domingo, 10 de outubro de 2021

Giornate Del Cinema Muto de Pordenone 2021: Dia VIII


Dia 8: terça, 9 de outubro de 2021 

Último dia da Giornate de Pordenone, ontem. O programa de sua modalidade online foi duplo: um trio de curtas-metragens da norte-americana Vitagraph, rodados em 1910, rotulados “Vitagraph Japonism” pela organização do festival, e o sensacional “Maciste all’Inferno” (1926), dirigido por Guido Brignone e protagonizado por um dos mais amados heróis da cinematografia muda italiana, Bartolomeo Pagano. 
O programa “Vitagraph Japonism” foi para mim uma descoberta. Como pesquisadora da produção cinematográfica e literária produzida e/ou em circulação no Brasil entre fins do século XIX e primeiras décadas do XX, invariavelmente encontro mostras da influência do Japão no Brasil, sobretudo a partir de fins da primeira década de 1900 – influência que se estende aos Estados Unidos, sobretudo pela grande presença de imigrantes orientais que aportam em cidades como Nova Iorque, centro de produção cinematográfica. 
Já no Rio de Janeiro, um esporte como o jiu-jitsu dissemina-se, enquanto a população abastada carioca passa a trajar luxuosos quimonos fornecidos por uma importadora japonesa instalada no coração da cidade. No âmbito teatral, companhias nipônicas circulavam extensivamente o Brasil – Ary Bezerra Leite destaca a sua presença em estados do Nordeste, onde, a exemplo do que ocorria no Rio de Janeiro, tais grupos vez por outra apresentavam espetáculos de variedades que incluíam o cinema. 
No caminho inverso, observamos a reinvenção do Japão pela cultura ocidental. Em 1909, um grande sucesso carioca é a versão cinematográfica da bem-sucedida teatral opereta britânica “A Gueixa”, de Sidney Jones (1896), produzida por William Auler e exibida com acompanhamento musical cantado ao vivo pela companhia que aparecia na fita. No âmbito musical, outro sucesso nestas plagas era a valsa “Mikado”, dos também compositores ingleses Sullivan e Gilbert (1885). No literário, João do Rio emoldura à japonesa diversas personagens que compõe entre 1910-1915, de belezas frias e morais imperscrutáveis. 
É o caminho da reinvenção de uma cultura oriental apreendida desde a superfície que trilharão os filmes “The love of Chrysanthemum”, “Ito, The Beggar Boy” e “Hako’s Sacrifice” (todos da Vitagraph, como já apontei acima), estreados num espaço de um pouco mais de um mês entre eles e rodados praticamente nos mesmos cenários – segundo Ben Brewster, o estúdio da companhia na Avenida Flatbush, no Brooklyn. 
Tais obras reproduzem algumas constantes na apreensão do Japão pela cultura ocidental, a exemplo da utilização de elenco ocidental, orientalizado pela maquiagem, e da teatralização dos gestos tendo como modelo a pintura japonesa – outro must da decoração ocidental daquela época. Num momento em que os filmes norte-americanos já faziam uso de cenários tomados da natureza, observamos enquadramentos duros cujas profundidades são construídas a partir de sucessivos telões pintados, que dão aos filmes a aparência de quadros vivos. 
“The love of Chrysanthemum” é originário da obra literária que depois servirá como base da célebre ópera de Puccini “Turandot”: o romance “Madame Chrysanthème” (1888), de Pierre Loti. A jovem Chrysanthemum, casada com um homem muito mais velho que ela, apaixona-se por um turista norte-americano (no filme, Maurice Costello, que depois se torna um dos primeiros galãs da sétima arte). Enquanto na ópera existe mais reciprocidade na história de amor, no romance e no livro o turista deseja sobretudo divertir-se às custas da jovem apaixonada, que acaba se suicidando pelo amor não correspondido. 
Os outros dois filmes são protagonizados pela menininha Adele de Garde: o garoto pedinte da primeira obra, que acaba adotado por um casal sem filhos depois que a mãe morre de fome; e a menina abnegada que recebe como retribuição de Hako, a quem ela ajudara, o crisântemo que a fará ganhar o prêmio graças ao qual ela pagará as dívidas do pai preso. Atriz de grande naturalidade, Adele de Garde fará as duas obras das quais participa parecerem menos engessadas. 

“Maciste all’Inferno”, o segundo programa do dia e último da Giornate, faz jus ao espaço que ocupa no festival. É uma obra espantosa, que hoje existe em parte graças à preservação que a nossa Cinemateca Brasileira fez de uma cópia sua colorida (segundo dois procedimentos: a viragem e o embebimento) em nitrato, utilizada em parte no processo de restauração sofrido em meados da década de 1990. Em 2009, houve um novo restauro do filme, levado a cabo pela Cineteca di Bologna e pelo Museo Nazionale del Cinema de Torino, versão a que assistimos ontem. 
Maciste é um dos principais heróis do cinema silencioso: o homem bondoso, de largas dimensões e força hercúlea, que surge em première no notório “Cabíria” (1915), aqui é uma mistura do “Orfeu” da opereta de Offenbach “Orfeu no Inferno”, do goethiano “Fausto” e do Dante da “Divina Comédia” – embora “Maciste all’ Inferno” estabeleça esta última obra como a sua influência mais direta. 
A história se passa num vilarejo nevado situado aparentemente na Suíca – não há qualquer esforço de atrelamento histórico, tanto que a obra é denominada “diavoleria in 5 atti” (algo como “diabrura em 5 atos”). Maciste, de trajes burgueses, administra a sua fazenda e é apaixonado pela jovem Gabriella, a quem o diabo tenta com a presença de um belo jovem, que a abandona grávida. 
É desnecessário percorrermos todos os inúmeros incidentes do drama, colocados em moção pela personagem mefistotélica saída da pena do roteirista Riccardo Artuffo. Após Maciste salvar o bebê de Gabriella, o diabo o arrasta a esse inferno composto a partir da livre mistura dos trágicos aos cômicos: das diabinhas que, em trajes menores, desfilam pelos domínios do diabo, visando a arregimentar novos seguidores; ao compêndio dos vícios separados por qualidades, à maneira da “Divina Comédia”, obra fundacional da língua italiana cujos versos são citados textualmente no filme; e, enfim, ao gigante e horrendo ser que se alimenta das carnes dos pecadores, o qual parece saído das obras de Méliès rodadas décadas mais cedo – os efeitos especiais são produzidos por Segundo de Chomón, um dos pioneiros do primeiro cinema, daí que esse Maciste, embora tenha sido produzido no final do cinema silencioso, estabelece um diálogo mais profundo com a magia do primeiro cinema do que com as produções cinematográficas do termo dos anos de 1920. 

