Em junho passado, acho, quando começaram a aparecer notícias sobre o musical cujo título encima essas linhas, minha primeira reação foi a de pensar: “O que é que vão fazer com a minha Judy?” Os leitores sabem que sou fã possessiva de meus ídolos, e a Judy é das maiores – aquela louca genial que a tanta rasgação de seda já me obrigou aqui... Bem, só pude descobrir o que fizeram com ela na sexta passada, quase no fim da temporada da peça que arrebanhou três indicações ao prêmio Shell de teatro do Rio de Janeiro, nas categorias de melhor atriz (Claudia Netto), ator (Gracindo Júnior) e cenário (Marcelo Pies). E enquanto escrevo aqui, estou ainda sob o efeito do torvelinho no meio do qual fui lançada durante as duas horas de espetáculo.
Se o musical de Peter Quilter (levado à cena em versão brasileira por Charles Möeller e Claudio Botelho) tem estofo para entreter o público pelas suas qualidades dramatúrgicas – mise-en-scène empolgante e aliança sempre segura entre drama, comédia e música -, ele é um manjar dos deuses para os fãs de Judy Garland. Porque quem aparece no palco é uma versão assustadoramente fidedigna dessa artista de vida tão densa e conturbada, mesmo que curta. A Judy entertainer está toda lá, numa composição extraordinária de figurino, maquiagem, impostação de voz e gestual; assim como lá está a mulher debilitada emocional e fisicamente, tão decantada por aqueles que a conheceram na vida privada mas pouco conhecida do grande público – público a quem ela siderava sempre que abria a boca para cantar.
Judy sofreu todas as agruras do star system, como eu já disse aqui. Porque ela era uma das mais lucrativas máquinas de fazer dinheiro da indústria do cinema, foi criada à base de comprimidos que a faziam dormir e acordar para que cumprisse a agenda apertada e a concomitância das produções. Publicamente ela fazia chiste da coisa: “O buquê de flores era comemorativo ao tanto de filmes que fiz. Cada botão correspondia a um filme.”, diz ela sardonicamente a Mickey Rooney no programa que abre a série “The Judy Garland Show”, veiculada na CBS entre 1963 e 1964, testamento cabal da excelência da artista. Porém, era inegável que ela se deteriorava. Aos 46 anos de idade – momento que a peça circunscreve – estava em frangalhos: endividada, viciada e com uma voz que já rareava (diz a lenda que, numa de suas últimas performances, uma soprano se levantou na plateia e produziu certa nota de “Over the rainbow” que ela não mais conseguia alcançar).
A peça centra-se no diálogo entre as vidas pública e privada de Judy Garland, como já o fez “I could go on singing” (1963), o último e, creio, um dos melhores filmes da artista, de forte viés autobiográfico. Nela, como na produção cinematográfica, os excitantes números de palco convivem com a turbulenta vida pessoal da cantora cuja pele ela veste, mulher que tenta se reaproximar do filho que abandonou para se dedicar à carreira. Porém, o drama da peça, real, é muito mais pungente. Depauperada por uma vida de excessos, Judy via escorrer pelos dedos o seu principal meio de estabelecer contato com o público: a voz. “É uma coisa horrível saber do que você é capaz... mas talvez não consiga mais chegar lá”: não sei se a entertainer efetivamente formulou essa frase que a Judy de Claudia Netto diz em cena; mas é bastante possível que ela o tenha feito. Sempre me pareceu que Judy Garland tentou, durante toda a vida, retribuir a benção que foi ter nascido com aquela voz – sei, o tom é religioso, mas como explicar um talento tão precoce como o dela? Por isso, excessos de toda a sorte pautaram a sua carreira. Há algo de trágico na figura desta mulher que parecia deixar um pouco de si em cada canção cantada, pelo abandono e o modo visceral como as cantava. Ela corria rumo a um destino certo de combustão. Isso se comprova tanto nos episódios do “Judy Garland Show” – nos quais, livre das amarras de Hollywood, Judy pôde ser ela mesma – quanto na peça que tão lindamente a retrata.
