declaração que a monumentaliza de modo muito semelhante ao que fizeram Paul Strend e Charles Sheeler na “Manhatta” de 1921: por meio de planos gerais tomados de noite e de dia, que transformam a cidade numa ininterrupta rapsódia de luzes e sombras. É explicitamente por meio das lentes amorosas da arte que Allen canta a cidade, ao abrir seu filme com o toque jocoso de clarinete que introduz “Rhapsody in blue” (1925) – através da qual George Gershwin dizia querer glosar a “loucura metropolitana” de seu país.

Manhatta (1921)


Manhattan (1979)

Capítulo um: “Ele adorava a cidade de Nova Iorque. Ele a idolatrava desmesuradamente.”. Não. Melhor “Ele a romantizava desmesuradamente. Para ele, independente da estação, esta ainda era uma cidade que existia em preto e branco e pulsava ao som das grandes canções do George Gershwin.” Ah, não. Deixe-me começar de novo.

Pano rápido. Nunca fui grande fã de Woody Allen, mas preciso confessar que essa sua personagem me enredou desde a primeira tomada. Allen escolhe acertadamente a metalinguagem para retratar a cidade. Assim sublinha o caráter de construção dela por meio da arte, ao mesmo tempo em que alinha as escolhas de seu alter-ego às suas próprias escolhas enquanto diretor. A voz off que faz emergir os percalços enfrentados pela personagem no intuito de evitar os sentimentalismos ao se referir à cidade soma-se às belas imagens em branco-e-preto que se sucedem em crescendo, culminando numa sensacional queima de fogos, tudo isso acompanhando os movimentos de “Rhapsody in blue”. A conclusão óbvia fica implícita: é impossível falar sobre a cidade sem ser romântico, meloso, sentimental. Allen compreende isso bem e, com “Manhattan”, compõe um hino. Sublinha ainda mais o caráter de idealização ao escolher a escala de cinza em detrimento do filme em cor – cujo lastro com a realidade é muito mais forte. A cidade que ele nos oferece é fortemente permeada por sua subjetividade. Em várias cenas, a visibilidade dos elementos é prejudicada pela manipulação das imagens em direção ao elemento mais elementar do cinema: o contorno de luzes e de sombras. O resultado final é notável. “Manhattan” é o filme que tematiza a cidade de modo mais poético.

Woody Allen e Diane Keaton: sombras no Observatório

A película não é apenas uma homenagem à cidade, mas também à produção cultural que ela inspirou. A tomada inicial e a final, do sol se pondo detrás do Empire State Building, faz clara analogia à “Manhatta” (1921), que abre e fecha com os mesmos planos gerais de uma cidade cujos prédios, de noite, pareciam irradiar luz própria. Allen é embebido pela mesma atmosfera de encanto que antes seduziu Strend e Sheeler. Impossível ler o intertítulo que fecha o filme de 1921 sem pensar que o feitiço nele formulado fez outra vítima mais de 50 anos depois: Belas nuvens do por do sol! banhem com seu esplendor a mim ou os homens e mulheres das próximas gerações .


As semelhanças entre as duas produções não param por aí. No entanto, elas não escondem as diferenças. A cidade é protagonista de ambas. Na de 1921, o plano geral da cidade se segue a tomadas feitas a partir de uma embarcação que se aproxima do porto. Seguem-se tomadas, a partir do porto, da balsa que se aproxima: a Manhattan de mil pés desce até o solo firme. O formigueiro humano ganha a ilha que é, então, tomada de diversos ângulos: num plongée que flagra um cemitério a conviver harmonicamente – sem a interferência dos muros – com monstros de concreto, ruas movimentadas e multidões; num plongée tomado do alto de um arranha-céu, tendo em primeiro plano as amuradas de cimento e abaixo, um mar de gente; em contra-plongées que tornam os edifícios ainda mais grandiosos: Grandes construções de ferros, fortes, subindo esplendidamente em direção ao céu claro., diz o intertítulo. O olhar exaltado à cidade é explicitado, sobretudo, pelo constante movimento de sobe e desce da câmera, que mimetiza a tentativa do olho humano de abarcar o desmesurado.