A deglutição que a obra realiza da tradição literária ocidental e o rótulo de “diabrura” atribuído a ela por seus criadores lhe dão um éthos chistoso e demolidor bastante próximo do que realizavam, na época, as vanguardas estéticas. Não que a obra não se leve a sério – a oração do filho de Gabriella pedindo a Deus a volta de Maciste, que é responsável por tirá-lo do inferno, estabelece liames com a moralidade convencional da cinematografia comercial da época. No entanto, o restante da obra não pode ser ignorado. Tive, portanto, alguma dificuldade de compreender a música que Teho Teardo e a Zerorchestra criaram para ela. 
Eu não conhecia o trabalho de Teardo, cuja carreira voltada à música eletrônica impressiona. Já a Zerorchestra, de quem sou fã, tem uma pegada jazzística que sempre caiu como uma luva às comédias que ela vem acompanhando nas edições anteriores da Giornate. Este “Maciste all’Inferno” é por certo um desafio, no entanto, a música lenta e torturada composta para o filme, bem como a preferência pelo som eletrônico ao acústico, fazem a primeira metade da obra se arrastar. Seus pontos culminantes são, penso eu, os solos de violino que marcam as curvas dramáticas da história. No entanto, o inferno particular de Maciste, fruto da mistura entre a tradição cultural erudita ocidental e a cultura de massas, é potente demais para não nos impregnar. 

Encerro aqui a oitava resenha em oito dias de Giornate, missão que duvidei conseguir levar a cabo, considerando-se a minha imersão em trabalhos muito menos palatáveis do que esse. À guisa de balanço breve, louvo o esforço da organização do evento de criar esta versão online sua aos amantes do cinema silencioso que não podem, pelos mais variados motivos, prestigiá-lo presencialmente. E não posso deixar de ainda uma vez constatar, embora a ame, a ausência de cinema latino-americano (nem estou me referindo a cinema brasileiro) entre as obras exibidas ao vivo ou em streaming. Se não temos indústria de cinema nos tempos do silencioso, temos uma porção de filmes que merecem ganhar o mundo.

sábado, 9 de outubro de 2021

Giornate Del Cinema Muto de Pordenone 2021: Dia VII

Dia 7: terça, 8 de outubro de 2021 

A Giornate está em seus estertores. Agora, provavelmente os participantes da edição in person do evento devem estar metidos numa noite de bota-fora mais inolvidável do que aquela que houve em 2019, devido ao interregno a que foram obrigados no ano passado. Enquanto isso, os participantes do evento online devem estar se preparando para assistir aos últimos dois programas do ano, disponíveis até a tarde de amanhã. Antes de nos juntarmos a eles, passemos em revista “Moral” (1928), filme alemão rodado por Willi Wolff e protagonizado por Ellen Richter. 
A atriz – segundo nos informa Jay Weissberg, diretor do festival, na curta apresentação que faz do filme –, era estrela de primeira grandeza no cinema dos anos de 1920, tendo rodado dezenas de filmes que não sobreviveram ao tempo porque ela não fora regida pelos célebres Lubitsch ou Murnau. 
Efetivamente, “Moral” chega aos nossos tempos incompleto, e graças ao esforço de um conjunto de arquivos europeus, que o restauraram partindo do negativo da obra, do qual, no entanto, falta cerca de um rolo e meio. Visando à completude do material perdido, foi utilizado para o restauro igualmente uma tiragem de primeira geração realizada para a exibição da obra na Espanha, enquanto que takes e cenas perdidas foram reconstruídos com a ajuda de fotografias, e intertítulos perdidos foram recuperados graças aos arquivos de censura de República Tcheca – ao menos para fornecer documentos ao pesquisador serve a censura... Anotei entre os envolvidos na viabilização do restauro o Deutsches Filminstitut & Filmmuseum, a Filmoteca Valenciana, a University of Applied Sciences de Berlim, o National Archives of the Czech Republic e a ARRI Media. Como se pode observar, tal trabalho não é de pouca monta. 
Porém, felizmente agora temos “Moral” em versão bem próxima àquela que sonhou Willi Wolff, e podemos espiar pelo buraco da fechadura a república de Weimar poucos anos antes do terror nazista; ou, melhor dizendo, podemos observar a Alemanha das diversões noturnas e dos costumes livres cujo pitoresco invadiria a cinematografia nas décadas vindouras, nas mais diversas chaves. 
Wolff fora letrista dos teatros de variedades alemães antes de ingressar na cinematografia, então o filme traz uma visada nostálgica nos bastidores desse mundo, colocando em cena trechos de espetáculos teatrais efetivamente exibidos então, sem saber que documentava uma Era que logo seria reduzida a cinzas. Sua comparsa na empreitada é Ellen Richter, que além de sua mulher era sua sócia e sua estrela. Em “Moral”, ela é Therese Hochstetter (a.k.a. Ninon d’Hauteville), a protagonista de uma revista de ano berlinense que viaja com sua companhia à província para apresentar o seu espetáculo. 
Ninon surge em cena de cabelos cortados à la garçon e trajando calças compridas de cetim aderentes ao corpo e longos peignoirs emplumados – “a senhora não pode vestir algo mais decente?”, lhe dirá a polícia antes de levá-la prestar esclarecimentos na delegacia –, fazendo emergir a femme fatale que a virada dos anos de 1920 revisitava, a qual porejava ironia e senso crítico. Cabe a ela bater-se contra os velhotes bastiões da moral e dos bons costumes da localidade interiorana em que aporta a companhia, os quais desejam impedir a sua estreia. É desnecessário dizer que os tipos são obviamente hipócritas, tanto que o principal representante esconde a aliança e assedia Ninon – sem reconhecê-la – no trem que os conduzia à cidade. 
Segundo Oliver Hanley, que tece algumas considerações sobre a obra no site da Giornate, “Moral” baseou-se frouxamente na peça homônima de grande sucesso escrita por Ludwig Thoma em 1908; que chegou a ser representada por Richter em 1909. Dada a distância entre a obra teatral e a cinematográfica, compreende-se porque esta resvala à pedagogia, explicitando ad nauseam os caracteres putrefatos daqueles que desejavam impor regras de conduta aos demais. Libertária na aurora do século XX, a crítica soa ultrapassada vinte anos mais tarde. 
Todavia, o filme tem algumas sequências impagáveis, a exemplo daquelas que concernem à instalação, pela moça, de uma câmera oculta no quarto contíguo ao seu, para que ela possa filmar os questionáveis agentes da moralidade em atos reprováveis. O dispositivo fílmico, devido à suposta objetividade da imagem que capta, comparece em várias peças de teatro de fins do XIX e inícios do XX, com o objetivo de denunciar infratores. A sua presença em cena praticamente na dobra dos anos de 1930 aponta as continuidades vividas pelo cinema. 
Mas, sobretudo, o filme vale à pena pelo sorriso debochado com que Ellen Richter, realmente uma estrela, paulatinamente se desembaraça dos tipos que desejam impedi-la de subir à cena. Lamentavelmente, a vida tantas vezes não imita a arte. Uma vez que Hitler sobe ao poder, a atriz e o marido imigram aos Estados Unidos, porém, interrompem a sua contribuição ao cinema. Legada ao ostracismo por tantas décadas, esperamos que esse reaparecimento de Ellen Richter em “Moral” seja o princípio da sua redescoberta pelas novas gerações.

