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domingo, 2 de junho de 2013

Faroeste Caboclo: a trajetória de Santo Cristo em melodrama

O novo longa de René Sampaio foi lançado com pompa e circunstância esta semana, na entrada do feriado prolongado, em 500 salas de cinema do Brasil, em meio a largo anúncio pela imprensa na forma de notícias, artigos de opinião e informes publicitários. 
Na Folha de S. Paulo eu contei, por alto, meia dúzia de matérias desde dez dias atrás, além dos anúncios quase que diários de página inteira e de uma versão-propaganda do extinto “Notícias Populares” – o nostálgico “se torcer sai sangue” cuja capa eu lia diariamente nas bancas da cidade – recheada de notícias fictícias contando todos os detalhes sórdidos que culminaram no assassinato do anti-herói de Renato Russo no lote 14 da Ceilândia. 
A entourage convenceu-me a ver o filme. 
Saindo do cinema, a informação da “Folha” sobre o orçamento do longa – 10 milhões de reais, incluída aí a verba com a divulgação – dava mais voltas em minha cabeça que a história contada. 
Não que “Faroeste Caboclo” seja ruim. Trata-se, na verdade, de um filme praticamente todo o tempo mediano, com uns poucos momentos de brilho. Não é um filme que envergonha, quando arrolado entre as produções nacionais, servindo ainda como mais uma peça para provar a vitalidade (ao menos quantitativa) de nossa safra anual. 
Funciona como peça melodramática: a história do garoto negro e pobre, que presenciou a morte violenta do pai pelas mãos de um soldado e sai pelo mundo buscando justiça é contada de modo satisfatório, apesar de alguns ruídos (a voz off de João de Santo Cristo parece a todo o momento contradizer o que mostra a imagem – apenas para citar um exemplo, sua afirmação de que “Paguei tudo o que devia à Justiça”, após ir preso pelo assassinato de um policial, soa estranha na boca de alguém que se quer justiceiro). 
O elenco está algo desigual. O par romântico está claramente pouco à vontade; falta química entre Isis Valverde e Fabrício Boliveira. 
Boliveira está muito bem, mas Valverde está apagada (ela que é sempre luminosa na TV). Não consegue fazer sua Maria Lúcia alçar voo; e a “menina linda” que vira a cabeça de João, levando-o ao fatídico desfecho, sai da nossa cabeça tão logo a atriz sai de cena. Já o uruguaio César Troncoso está excelente como o traficante Pablo, o parente distante de João que o inicia no negócio. 
Voltando à história: Maria Lúcia, fumadora compulsiva de maconha, conhece um Santo Cristo em fuga da polícia, envolve-se com ele, repudia-o ao descobrir que ele vende drogas (!), dizendo que aquela não era vida para ela, para depois se casar com o traficante rival do rapaz (!?). Para os furos usa-se a desculpa da psicologia densa da personagem da jovem, enquanto que seu casamento com Jeremias é facilmente explicado usando-se como muleta o gênero em que o filme se constrói – a quantas desventuras obriga o amor!... Mas a verdade é que Maria Lúcia não recebe tratamento psicológico nenhum, entra e sai de cena como um comparsa de comédia de costumes, a existir apenas enquanto escada para o herói – para o anti-herói, no caso. 
Pode-se dizer que a presença empírica dela na música também é episódica – do que discordo, já que na música o desejo de vingança de João ocorre quando ele, querendo voltar para se casar com a mocinha, descobre que ela já se casara com o seu rival. Mas o filme tampouco triunfa como adaptação fiel da música (entendendo “fiel” como algo que respeita o “espírito” da canção - entidade que mesmo intangível dispensa maiores explicações). 
A canção “Faroeste Caboclo” lê as relações sociais de Brasília e adjacências – e, por extensão semântica, de todo o Brasil – como um duelo sangrento do qual a “Justiça” se isenta. Faroeste como gênero que fez vicejar o cinema americano tanto como indústria do entretenimento quanto como formação da identidade social do norte – interessado nas discussões sobre o cinema como era, Renato Russo provavelmente conhecia o que o crítico francês André Bazin falou sobre o gênero. 
Na jovem Capital da República brasileira também se travava um duelo, não entre o cowboy colonizador e o índio cujas terras ele desejava no longínquo meio Oeste americano onde ainda não chegava a lei, mas entre os migrantes pobres moradores das cidades-satélites e os podres poderes constituídos. 
Santo Cristo morre filmado e cercado de público: “Se a via-crúcis virou circo, estou aqui”, diz ele ao se observar um novo gladiador, a alimentar a sede de sangue das massas com o seu sofrimento. Panem et circenses – não poucas vezes em sua jovem história o cinema foi considerado o novo circo romano; Russo, conhecedor da sétima arte como era, possivelmente não estava alheio a isso. 
Esta adaptação de “Faroeste Caboclo” resvala para o melodrama digestivo, em que mocinho e mocinha morrem tal e qual Romeu e Julieta para encontrarem um happy end no além (a voz off diz algo como “Não termino aqui”, enquanto ambos jazem iluminados por sorrisos serenos). Noutras palavras, o filme termina ratificando o Panem et circenses ao invés de se bater contra ele, como faz (extensamente) a música. 
E mais: cenas ágeis de perseguição, decupagem que procura higienizar as cenas em que há sexo (inclusive o estupro de Santo Cristo), drogas e violência, para caber na faixa indicativa dos 10 anos; estas estratégias aumentam o público consumidor da fita, mas aniquilam o potencial explosivo da canção, além de reduzir bastante seu viés crítico. 
“Faroeste Caboclo”, a música, teve sua veiculação censurada nas rádios. A distância que o filme estabelece dela pode ser cabalmente medida pelas estratégias que facilitam a sua ampla vendagem. E assim, a via-crúcis de Santo Cristo perpetua-se como circo...