Tudo isso está patente no filme de Allen – às vezes numa analogia perfeita: as grandes multidões que ganham as ruas, os andaimes que ressaltam o desejo dos nova-iorquinos de alcançarem os céus, as pontes, o cemitério entre prédios (impressionante o respeito à morte que fazia com que, em 1979, ele ainda estivesse entre os prédios). Todavia, a rapsódia metropolitana de Allen constrói sentidos outros. O filme de 1921 compõe um conjunto de documentários produzidos na época, no mundo, por diferentes realizadores que tinham por norte um mesmo objetivo de louvar o progresso tecnológico e a industrialização. “Manhatta” concentra-se na cidade de cimento. Suas personagens são anônimas: meras formigas operárias responsáveis pelo seu bom funcionamento. Woody Allen, em contrapartida, integra personagens e espaço num todo admiravelmente coeso. Sua narrativa imprime o sentimento que toma conta da personagem construída por Isaac, alter-ego do diretor: cidade e personagem pulsam ao som da mesma melodia. Melodia feita de ruído e de caos como suas vidas amorosas e os prédios em construção; de suavidade e poesia como um fortuito passeio de charrete pelo Central Park ou uma visita ao Observatório num dia de chuva. Allen aproveita o Cinemascope para compor panoramas riquíssimos da cidade que ele ama e faz suas personagens amarem. Às vezes deixa os artistas pequeninos, num canto da cena, e faz os monumentos falarem – dizendo através da imagem o quanto aquela grandiosidade os deixava atônitos.

Isaac para Mary: É tão lindo quando as luzes começam a se acender. Esta cidade é incrível. Não ligo para o que todos dizem. Ela é simplesmente sensacional.

Allen destaca do todo um sensacional conjunto de personagens, cada qual com suas peculiaridades, o que só faz sublinhar o intertítulo que abre a “Manhatta” de 1921:


Cidade do mundo
(pois todas as raças lá estão)

Cidade de altas fachadas
de mármore e ferro,

Cidade orgulhosa e apaixonante.

Ao redor do roteirista de televisão frustrado circulam uma namorada jovenzinha, a ameaçadora ex-esposa lésbica, a mulher bela e intelectualizada – aparentemente seu par ideal, o amigo galinha com a esposa demasiado auto-consciente. A variedade dos caracteres soma-se à do cenário, já que seus encontros e desencontros de dão pelas ruas, ruelas, pontes, museus, festas e parques da cidade. O próprio cenário ganha densidade quando comparado ao do filme de 1921. A natureza exerce papel preponderante, e exemplo admirável é o plano geral que abre e fecha o filme, dos prédios iluminados pelo pôr-do-sol com o Central Park em primeiro plano. Isso ressalta o desejo do diretor de descer até à raiz dos sentimentos e das relações humanas. O percurso surpreendente culmina numa cena que patenteia a integração entre personagens e cidade: a corrida do protagonista pelas ruas da cidade rumo à mulher que ama. E isso ao som de uma “Strike up the band” que, devido à aceleração da velocidade, evolui de marcha para corrida. Outro trunfo do filme é o aproveitamento que faz das canções de George Gershwin, sempre em identidade com a história – eu convido fortemente o espectador a ver o filme atentando para o modo como a ação se enlaça às histórias vividas pelas personagens cantadas pelo compositor quase um século atrás.

A “Manhattan” cantada por Allen está mais para aquela cidade romantizada por Richard Rodgers e Lorentz Hart na canção Manhattan de 1925. Nela, o eu-lírico faz um percurso afetivo pela cidade que ele considera mais propícia para a honeymoon que as tradicionais Cataratas do Niágara.

We'll have Manhattan,
The Bronx and Staten
Island too.
It's lovely going through
The zoo.
It's very fancy
On old Delancey
Street, you know.
The subway charms us so
When balmy breezes blow
To and fro.
And tell me what street
Compares with Mott Street
In July?
Sweet pushcarts gently gliding by.
The great big city's a wondrous toy
Just made for a girl and boy.
We'll turn Manhattan
Into an isle of joy.
(...)

O percurso proposto pela canção recupera em boa medida aquele já palmilhado pelas Manhattans de 1921 e 1979, com a diferença de que nela, como na Manhattan de Allen, a personagem que frui a cidade é individualizada: do Bronx à Staten Island, dos monumentos de concreto ao Central Park, passando por Coney Island (parque de diversão à beira-mar), pela praia Brighton (onde a pequenina roupa de banho da mocinha faria os mariscos sorrirem de barbatana a barbatana...) e pela Broadway (as suas crianças veriam “Abie's Irish Rose”, sucesso de público de 1922 a 1927), assim como pelas românticas ruazinhas da cidade cortadas gentilmente pelos carrinhos de mão e pela familiar vizinhança do Brooklyn, lugar onde os pombinhos viveriam – Lorentz & Hart fazem suas personagens abraçarem a cidade de norte a sul. Muitas explícitas semelhanças com o filme de Woody Allen. A primeira é o passeio no Central Park, Where our first kiss we stole,/ Soul to soul:

Minha sentimental journey pela cidade acaba num mapa desta “Manhattan” graciosa pintada por Rodgers e Hart, em homenagem a todos os que querem visitá-la virtualmente – o Google oferece agora uma ilusão quase perfeita do passeio...


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