sexta-feira, 8 de outubro de 2021

Giornate Del Cinema Muto de Pordenone 2021: Dia VI


Dia 6: terça, 7 de outubro de 2021 

Dobradinha de nasty women no sexto dia da Giornate. “Nasty Women”, programa que o festival vem apresentando nos últimos anos, é um de seus mais bem-sucedidos – tanto que uma seleção sua será em breve lançada em blu-ray, o que, considerando o reduzido mercado consumidor do cinema silencioso, não é pouca coisa. Organizam-no duas professoras/pesquisadoras da área, Maggie Hennefeld e Laura Horak, e as suas seleções e apresentações sempre primam pela agudeza e pelo bom-humor. 
Duas obras fizeram parte do streaming de ontem, o curta-metragem francês “Le Ménage Dranem” (1912) e o longa norte-americano “Phil-For-short” (Oscar Apfel, 1919). 
O curta é protagonizado pelo ator/personagem de Dranem, responsável por uma série cômica de sucesso da Pathé dos últimos anos do primeiro cinema. Em cena, uma inversão de papéis tão comum ao cinema daqueles tempos de revolução dos costumes. Dranem é o marido tiranizado pela esposa feminista, a qual o filme observa com invulgar acidez, demonstrando a má vontade com que os pressupostos deste movimento eram tomados pelo senso comum. 
Os cenários da casa burguesa retratada, que somam objetos reais e objetos pintados, bidimensionais, ratificam que a obra toma por molde a farsa teatral. A proximidade da câmera com relação às personagens – sobretudo a esposa – apenas fazem sublinhar seus trejeitos exagerados, ressaltando o que haveria de ridículo em sua atitude de deixar o filho bebê com o marido enquanto ela, de gravata e jupe-culote (a tal “saia-calção” causava alvoroço mundial nesse momento, tendo engendrado, no Rio de Janeiro, por exemplo, canções e mesmo obras cinematográficas), bebe uma cerveja enorme num boteco, fuma cachimbo ou joga carteado – e briga – com as amigas. 
O filme estabelece uma dicotomia estrita entre afazeres masculinos e femininos e, por meio da inversão, num só tempo ironiza o marido transformado em empregada doméstica e a esposa transformada em homem. Emerge da obra, todavia, repúdio sobretudo pela personagem da mulher. Enquanto a câmera demonstra simpatia pelo homem que faz o que pode num lugar que claramente não lhe caberia, a mulher é talhada segundo as piores características masculinas – desdenha da prole, é ébria e jogadora compulsiva. 
Esses traços grossos procuram convencer o público da reviravolta que logo se operará. Ao chegar em casa, o marido a agride fisicamente, devolvendo-lhe a vassoura e a criança. A cena final mostra o casal risonho cercado de filhos, no que seria um quadro de harmonia familiar apenas possível porque o homem colocou a mulher em seu devido lugar. Incompreendido, o feminismo era então posto à bulha de forma farsesca para ser terminantemente rejeitado. 

O próximo filme, “Phil-For-short”, da World Film Corporation, é uma pequena obra-prima de comédia. Traduzida livremente por “Phil para encurtar”, o título faz referência ao nome da personagem da mocinha que está tão longe das heroínas românticas típicas quanto das mulheres desagradáveis/sórdidas/maldosas que surgem às dúzias nos programas organizados por Hennefeld e Horak (o rótulo “nasty” com que as organizadoras batizam o programa é certamente irônico, pois hoje nós nos deleitamos com essas figuras femininas que tomam seus destinos nas mãos tanto quanto seus contemporâneos se apavoravam com elas). Phil é Damophilia Illington, jovem batizada segundo certa personagem de Sapho (que é, sabemos, a autora grega oriunda da ilha da ilha de Lesbos, donde se origina o substantivo “lésbica”). 
Filha de um velho acadêmico voltado aos estudos do grego arcaico, Damophilia é tão erudita quanto espevitada. Evelyn Greeley, sua intérprete, lhe dá carisma e frescor. Num momento em que calças compridas num corpo feminino eram um atentado à moral, a jovem surge pela primeira vez em cena de macacão, alimentando os cavalos do sítio de seu velho pai. O homem, no entanto, morre inesperadamente, deixando-a à mercê de um rico comerciante da cidade, que se incumbe de tutorá-la porque quer desposá-la. Para lhe fugir, ela se veste em travesti e deixa os domínios do pai junto de um velho funcionário dele – tocador de violino que fornece a música para as incursões da moça pelas danças clássicas gregas. Damophilia despoja-se de si para viver um destino diferente do que aquele que cabia historicamente às mulheres, como antes fizera a Rosalinda de Shakespeare e, como ela, encontrará o seu Orlando após embrenhar-se na floresta situada nos limites da cidade. 
O tal jovem é John Alden (Hugh Thompson), um solteirão contumaz que vitupera as mulheres. Traduzindo um suposto texto grego, ele dirá que “O homem que tenta pegar uma enguia pela cauda ou tomar uma mulher por sua palavra logo se descobrirá de mãos vazias”. Professor de grego arcaico, John faz tanto sucesso entre as suas alunas quanto Indiana Jones fazia entre as dele. O personagem enceta relações com a versão masculina da mocinha – o “Phil” que ela usa como apelido combina consigo como nunca –, que, para fugir de seu perseguidor, decide procurar trabalho junto à universidade onde o rapaz leciona. Ela, a essa altura já interessada por ele, surge ali como mulher. A partir de então a veremos – o que é algo revolucionário quando pensamos no cinema clássico da época – atuando em pé de igualdade junto dele, na cátedra de grego clássico. 
Repleto de argúcia, o filme faz uso de um vocabulário bélico para exacerbar a tensão sexual que então passa a imperar: na sala dividida milimetricamente ao meio, com duas mesas aos mestres e dois róis de cadeiras aos estudantes (as mulheres se sentam diante da professora e os rapazes, do professor), acontece um “fogo cruzado”, segundo o intertítulo, já que as moças flertam com o professor enquanto Damophilia flerta com todos os rapazes. Já na sala do diretor acontece uma “Revolução Ática”: tal e qual um ateniense moderno, John Alden se digladia frente a uma situação que ele não controla. Tudo em vão. A jovem Phil, uma das personagens mais interessantes do cinema desses tempos, tem larga vantagem sobre ele. Estrategista, elaborará um plano para que o jovem se case consigo e, assim, ela se veja livre do sórdido comerciante que a persegue. A música do querido José María Serralde Ruiz é conivente com a mocinha, antecipando ao público as ações da adorável Evelyn Greeley. 
Esse filme, como o anterior, toma a farsa como modelo. Ambos, todavia, têm entre si uma diferença espiritual. Aqui, o risível é John Alden, cujo repúdio ao gênero feminino é vingado com o casamento com uma mulher de caráter muito mais firme que o dele. Ao conhecer Damophilia, John lhe dera como conselho casar-se com um homem forte que a corrigisse. Contudo, quem acaba corrigido é ele, por essa mesma razão. O travesti, que é tópica no cinema da época, materializa, neste filme a inversão dos costumes que ele apregoa – daí as censuras que a obra sofreu quando estreou, segundo as autoras do programa. Não por acaso, seu roteiro teve dedo feminino – Clara Beranger escreve-o juntamente com Forrest Halsey. Não é demais destacar ainda uma vez a importância do gesto da Giornate de apresentar obras cujos roteiros foram escritos por mulheres. Visadas positivas ao gênero feminino partem invariavelmente delas.