“Judy Garland: o fim do arco-íris”, desde meu ponto de vista, atinge o ápice em seu gênero. A peça consegue com fluidez apresentar as duas facetas da artista da qual propõe tratar. A encenação recupera a atmosfera nervosa que circundava Judy em seus últimos anos de vida; passando agilmente dos momentos de turbulência emocional à sublime entrega à arte. A enxutez dos elementos presentes no palco em muito contribui para o efeito do conjunto. A orquestra está no local apropriado: em destaque nos números de palco, velada nas cenas da vida privada. O piano, as bebidas, o baú – aquele old trunk, tão relevante para a carreira de Judy desde “Nasce uma estrela” (1954). Enfim, só está lá o que importa, o que é um aplaudível afastamento do circo em que anda se transformando o teatro musical contemporâneo. Três personagens dividem a cena: além de Judy, o seu pianista e maestro e o seu último marido – as duas figuras fundamentais nos últimos momentos dela.
Gracindo Júnior dá corpo de forma admirável ao pianista que, além de parceiro profissional de longa data da artista, também era seu amigo íntimo (como tão claro fica no “J.G. Show”, nos tapas na bunda e beijos na boca que ela alternadamente lhe dá). A química entre ele e a protagonista é perfeita, o que se revela tanto nas cenas tragicômicas quando nas intensamente dramáticas que compartilham. Igor Rickli se sai igualmente bem como o marido que lhe instilava o hábito das drogas para vê-la trabalhar (embora eu não saiba dizer o quanto ele reflete a personagem histórica). Mas ambos representam personas mais privadas que públicas, as quais, portanto, tiveram grande espaço para invenção. O tour de force é, mesmo, de Claudia Netto, a responsável por dar novamente vida ao mito.
E quão bem ela o faz, só mesmo vendo para se saber ao certo – palavras não bastam para dizê-lo. A mulher é maravilhosa. Desconheço os detalhes da composição da personagem, mas vendo-a em cena apercebe-se que ela fez uma imersão digna de respeito em seu objeto. Basta dizer que, pelas mãos de Claudia Netto, Judy novamente sobe à cena: naquele mesmo caminhar elegante (genialmente trôpego nas cenas de bebedeira), no mesmo timbre peculiar de voz, dizendo bobagens com aquela graça infinita que só ela sabia ter. E arrastando os fios do microfone ao desfilar corpo e voz pelo palco; agarrada a ele nas canções dramáticas; posando nos mesmos perfis que a deixavam tão bonita; carregando a música no mesmo crescendo em que Judy a levava, até a explosão final. A atriz apreende com maestria o gestual de Judy Garland. Isso, somado ao figurino que parece ter saído do próprio trunk de Judy e à voz da própria, que aparece aqui e ali no espetáculo – voz retirada de registros históricos dos anos 30 –, só faz cooperar para o estabelecimento do vínculo entre a personagem histórica e a atriz que a recria no palco. Coisa ainda mais louvável porque ela em nada se parece, fisicamente, à artista que interpreta (vejam-na abaixo sem a maquiagem da peça).
E o melhor de tudo é que, ao cantar as canções que Judy tornou notórias, Claudia prefere captar seu espírito a imitá-la, o que só faz coroar a homenagem. Muitos vivas a essa moça, que, como Judy, nasceu com o dom da voz sem, no entanto, precisar lidar com o carma do vício e as vicissitudes da indústria do cinema. Imaginem a honra de poder ser Judy Garland e, depois, ser quem mais ela quiser? Quando Judy não daria por essa capacidade de despersonalização!... Agora, só me resta recomendar muito o espetáculo aos cariocas ou àqueles que, como eu, se animarem a se deslocar para cá para verem-no. Infelizmente a temporada se encerra no domingo, por isso corram!
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Emprestei as imagens do programa da peça e de sua página do Facebook.
Aqueles que visitarem os quatro musicais protagonizados por Judy Garland e Mickey Rooney entre os anos de 1939 e 1943, acumularão do passeio uma inesperada carga de conhecimento.