sexta-feira, 10 de maio de 2013

Somos tão jovens (2013)

Luminosa esta cinebiografia de Renato Russo (dirigida por Antonio Carlos da Fontoura, roteiro de Victor Atherino e Marcos Bernstein). 
A começar pelo título, extraído do refrão de “Tempo perdido”, balada que funciona como leitmotiv do filme, já que ele escolhe como recorte temporal os anos da formação intelectual/política/artística do garoto brasiliense Renato Manfredini, o Renato Russo. De 1976 a 1982, diz a legenda inicial. O filme, todavia, caminha até 1985, quando seu Legião Urbana apresenta-se pela primeira vez no Rio de Janeiro, no Circo Voador, palco que flagra num só tempo o clímax do périplo dos jovens roqueiros de classe média da cidade de Brasília em busca do reconhecimento artístico, e o pontapé inicial na carreira profissional da lendária banda. 
Renato Russo
Não há nada de original em se recontar a trajetória de sucesso de determinado artista a partir dos momentos determinantes de sua formação, tampouco em fazê-lo linearmente ou em curva ascendente, como faz o filme. A escolha trivial já fora bem aproveitada em “Os filhos de Francisco”, apenas para nos determos no maior sucesso de público da safra recente de cinebiografias nacionais. 
Aplaudível, no entanto, é a escolha de um tom tão em consonância com a faixa temporal e o tema recortados. O filme detém-se nos arroubos tão comuns nessa idade. Pontua-os com pitadas de ironia proferidas sobretudo pelo biografado. 
Thiago Mendonça está excelente na pele de Renato Russo. Sua aparência física com o músico e o timbre semelhante que ele atinge nas canções são potencializados pela leitura inteligente que ele faz do papel. E o roteiro favorece a imersão, pois deixa de lado a mitificação e toca no homem Renato Russo – ou melhor, no jovem Renato, no período angustiante de formação de sua identidade.  
Tão jovens todos nós já fomos. Mas calhou de a juventude de Renato coincidir com os estertores da repressão política no Brasil e com a entrada, no país subdesenvolvido e “jeca” – só pra reverberar o adjetivo venenoso e verdadeiro usado pelo artista no filme –, do punk e do rock and roll de protesto; calhou de a sua geração crescer na novíssima Brasília, cidade parida a fórceps, de tão jovem passado cultural mas onde vicejava uma tão velha política. 
Russo e companhia tinham o mundo para descobrir e, como eram jovens, fizeram-no com uma urgência consonante à idade: devorando as fitas-cassete dos Sex Pistols trazidas pelos filhos dos diplomatas alocados em Brasília e as reportagens publicadas sobre eles nas gazetas estrangeiras; juntando-se em tribos musicais tão variadas quanto efêmeras, a ressoarem influências também variadas e efêmeras, coisas de quem é muito jovem... 
Intervenção dos Sex Pistols na efígie da rainha da Inglaterra
O filme entende bem o grupo do qual fala, e sobre ele debruça-se com um carinho extremo. 
Com pouca condescendência, no entanto, e prova disso é a ironia com que, por exemplo, um Renato em farrapos, recém-iniciado ao punk, diz aos familiares que aquele é seu “novo eu”. “Deixe-me sofrer em paz” e outras melodramatices do gênero são vez por outra repetidas pelo personagem, e com a ênfase oriunda de alguém que observa criticamente o papelão que representa. A voz de Renato alinha-se à voz do filme, e temos como produto um trabalho cheio de frescor. 
“Somos tão jovens” abre-se a uma identificação muito mais ampla que àquela circunscrita à geração do Legião Urbana. 
Eu tinha quatorze anos quando morreu Renato Russo, em 1996. De moleca eu curtia mais o Nirvana e o Guns n’ Roses do que o rock nacional, portanto, sabia pouco e nada daquele grupo que marcara os jovens da segunda metade dos anos 80. Por isso, desacreditei do modo como o filme me comoveu. 
Renato Russo entrou em minha vida junto com a juventude, nos tempos do colegial, quando eu era tão menina quanto o garoto que abre o filme. A morte do artista multiplicou seus seguidores, e em 1997 “Que país é esse” e “Eduardo e Mônica” viraram hinos também da minha geração. “Tempo perdido” também. Naquele momento não havia mais ditadura a se derrubar, mas nas portas do novo milênio a gente ainda via “sujeira pra todo lado”, por isso “Que país é esse” parecia um bom tema para cantarmos em uníssono no fim de 1999, no fecho daquela enorme peça de teatro com que nos despedirmos do Cyrão. 
A foto histórica em frente ao congresso nacional, tendo os
três integrantes do Aborto Elétrico (primeira banda de Russo) à
esquerda e os três integrantes da Plebe Rude à direita
Vivi durante o filme um flashback da juventude. Flashback pouco condescendente, também. Nada como o tempo para vermos as fragilidades estilísticas dos nossos poetas jovens ou o modo por vezes ingênuo ou desinteressante como nós solucionávamos os conflitos dessa fase sacal que é a que está entre a adolescência e a idade adulta. Mas se a voz de Renato Russo ainda gela a minha espinha, mesmo que agora algumas rimas pobres suas firam meus ouvidos, é porque não posso apagar sua relevância, pra mim e minha trupe, naquela fase em que se ter todo o tempo do mundo parecia mais um tormento que uma alegria...