quinta-feira, 7 de outubro de 2021

Giornate Del Cinema Muto de Pordenone 2021: Dia V


Dia 5: terça, 6 de outubro de 2021 

Quinto dia da Giornate. Em streaming, o cinema silencioso sul-coreano. A obra é “Geomsa-Wa Yeoseonsaeng” (A Public Prosecutor and a Teacher, de Yun Dae-ryong) e data de 1948. O anacronismo é esclarecido por Jay Weissberg na apresentação que ele faz do filme: finda a ocupação japonesa na Coreia, não restaram no país equipamentos de som que possibilitassem a exibição de filmes falados, daí a essa obra ter sido rodada silenciosa e acompanhada, no cinema, pela narração de Sin Chul, um dos últimos e mais notórios byeonsa do país. Os byeonsa correspondiam aos benshi japoneses – que, durante o cinema silencioso, narravam pessoalmente os filmes ao público durante a sua exibição (há aqui um texto meu sobre uma performance do benshi japonês XX, ocorrida na Giornate de Pordenone de 2019). 
A proximidade nas designações deve-se, quiçá, à assimilação da cultura japonesa pela Coreia durante a violenta dominação daquele país, que durou de 1910 até a rendição do Japão aos Aliados, ao fim da Segunda Grande Guerra, e teve como saldo a proibição do uso da língua coreana, a instituição de trabalhos forçados e a prostituição forçada de mulheres e crianças visando à prestação de favores sexuais aos combatentes japoneses – as quais eram denominadas eufemisticamente de “mulheres de conforto”. 
A 1948, a Coreia do Sul (à essa altura o país já se dividira, voltando-se a sua porção sul à economia capitalista) procurava se reerguer culturalmente. Usa, para tanto, no âmbito cinematográfico, as sobras dos equipamentos abandonados pelos japoneses. Filmes virgens então eram escassos, destaca Sungji Oh no texto de apresentação da obra publicado pela Giornate, e, ademais, o país era dominado pela Central Motion Picture Exchange (CMPE), distribuidora direta de filmes norte-americanos na Coreia. A aculturação a que o Japão submetera o país, fazendo com que remanescesse um número ínfimo de sua produção cinematográfica, passa, após o fim da guerra, a ser encabeçada pelos Estados Unidos. “Geomsa-Wa Yeoseonsaeng” – O promotor público e a professora – precisa ser lido neste contexto para que compreendamos as suas características e as suas falhas. 
A obra é um exemplar admirável do esforço de se fazer filmes independente das circunstâncias – o qual nós, brasileiros, compreendemos tão bem. A sua imagem é instável e fugidia, problema que parece se dever tanto à dificuldade de estabilizá-la para a digitalização quanto à qualidade do negativo. Vendo-a, pensei numa margarida se despetalando ao vento, ou então no maravilhoso documentário “Lyrical Nitrate” (Lyrisch Nitraat, 1991), de Peter Delpeut, cujos minuciosos primeiros planos e movimentos retardados em filmes que estão se decompondo fazem emergir a poesia incontornavelmente atrelada à morte da película cinematográfica. 
A maior qualidade deste filme sul-coreano consiste, suponho, no esforço que a imagem faz para resistir ao tempo, para embalsamar, como diz Bazin, aqueles anos em que a Coreia do Sul se esforçava para se reerguer. A decadência da imagem, a técnica cinematográfica falha - feita de inopinados jump-cuts e de longos planos que se esforçam, no entanto, para mimetizar a montagem clássica norte-americana -, a ausência de som num momento em que o cinema falado já era uma realidade ao redor do mundo e o esforço do narrador para fabular junto com o filme (trazendo, com sua voz, acalento a espectadores que vinham de experienciar situações tão traumáticas) testemunham o esforço que o país fazia para se reerguer. 
O entrecho da obra é curioso, porque estamos diante de um melodrama cujas tintas orientais não escondem o diálogo com as fontes ocidentais. Conta-se a história de um menino que conclui com esforço o ensino básico, precisando sustentar a avó doente. Ele precisa vender jornais para pagar o aluguel, divide as porções módicas de comida com a avó e chora por não ter os pais – o narrador admirável dá voz a todas as personagens e, a essas alturas, chora com ele as suas desditas. A professora do título, a atriz Lee Yeong-ae – “antes mulher que professora”, diz o narrador e o intertítulo, ressaltando as relações dessa obra com o melodrama clássico – é a figura luminosa que lhe dá comida e alento, levando-o a acreditar na educação. Ela deixa a escola, porém, dá ao menino um livro e recursos para que ele prossiga estudando. Dez anos se passam, e agora a vemos casada e ainda devotada aos outros, tanto que a sua dedicação à garotinha filha de um presidiário leva a cidade e o seu marido a acreditarem numa traição, e ele a ameaçar a pobre mulher com uma faca – arma por meio da qual ele acabará se matando, depois de tropeçar e cair sobre a lâmina. 
A cultura ocidental e a oriental se misturam: se a pobre professora clama a Deus por justiça (ao menos assim a legenda o traduz), o que retoma o papel dos ritos católicos no melodrama ocidental, ela, no banco dos réus, deseja ser considerada culpada para se juntar ao marido que a desacreditara e ameaçara, pois, “de que vale uma mulher quando o seu marido está morto?” – uma submissão ao homem que é sobretudo observada na cultura oriental. A reviravolta se dá quando ela descobre, no assento do promotor, aquele rapazinho a quem ajudara dez anos antes – agora um homem feito, cuja calorosa defesa da inesquecível professora a leva a ser absolvida. Em primeiros planos, destacam-se os papéis da educação na promoção social e da gratidão na promoção humana, lições que desejara gravar à posteridade o país que viera de emergir do mais horrível passado.