Quando foram escalados pela primeira vez como co-protagonistas, o casal de stars que rapidamente se tornaria unanimidade mundial tinha 15 e 17 anos, respectivamente. A meninice da dupla concorda com os enredos à primeira vista inanes que a MGM preparou para eles: eram um casal de namorados (ou viviam um amor platônico; ou então um vivia um amor não correspondido pelo outro) que desejava avidamente ingressar no show business e, portanto, uniam forças com a molecada da redondeza para organizar um espetáculo no celeiro mais próximo. A simplicidade das tramas cativou o público, tanto que a expressão “Mickey and Judy putting on a show!” virou mantra nas bocas dos moviegowers da América do Norte – e, por tabela, do restante do mundo.
A simplicidade, no entanto, está só na aparência. Considerando-se o tanto de musicais rodados em Hollywood, “Babes in Arms” (1939), “Strike up the band” (1940), “Babes on Broadway” (1941) e “Girl Crazy” (1943) são joias raras, não só porque somam roteiros bem amarrados a ótimas interpretações e a excelente música, mas porque trazem para debate questões fundamentais daqueles tempos, como por exemplo aquela que dizia respeito ao papel dos Estados Unidos no concerto cultural e político mundial. E o trazem com uma impressionante suavidade, o que certamente não é traço característico da Meca do Cinema, que impingiu nos espectadores dos tempos das Guerras uma infinidade de patriotadas de curta validade.
A visita a esse material tornou-se ainda mais deleitosa nos últimos anos, graças à “Ultimate Collector’s Edition” dos filmes colocada no mercado pela Warner Home Video. Aliás, faz tempo que estou para comentar o quanto essas edições cuidadosas de preciosidades da sétima arte foi fundamental para que se redefinisse o modo como elas passaram a ser apreendidas. Tony Curtis definiu bem a coisa nos extras de “Quanto mais quente melhor”: “o DVD elevou a estatura do espectador”, ele disse. Até uns 10 anos atrás, não era incomum que películas fossem editadas para que coubessem no infame espaço de 2 horas oferecido pelas fitas de vídeo. Era, então, praticamente impossível que um VHS oferecesse informações extras sobre a obra. O Digital Video Disc sanou o problema, pois abriga virtualmente qualquer quantidade de informação. Dizendo em outras palavras, e a partir de um exemplo pessoal: se “Singin’ in the rain” me ensinou a amar o gênero musical, a edição dupla do filme em DVD distribuída pela Warner acabou tendo papel fundamental na definição de minha escolha profissional. Se eu não tivesse tido acesso àquela fartura de material de arquivo que palmilhava de modo tão apaixonante as referências do filme de Gene e Stanley Donen, eu não teria me interessado tão intensamente nem por teatro, nem por cinema.
Com o tempo, essas edições tornaram-se cada vez melhores.
A da “Mickey Rooney & Judy Garland Collection”, além de reconstruir para os espectadores novos a experiência cinematográfica que tinham os antigos – já que oferecesse em cada DVD um desenho, um curta-metragem e o filme, elementos que compunham os programas dos cinemas dos anos 30 e 40 – introduz elementos que tornam ainda mais complexa a fruição do público contemporâneo: entrevistas com estudiosos da área, trailers, imagens da produção. A surpresa fica por conta de Mickey Rooney que, da altura de suas 9 décadas de entertainer, aprofunda com pertinácia aspectos dos filmes, traçando uma ponte que liga passado e presente. Os interessados não vão passar incólumes pelo velhinho nostálgico que mudou tão pouco nos últimos 70 anos, mantendo ainda o ar de afabilidade que dava para seus personagens, elemento que o fez amado por tantos.