quarta-feira, 6 de outubro de 2021

Giornate Del Cinema Muto de Pordenone 2021: Dia IV


Dia 4: terça, 5 de outubro de 2021
 
Já podemos escolher um filme preferido da edição online da 40ª Giornate de Pordenone? Se sim, seria este “Fool’s Paradise” (1921), obra produzida pela Famous Players-Lasky, dirigida por Cecil B. de Mille e roteirizada por Beulah Marie Dixe e Sada Cowan – outras duas mulheres roteiristas, o que ressalta o esforço desta edição do evento de apresentar trabalhos de destacada participação feminina. 
O filme tem elementos para agradar variadas faixas de público, algo costumeiro nas grandes produções da já principal indústria do cinema do mundo: há o drama lacrimoso do antigo combatente da Grande Guerra que é ferido nas vistas por estilhaços de uma bomba, apaixonando-se por uma famosa bailarina francesa quando ela vai animar os doentes de certo hospital de campanha do país; há um triângulo amoroso entre ele, ela e uma deliciosa cantora de cabaré texana; há a comédia, que emerge sobretudo das relações que essa figura feminina –elemento central da trama – estabelece com os frequentadores da espelunca de El Paso, onde se passa a ação; há exotismo e fantasia, os quais aproximam esta obra das peças fantásticas amadas pelos públicos teatrais nas últimas décadas do século XIX, das quais o cinema se torna o natural continuador. 
Dorothy Dalton – de quem eu muito já ouvira, porém, nunca havia visto atuar – é aqui Poll Patchouli. Se houvesse nascido nos anos de 1910, seria naturalmente uma vamp. Na aurora dos anos 20, é uma vamp reformada, no esforço dos estúdios de impregnarem as suas personagens de realismo. É a dançarina espanholada do cassino do mexicano John Roderiguez (Theodore Kosloff), mulher cheia de talento, verve e, ao mesmo tempo, coração, que já principia a história salvando uma pobre mocinha de cair nas garras de um aliciador local. Em fuga da espelunca de Roderiguez, já que se imiscuíra nos negócios do patrão, Poll vai dar na casa de Arthur Phelps (Conrad Nagel), poeta de talento duvidoso e paixão inequívoca pela dançarina francesa Rosa Duchene (Mildred Harris), que ele conhecera enquanto convalescia no tal hospital francês. É uma paixão platônica e algo risível, já que o apaixonado é sobretudo um tiete, que espalha pela casa fotos e lembranças da amada como faziam, então, os espectadores cinematográficos com suas estrelas favoritas. Poll ironiza-o, mas se identifica com a sua fragilidade e se apaixona por ele. 
Porém, o triângulo vai se configurar quando Rosa surge em El Paso – cidadezinha do Texas que vicejava devido à exploração do petróleo – para dar algumas récitas. Poll, chistosa, não aceita calada a rejeição de Arthur, presenteando-o com um charuto explosivo que ele apenas ascenderá para comemorar o seu encontro bem-sucedido com a bailarina famosa – na verdade, o coitado apenas carrega a diva para que ela não enlameie os pés na entrada do teatro, e regozija quando ela se lembra dele. O chiste, no entanto, se transforma em tragédia, pois o charuto cega o homem cujas vistas já periclitavam, e aí acompanhamos, respaldados pelos longuíssimos e chorosos intertítulos, o seu percurso da luz à escuridão, que se efetiva quando a cortina do espetáculo de Rosa se fecha. Poll assiste a tudo, e acompanhamos num só tempo, doravante, o seu sofrimento com o destino do moço e a sua ironia com a paixonite dele pela bailarina – explicitada com imenso talento por Dorothy Dalton, de quem já virei tiete, à medida que ela parodia a performance da rival, diante dos frequentadores da espelunca mexicana onde ela trabalha, os quais têm por si um respeito e um encantamento imensos (também pudera). 

Poll se aproveita da cegueira de Arthur Phelps para se casar consigo com a conivência da cidade, encantando-se com aquele
paraíso de tolos – na opinião de seu patrão Roderiguez, também apaixonado por si – que é o seu papel de dona de casa, chefe de família cuidadora do marido enfermo. 
Tantos spoilers para explicitar a vocação melodramática da trama, que costura as lágrimas e o riso dando um invulgar primeiro plano ao tratamento dos caracteres. Poll é sem dúvida a melhor personagem da trama, repleta de profundidade. Mesmo enamorada de Arthur, consegue observar a ação de fora – momento magistral, que dialoga com o público nosso contemporâneo, é quando Poll aplaude justamente a cena da peça de Rosa em que a personagem da bailarina, a fada de coração gelado, é abandonada pelo homem que encantara. No entanto, a ironia com que ela trata a rival, colando mesmo a imagem de uma vaca sobre a foto de Rosa quando se casa com o cego Arthur, não a impede de nutrir pelo rapaz um amor abnegado, que a fará curá-lo mesmo sabendo que ele a abandonaria depois. 
Quando Arthur recobra a visão, a história se desdobra no enriquecimento do rapaz, cuja mina encontra petróleo, e numa insólita viagem sua ao Sião, em busca de Rosa, seu suposto grande amor – a qual, a essa altura, nós vemos que duplica, na vida real, o papel de fada de coração gelado que desempenhava nos palcos. 
O interregno siamês praticamente interrompe a ação dramática, e pode apenas ser compreendido no contexto da sedução que o exotismo oriental inspirava, então, no público ocidental, bem como no encantamento gerado pelas peças teatrais de cunho fantástico – em “Fool’s Paradise”, o tapete mágico da peça desempenhada por Rosa desdobra-se nos dançarinos típicos de Sião, nos rituais religiosos que nos fazem lembrar dos “Caçadores da arca perdida”, nas vias aquáticas que transformam a cidade num sucedâneo de Veneza – enfim, ficção e realidade resvalam-se, como então era costume na Meca do cinema. 
Aqui Cecil B. De Mille é bem-sucedido como nunca. Se “Fool’s Paradise” é uma grande produção como “Why change your wife” (1920) ou “Don’t change your husband” (1919), esta obra apresenta muitos mais atrativos ao público nosso contemporâneo porque coloca a moralização, grande preocupação deste diretor, em segundo plano. Prova disso é a profundidade impressa na personagem da deslumbrante Poll, e o happy ending que De Mille a faz merecer, malgrado a vida pregressa da moça, tão questionável para os padrões da época - happy ending exacerbado pela música maravilhosa que o meu adorado Neil Brand compôs para a trama, cujo tema delicado vai se desdobrando até atingir, com a última cartela, o paroxismo.