Vendo as fitas, salta aos olhos a tríade que apontei no título: juventude, guerra e jazz-band. Vou, a partir de agora, passear por eles para ensaiar uma explicação de como isso se dá:
Juventude
Não há como discutir os musicais de Judy & Mickey sem se pensar no contexto em que foram produzidos. Eles pertenciam a um gênero já bem codificado na época (e do qual a MGM era perita), o musical, e saiam de dentro do studio system, portanto, reafirmavam a persona artística de seus stars e as características que o musical de Hollywood construiu desde o início do cinema falado. Quando "Babes in Arms" (“Sangue de artista”, o único dos filmes lançado em DVD aqui) começa a ser exibido, Judy Garland havia acabado de dar corpo à Dorothy.
A estrela era Mickey Rooney, indubitavelmente o centro em torno do qual gravita a ação da película. Se a MGM ainda precisava construir a personagem “Garland”, Rooney já estava mais que formado – tanto que, naquele 39, ele dividiu com Bette Davis o topo do box-office de Hollywood. Prova cabal do sucesso do rapaz era o fato de ele encabeçar a série Andy Hardy (Judy chega a interpretar um papel coadjuvante num dos filmes da série, "Life begins to Andy Hardy"), na qual desempenhava o filho do juiz James Hardy, interpretado por Lewis Stone (conhecido do público desde meados dos anos de 1910). Portanto, Mickey repete em “Babes in arms” o tipo que o fez amado das plateias. Mais que isso, seu Andy Hardy parece saltar das películas da família Hardy diretamente os musicais, traçando a linha de continuidade tão ao gosto da Hollywood clássica, que faz os personagens de um mesmo artista se remeterem uns aos outros como se ator e personagem tratassem-se das mesmas pessoas. A identificação fica clara em “Babes in arms”, em que a personagem de Mickey leva o próprio nome dele e repete características que definem a personalidade de Andy Hardy: por exemplo, o respeito que vota às tradições familiares e o desejo de se descobrir e de encontrar seu lugar ao sol como homem.
Embora a moldura mude, os valores continuam os mesmos. Em ambos os veículos o público flagra o paulatino desabrochar do menino em homem. A trajetória é cheia de dificuldades. Sua transposição é apenas possível se se aliar a ousadia da juventude à firmeza das gerações mais velhas. Em Andy Hardy, as “conversas sérias” que o menino tem com o pai são fundamentais para que ele aprenda valores como a importância do estudo aliado ao trabalho, de se respeitar os familiares, a namorada e os amigos. Em “Babes in Arms”, Mickey pode ser vivaz e talentoso, mas apenas conseguirá se firmar como ator/compositor de teatro se aceitar trocar figurinhas com o pai – artista de vaudeville jogado para escanteio pelo público com a penetração do cinema:
Tolhido pelos espetáculos datados colocados em cena pelos pais e demais conhecidos da velha guarda, Mickey decidirá ele mesmo montar seu show, junto com a namorada e as crianças filhas dos artistas das redondezas. Pergunto-me o quanto disso não mimetiza a relação que na época se estabelece, nos Estados Unidos, entre a velha tradição e os novos valores. No campo político, aquele 1939 fechava um decênio de Depressão. Precisava-se caminhar rumo ao futuro sem se deixar de lado as lições dadas pelo passado. No artístico, era um decênio importante para estabelecimento da jovem música americana (o jazz, o blues, o swing) sobre a tradicional música europeia; época em que o cinema de Hollywood ainda era mundialmente próspero (dificuldades começaram a surgir com a 2ª Guerra, que encurtou o mercado consumidor de fitas); época em que o jovem Estados Unidos começava a se definir como potência mundial ao lado de antigos países da Europa. Mickey & Judy tornam-se retratos da juventude americana e, em última instância, retratos da própria América (do Norte). Seus finais felizes conseguidos com esforço e talento, ao mesmo tempo em que respeitam a convenção do gênero musical, metaforizam o lugar que os EUA se via no direito de ocupar no mundo.