terça-feira, 5 de outubro de 2021

Giornate Del Cinema Muto de Pordenone 2021: Dia III


Ontem foi dia de cinema clássico americano na Giornate online: a comédia “An old fashioned boy” (1920), de Jerome Storm. Protagoniza a obra Charles Ray, estrela ascendente nos céus de Hollywood, talhado, graças ao seu rosto franco e sorriso melancólico, aos ingênuos dos melodramas campesinos. Ray fora revelado cinco anos antes por Thomas Ince – cujo estúdio roda este filme – depois de ter atuado como extra numa porção de produções da empresa. Aqui, ele desdobra novamente o papel que o fez notório. É David Warrington, o “garoto à moda antiga” do título, que tem como maior ambição casar-se e viver numa casa ajardinada de subúrbio com a sua eleita. Estamos, todavia, na aurora dos anos 20: a idade do jazz-band de que fala António Ferro. Logo a roteirista Agnes Christine Johnston mostrará ao público que esse ideal não será tão facilmente conquistado. 
 Outra mulher roteirista. Vejamos se há algum laivo de feminismo no encaminhamento que ela dá ao enredo. 
David se apaixona – e isso o descobrimos logo na abertura da obra, num close dos dois pombinhos pouco tempo depois de Betty Graves (Ethel Shannon) aceitar seu pedido de casamento. A câmera se distancia paulatinamente da sala de estar burguesa onde ambos se encontram e penetra no caótico quarto das crianças da casa de Herbert Smith (Wade Boteler) e Sybil (Grace Morse), onde o pedido é realizado. Nesses planos, temos num só tempo o enquadramento do sonho dourado de David e o pesadelo que dele pode advir. 
Como vemos, o roteiro de saída coloca diante dos olhos do público as agruras que se sucedem ao happy ending das fitas cinematográficas. Isso se ressalta quando, pouco depois, o rapaz confessa ao amigo Herbert que construíra uma idílica – para ele, claro – casa de campo onde poderá, juntamente com Betty, crescer e multiplicar. Depois de fazer ouvidos moucos ao repúdio do amigo no que diz respeito a esse modelo de felicidade conjugal, em meio à gritaria das crianças da casa, David vai buscar a noiva para lhe mostrar a casa. 
Mudamos agora de cenário. Em cena, o apart-hotel onde Betty vive com o pai. Um travelling pelos cômodos mostra que aquele não era um espaço talhado às crianças, e tampouco o era Betty, que, de saia longa, estola de marta e acompanhada constantemente de um french poodle, era o último modelo das modern girls vituperadas pelo rapazote enamorado. 
Betty conhece a casa bucólica sem saber que seria a sua futura proprietária, e ao sabê-lo, a rejeita. Sonha para si com a vida nas facilidades de um moderno apart-hotel, em detrimento do papel de dona de casa que o noivo desejava lhe impor. 
O entrecho pondera sobre um recente dilema social. Essas moradias determinavam uma guinada nos costumes, já que não aceitavam crianças e tampouco que se cozinhasse. O paraíso para muitas mulheres nascidas e criadas segundo os ideais feministas que então vicejavam era o inferno dos moralistas de costumes – dentre eles, porque não, o “ingênuo” David, que se esforça, com base em notícias de jornal, para provar a Betty que um casamento durável apenas seria possível numa casa como a que ele lhe construíra, tomada por crianças; enquanto apart-hotels e cachorros eram convites ao divórcio. 
O rapaz logo terá chances de testar os seus ideais. Abandonado peremptoriamente pela noiva, receberá de surpresa em casa os três diabinhos do casal de amigos, depois de mais um arranca-rabo de ambos. O cerne da trama ocorre enquanto ele está sozinho com esse encargo – uma vez que a governanta foge desesperada; afinal, ela esperava um bebê dali a 9 meses, e não três crianças de uma vez... E então, desastres se sucedem numa montagem extremamente dinâmica: o esforço do jovem para preparar às crianças uma bala puxa-puxa, na cozinha da casa; os problemas estomacais dos pequenos depois de ingerirem o doce e a corrida desse pai substituto atrás do médico que os socorrerá (por sinal, o pai de Betty) se sucedem numa impressionante fluidez. 
O médico irá à consulta juntamente com Betty, que agora está acompanhada de um novo pretendente, o lépido Ferdie Blake – o qual “marrily jazzes through life”, ou seja, caminha pela vida como num compasso de jazz, o que demonstra como aquele ritmo musical passava a definir a sociedade moderna. David intentará, ali, a reconquista da moça, com a conivência do pai dela, que usa de seu poder de médico para colocar a casa em quarentena devido a uma suposta infecção pelo sarampo. 
Os quiproquós que são o motor do gênero cômico se multiplicam enquanto o moço tenta reter a jovem e, depois, esconder do amigo que os filhos dele estão consigo, realizando um desejo da própria mãe das crianças, que quer dar uma lição no marido irascível. Numa montagem que entremeia a ternura e a loucura somos compelidos a ver o bom coração do moço que deseja reter a amada à força, ao mesmo tempo em que rimos às lágrimas do esforço que David faz para fugir de Herbert Smith (o pai das crianças) – trepando da cristaleira ao reposteiro, até colar no teto da casa – ou da tapona que Sybil, claramente mais forte que Herbert, imprime nele, indo socorrê-lo pouco tempo depois. 
David acabará salvo da acusação de traição pela própria Betty que antes o desdenhara, a qual, já se vê, acaba por preferir uma casa no campo à jazzear pela vida à fora. O happy ending frustra a nossa expectativa de emancipação feminina, no entanto, era a regra que o filme desejara antes de tudo defender, e não a exceção – tanto que as notas sobre a obra publicadas pela Giornate, escritas por April Miller, apresentam uma coletânea de entrevistas e reportagens concernentes à roteirista Agnes Christine Johnston: como ela costumava trabalhar cercada pela gritaria dos filhos, com um bebê sobre a escrivaninha; como fora numa pré-estreia poucas horas antes de parir, etc. 
Johnston, em suma, afirma que é melhor como mãe à medida que consegue ser uma boa profissional. Num primeiro olhar um old fashioned film, “An old fashioned boy” caminha o quanto pode, creio eu, em sua tentativa de mostrar que os anseios femininos se sobrepõem à maternidade. Mais que isso, seria condená-lo ao ostracismo já naquele momento, o que seria uma pena, uma vez que ele é uma obra-prima de comédia, com um delicioso timing vanguardista de screwball comedy.

segunda-feira, 4 de outubro de 2021

Giornate Del Cinema Muto de Pordenone 2021: Dia II


Dia 2: domingo, 3 de outubro de 2021

Programa duplo na Giornate deste domingo: o longa australiano “The man from Kangaroo” (The Better Man, Wilfred Lucas, 1920) e cinco curtas oriundos da Cineteca del Friuli, “Corti della Cineteca/Shorts from the Cineteca del Friuli”. Caminhemos por essas obras, que de saída surpreendem pela diversidade. 
“The man from Kangaroo” é o primeiro filme silencioso australiano que, pelo que me lembro, eu vi. Segundo as notas que o festival faz publicar sobre ele, trata-se do terceiro de cinco longas metragens protagonizados por Snowy Baker, produzidos na Austrália entre 1918 e 1920. 
Baker era atleta, produtor de esportes e ator naquele país, segundo a Wikipedia. Embora fosse ator de parcos méritos, possuía destreza física de sobra. Era uma espécie de Douglas Fairbanks australiano, observamos tão logo passamos os olhos pelo filme, que faz o esforço de arrolar os dotes musculares desse pastor evangélico (!) enviado ao outback australiano devido a, aparentemente, uma falta cometida – o intertítulo não dá mais detalhes. 
O desportista/ator/pastor desfila um rol de saltos ornamentais cujos nomes técnicos os intertítulos ressaltam, diante dos moleques da cidadezinha que lhe assistem embasbacados – como nós. Aqui, a ação dramática dá lugar ao display do número exibicionista – característica do cinema de atrações que perdura ainda em 1920. Antes e depois, flagramos o rapaz ora ensinando luta livre a dois moleques de seis anos que brigavam, para que eles se possam esmurrar com técnica, ora partindo no encalço de uma dupla de meliantes que rouba a carteira de um pedestre – subindo morros, saltando muros, trepando do alto de pontes por sobre carruagens em movimento, numa azáfama que deixa o público com taquicardia. 
Tão digno Snowy Baker é de Douglas Fairbanks, e este enredo é daqueles rodados na capital do cinema, que logo pensamos nas influências estadunidenses na trama. Efetivamente, segundo ainda as notas de Pordenone, a companhia produtora australiana importou dos Estados Unidos o diretor, sua mulher Bess Meredyth (roteirista importante no período) e a atriz Brownie Vemon – na história, Muriel, a mocinha. Há aqui, portanto, um esforço de se introduzir aquele rincão no coração da cinematografia internacional. 
O enredo, que já apontei em linhas gerais, tem umas proximidades inesquecíveis com o best seller australiano Pássaros Feridos (de Colleen McCullough, escrito no fim dos anos 70, transformado em seriado televisivo nos anos 80) – dentre as quais, por certo, não está a beleza estonteante de seu ator protagonista. Se Snowy Baker tem physique du rôle de sobra para as façanhas ginásticas, não convence como o par romântico da jovenzinha Brownie Vemon, cujo tutor quer em casamento uma vez que ele dilapidara o seu patrimônio, e “uma esposa não pode depor contra o seu marido”. Baker, que na história é John Harland, decide abandonar a batina tão logo percebe que a sua personalidade não se inclina à máxima cristã de “dar a outra face”. Impossibilitado de escalpelar o grupo de trogloditas que impede que ele realize um culto, decide se tornar vaqueiro e moralizar o outback. Ganha terreno, a essas alturas, o farwest cinematográfico norte-americano, que se beneficia aqui de umas cenas documentais de amplos espaços, de corridas de cavalos e marcação de gado. 
No entanto, o “Homem de Canguru” é, antes de tudo, um romântico. E aí, o roteiro esforça-se para encontrar um espaço para meter o amor entre a testosterona e deus. Cupidos multiplicam-se nos intertítulos, que são um dos pontos altos do filme (à certa altura, enquanto o tutor da moça finge sofrimento, vemos a ilustração de um crocodilo em lágrimas). É maio – a Springtime da canção de Jeanette MacDonald e Nelson Eddy –, as árvores estão em flor, os periquitos cantam, etc. O par romântico funciona, no entanto, melhor quando a mocinha, depois de ambos serem bruscamente separados, se muda casualmente para o ambiente inóspito que John Harland tenta moralizar, e passa a desempenhar um papel assertivo no rompimento com o seu tutor – a diferença que faz quando o roteiro é escrito por uma mulher... 
O filme é uma colcha de retalhos e o seu interesse está, eu acho, exatamente nisso. 

Agora, os curtas. 
São, como já disse, oriundos da Cineteca del Friuli, situada em Udine, na mesma macrorregião de Pordenone e de Veneza, porém, quase que na divisa com a Eslovênia. As obras foram recentemente restauradas – uma delas, “Bigorno fume l’opium”, foi mesmo identificada recentemente – e datam de 1911 a 1914. Estamos, portanto, nos domínios do primeiro cinema. 

A primeira, “Le Bolle di Sapone” (Air Bubbles, Giovanni Vitrotti, 1911), da companhia italiana Ambrosio, soma um conto moralizante (nos moldes de Cuore, de Edmondo de Amicis, lembra Paolo Cherchi Usai, que os apresenta brevemente) e efeitos especiais. Principia com a agressão impingida a certa senhora por um garotinho (bem penteado e milimetricamente vestido de marinheiro, malgrado a sua mãe viva num quarto de cômodo e costure para fora, como tantas sofredoras de melodrama (o intuito aqui é menos a verossimilhança que a moral/a beleza da cena). 
Ele dá de ombros quando o policial o entrega à sua pobre mãe, que chora. Sai de casa, rouba o brinquedo de um menino de sua idade e, ao soprar as bolas de sabão que saem de dentro dele, enxerga no interior delas o sofrimento da mãe. Volta para a casa abatido e consegue o perdão. 
O entrecho é menos interessante que o lilás que tinge o negativo, que o talento da atriz mirim Maria Bay, no papel do pirralho e, enfim, que a transformação das bolas de sabão, tomadas em close, noutras pequenas narrativas. 

O segundo é outra obra da Ambrosio, “Cenerentola” (Modern Cinderella, Eleuterio Rodolfi, 1913). Temos apenas uma fração deste filme que procura apresentar os bastidores das produções cinematográficas ao público ávido – a sua totalidade lamentavelmente se perdeu. Conta-se a história de Silvietta, pobre órfã levada aos estúdios cinematográficos da Ambrosio pela estrela Jenny Smart, que ela conhece nós não sabemos como. No trecho que restou da obra, observamos desde o encantamento do diretor pela moça, o teste que ela realiza e a sua contratação para desempenhar o papel, claro, de Cinderela – glosando o esforço de atrelamento entre a pessoa e a personagem intentado então pela indústria do cinema. O melhor aqui também não é o entrecho, mas o papel de time machine – como bem aponta Cherchi Usai – que este filme desempenha, apresentando-nos a magia daquele tempo e espaço tão recuados. Destaco sobretudo a inequívoca preocupação existente nesta produção com a profundidade de cena, já que vemos diversos gêneros sendo rodados de forma concomitante nos planos posteriores àquele em que se encontra a jovenzinha e os artistas dialogando (há um fragmento aqui, para os interessados).

“Bigorno fume l’opium” (Roméo Bosetti, 1914), da Pathé Comica, traz uma dessas figuras cômicas seriadas, o ator René Lantini (Bigorno), como o apatetado tipo que recebe a visita do tio recém-chegado da China. Entre os itens exóticos trazidos na bagagem, que então atraíam a atenção do redor do mundo, o homem retira os apetrechos para o fumo do ópio. Após apresentar a Bigorno como ele deve utilizar a droga com descrição, deixa-o só. Ele, como imaginamos, mergulha de cabeça nos delírios opioides, e nós com ele. 

“La mosca e il ragno” (1913), da Milano Films, é um lindíssimo exemplar de animação realizado nos primórdios do cinema. Novamente, um menino vestido de marinheiro surge em cena, porém, de modo coadjuvante. É ele quem nota o inseto pela primeira vez, retira as suas asas (que vemos num close de suas mãos) e, instado pela serviçal (estamos agora num ambiente burguês), termina a tarefa de escola, que o inseto interrompera. Tão logo se retira, surgem as verdadeiras protagonistas da cena, a mosca e a aranha, que encetam uma perseguição graças ao expediente do stop-motion (que eu não imaginava assim antigo): destruindo frutos, montando armadilhas e içando uma tirolesa num cuco. 