Guerra
Até outubro de 1939, quando “Babes in Arms” é lançado, os Estados Unidos ainda não haviam se envolvido na 2ª Guerra. Seu envolvimento objetivo deu-se em março de 1941, quando passou a fornecer armamentos aos aliados. No entanto, meses antes verbalizou seu apoio à Inglaterra. É também de forma sutil que se dá a menção à grande conflagração em “Strike up the band”, cuja premiére ocorreu em setembro de 1940. Na fita, acompanhamos a tentativa de James (Mickey) e Mary (Judy) de conseguirem verba para viajarem a N.Y. no intuito de se apresentarem num concurso de novas bandas presidido pelo consagrado band leader Paul Whiteman.
Para isso, a dupla encabeça o elenco de um melodrama-cômico-musicado do qual participam seus amigos de colégio e companheiros de banda. O espetáculo é um sucesso – para o nosso próprio benefício, já que “Nell of New Rochelle”, o tal melodrama, é uma delícia de se ver. No entanto, o clímax é o número musical que a personagem de Mickey conduz no programa de rádio de Whiteman, quando lidera uma big-band de mais de uma centena de integrantes. A apresentação é composta por um medley do qual fazem parte as canções “Strike up the band” (Gershwins), “Drummer boy”, “Do the la conga” (Edens) e “Our love affair” (Edens, Freed). A primeira delas abre e fecha o número, servindo de acompanhamento à tomada final: o primeiro plano dos rostos de Judy & Mickey fundidos à bandeira dos Estados Unidos. Estabelece-se, então, uma relação de sinonímia entre Mickey – o líder da banda vitoriosa, responsável por conduzir a batuta no programa de Whiteman –, e o líder do país, a quem caberá conduzir os soldados em direção à vitória. O número é majestoso, misturando a parafernália das bandas marciais (clarim, tímpano); os instrumentos do jazz-band – que são multiplicados para se adequarem à dimensão de orquestra do conjunto (observem o fotograma abaixo); e instrumentos comuns às orquestras europeias, como a harpa.
"Strike up the band": o plano de conjunto apresenta monumentalidade semelhante à requerida por uma ópera de Wagner.
A ironia está no modo como o uso dessa canção aqui subverte sua função original: “Strike up the band” é a música-título de um musical da Broadway (de 1927) que satirizava a guerra e as canções militares. No filme, em contrapartida, ela serve para reafirmar o éthos guerreiro dos norte-americanos, convidando sutilmente o povo a unir forças em prol da vitória dos aliados. Para isso, os versos foram modificados. O que no original era “There is work to be done, to be done”/ “There's a war to be won, to be won”/ “Come, you son of a son of a gun,”/ “Take your stand” (reparem no “son of a gun”, achado linguístico típico de Ira Gershwin, que num só tempo faz referência ao insulto e faz pilhéria da inclinação que os americanos desde sempre tiveram pelos conflitos armados) no filme fica assim:
Yankee doo doodle-oo, doodle-oo
We’ll come through Yankee doo, doodle-oo.
For the red, white and blue, doodle-oo
Lend a hand
O público contemporâneo ao filme entendia o “Yankee doo doodle-oo” como referência à canção patriótica composta por George M. Cohan, artista de teatro responsável por insuflar patriotismo no povo durante a Primeira Guerra (e que, em 1942, ganharia a biografia cinematográfica “Yankee Doodle Dandy” – “A canção da vitória”, protagonizada por James Cagney). Numa tradução livre e pobre: “Ianque, nós vamos superar isso. Dê uma mão ao vermelho, branco e azul (ou seja, às cores da bandeira), ianque”. Embora a patriotada vá na direção oposta a que queriam os Gershwin, o tom do número é abrandado com a entrada de outros ritmos. Rápido a batuta volta para o band-leader e o “homem com a batuta da mão” torna-se menos o líder da nação e mais o maestro da banda: “And you can’t go wrong/ With a happy song/ Hey leader strike up the band”. A escolha me parece glosar a situação dos Estados Unidos, que naquele final de 1940 ainda não apoiava abertamente a guerra. Ela vale a visita pelo modo grandioso como constrói na película o lugar que os EUA tomavam no concerto mundial:
Quando “Babes on Broadway” estreou, no último dia de 1941, o país já estava com os dois pés na 2ª Guerra (Pearl Harbor foi atacada pelos japoneses em 7/12/41). No entanto, embora seus dois protagonistas tivessem sido explicitamente envolvidos na venda de war bounds, a película traz a guerra com uma sutileza que a afasta das produções do período. O par romântico, agora em Nova York, se esforça para montar um show de rua que o permitirá arrecadar dinheiro para alugar um teatro. O evento casualmente coincide com a chegada de um grupo de crianças fugidas da Inglaterra que, via rádio, se comunicará com os familiares que ficaram no Velho Mundo. As boas-vindas são dadas pela personagem de Judy, que transforma a graciosa canção patriótica “Chin Up, Cherrio, Carry on”, composta por Lane e Harburg, numa obra-prima da sensibilidade. Embora o filme se despeça rapidamente do assunto amargo, o episódio deixa um gosto muito mais duradouro de beleza e de melancolia do que as fitas estritamente patrióticas rodadas no período.