E, enfim, o filme mais longo do programa, tomando meia hora de seus 75 minutos, “Il Giglio Nero” (The Black Lily Gang, 1913), da Cines Italiana, um dos primeiros exemplares de filmes tematizando gangues criminosas os quais vicejam primeiro na Europa (por exemplo, “Fantômas”) e depois, nos Estados Unidos – são incontáveis os paralelos observados entre ele e um seriado como “The Exploits of Elaine” (1914), da Pathé norte-americana. 
A gangue em questão rouba os endinheirados (menos mal) da Itália. O público conhece detalhes sobre o grupo em paralelo à visita que um velhinho de aspecto bondoso realiza a uma família da alta goma. Descobriremos só no desfecho que este velho é o líder do grupo – na verdade, um jovem disfarçado. O sucesso da empreitada se deve ao detetive Sereni (Attilio D’Anversa) – o embate entre a justiça e o crime é outro elemento fundamental dessas histórias, vencendo sempre a primeira, mesmo que sejam necessários vinte episódios de vilania até o desfecho. 
O ponto alto da obra é a agilidade das perseguições e o requinte de detalhes na construção dos cenários, repletos de alçapões e portas invisíveis, apesar de algumas paredes de papelão ainda sacudirem frente à pressão dos corpos – ainda se buscava, então, um realismo específico à cena cinematográfica, para além da verossimilhança teatral, da qual esses filmes usualmente bebiam. 

A domani.

domingo, 3 de outubro de 2021

Giornate del Cinema Muto de Pordenone 2021: Dia I


Dia 1: sábado, 2 de outubro de 2021

A COVID-19 continua deixando a sua marca na Giornate de Pordenone, que este ano acontece de forma híbrida. Ano passado, o sucesso do evento totalmente online levou a sua organização a investir novamente neste formato, realizando, paripassu, a sua versão mais ampla no formato presencial (o programa completo pode ser baixado aqui). Portanto, a 40ª edição retorna de forma celebrativa ao seu sítio costumeiro, efetivando um papel primordial que ela teve nos idos dos anos 80, quando passou a ser realizada na cidadezinha recentemente sacudida por uma intempérie da natureza, para elevar o moral de seus habitantes. 

A sua edição online rompe mais uma vez as fronteiras que desde o ano passado dificultavam o encontro físico. Ao longo desta semana de Giornate, este blog será reanimado pelo cinema muto, comentando os filmes exibidos diariamente em sua plataforma digital. Interessados, inscrevam-se no link a seguir, e organizem-se para assistir aos programas diários em até 24 horas do seu lançamento, após o que o seu acesso é impossibilitado: https://www.mymovies.it/ondemand/giornate-cinema-muto/. 


Jokeren (The Joker/Il Jolly/Na roleta da vida, Georg Jacoby, Dinamarca, 1928)

Os estertores do cinema mudo produziram algumas de suas maiores pérolas. “Jokeren”, obra exibida no primeiro dia do evento online, é exemplo disso. A cidade de Nice, na Riviera francesa, é ali uma de suas personagens primordiais. Em primeiro plano está o seu carnaval, celebérrimo até os anos que antecederam a segunda guerra, cujos desfiles são temática incontornável da cinematografia do princípio do século XX. 

É durante um acidente de carro ocorrido numa dessas paradas carnavalescas que morre o jovem Jonny, ainda fantasiado. Antes, todavia, ele clama pela presença de um advogado. Chega Miles Mander (Mr. Borwick), que tem apenas tempo de anotar os seus últimos desejos, os quais darão moção ao (melo)drama: o rapaz tivera no passado um caso com uma moça que acaraba se casando com um homem poderoso. No entanto, o rapaz abandonado conservara junto a si as suas cartas e fotografia, que desejava destruir. 

Porém, Miles é um escroque: sua compleição seca e o bigode escovinha talham-no fisicamente à personagem do vilão. Não bastasse, a abertura da obra apresenta, em seguida ao plano geral da cálida e repleta orla de Nice, o quarto desorganizado e sujo do advogado, verdadeiro covil, onde dormem ele e os convivas da festa passada. Descobrimos, ato contínuo, que o homem deve dinheiro a deus e ao mundo, devido ao seu vício no jogo. Ele encontra em Lady Powder (Renée Héribel), a dama em questão, uma mina de ouro. Descobrimos a jovem a seguir: a ampla vila que ela divide com o marido Herbert (Gabriel Gabrio, do maravilhoso “Les Misérables”, 1925), o pequeno filho e a irmã. 

O filme faz um bom uso do carnaval, que não funciona meramente como pano de fundo da ação – a morte cai como uma pedra sobre os foliões, e vemos pierrots, palhaços e toureiros de cabeças baixas e chapéus nas mãos; e é num chapéu, feito de jornal, que Lady Powel lerá sobre a morte do antigo namorado. 

O sofrimento da jovem se duplica com a perseguição de Miles, que abre mão de qualquer ética profissional para explorá-la. Com a ajuda de sua irmã Gill, ela procura reaver os documentos. A certa altura, seu marido teme a mácula do nome dele e a esposa permite que a irmã assuma a culpa pelo caso incauto e seja despejada de casa – vê-se que esse é um roteiro escrito por um homem (na verdade, dois, o diretor e Jens Locher). A maioria das mulheres têm ombridade para não permitir isso, especialmente quando o escroque decide que desejará como paga o casamento com Gill, e enceta consigo uma perseguição sexual que, hoje, serviria de gatilho para muitas vítimas de assédio. 

Não obstante, sabemos que a tempestade se segue à bonança no âmbito do melodrama. Para tanto, o “coringa” Mr. Carstairs (Henry Edwards) do título exerce papel fundamental. A sua fantasia carnavalesca é duplo de sua sorte no jogo e versatilidade social. Cabe a si, para além de virar o jogo na ação, matizá-la com alívios cômicos fundamentais ao gênero – por exemplo, o modo como ele subtrai as cartaz de Miles, no desfecho da ação, fazendo uso de um diretor cinematográfico e de uma forte luz de cena (o cinema aqui, como em tantas vezes, falando sobre si). 

A montagem ágil coopera para a boa urdidura da trama: por meio da montagem paralela, os dramas familiares são inseridos no cerne do torvelinho carnavalesco – carnaval que é depreendido da realidade, ressaltando-se aí o papel do filme também como documento sociológico. 
A obra é produzida pela célebre Nordisk, num de seus últimos rompantes antes da decadência – conta-nos Jay Weisseberg, presidente da Giornate, que o filme serve como propaganda da empresa antes de sua pretensa venda a uma companhia inglesa, fato que jamais se efetiva. Fica-me dele, no entanto, sobretudo o desespero com que Gill, pontuada pelo dramático acordeon de Stephen Horne, traça sobre o seu peito três cruzes, com as cinzas da rolha do champagne envenenado, para que Mr. Carstairs não beba do líquido mortífero e ela não seja violentada por Miles. Quase cem anos mais tarde, o filme ainda tem muito a nos dizer.