Jazz-band
É minha parte preferida, então será a mais longa (espero não desapontar quem aguentou até aqui). O sub-item tem que começar com uma referência à excepcional mini-série em dez capítulos “Jazz” (2001), uma das principais culpadas desse post, já que me deu elementos para entender um assunto que eu não sabia muito bem por onde pegar.
“Jazz” analisa o nascimento e a penetração desse moderno gênero musical de origem negro-americana nascido em New Orleans em fins do século XIX e bastante difundido após a Primeira Guerra Mundial. Sua história se confunde com a história cultural norte-americana – e com a nossa própria cultura, já que fomos tão vorazes consumidores da música popular americana durante o século XX quanto fomos consumidores da música europeia no XIX.
O 4º capítulo do documentário apresenta uma formulação preciosa: a big-band foi criada nos Estados Unidos para confrontar a sinfonia nascida na Europa. Não por acaso, compositores americanos que almejavam dar estatura à arte de seu país compunham para as big-bands misturando elementos de música clássica (de origem europeia) e de jazz: A “Rhapsody in Blue” (George Gershwin, 1924) foi primeiramente executada pela jazz-band de Paul Whiteman. Sua premiére, contam, teve na plateia nomes consagrados da música clássica, como Stravinsky e Rachmaninov.
A mistura entre clássico e popular virou marca registrada dos Estados Unidos. A começar pela própria adaptação para o cinema de textos clássicos da literatura – se o país não foi pioneiro nesse trabalho, fez disso literalmente uma arte.
Quanto à música, entre os anos de 1910 e 1920, época em que Louis Armstrong codificou o jazz, o ritmo americano se espalhou ao redor do mundo, passando a servir de metáfora da sociedade contemporânea – tão vertiginosa quanto ele. Logo, brancos e negros o tocavam – uns separados dos outros nos EUA, como pedia a lei de segregação racial. Ganhou as páginas da literatura, defendido por escritores do calibre de Scott Fitzgerald, e mais um pouco não precisava mais pedir licença. Exemplo bem acabado da miscigenação é o clássico de 1934 “You’re the top” (que na minha humilde opinião é a música mais genial criada nos EUA), em que Cole Porter coloca lado a lado e sem hierarquizar a cultura erudita europeia e a cultura popular americana: You’re the top/ You’re the Coliseum/ You’re the top/ You’re the Louvre Museum/ You’re a melody from a symphony by Strauss/ You’re a Bendel Bonnet (loja americana vendedora de acessórios)/ A Shakespeare sonet/ You’re Mickey Mouse – e aí vai, chegando o compositor a rimar “rosa” com “nariz” (rose/nose) e “Dante” com (Jimmy) “Durante”, numa deliciosa ousadia.Nos filmes musicais, Hollywood escolhe o caminho da metalinguagem para analisar o lugar que a cultura dos EUA ocupam no mundo. Acerta em cheio, considerando-se o potencial de circulação que tem seu produto. Exemplos não faltam. Eu poderia começar falando do curta-metragem “Heavenly music” (1943), que narra de um modo deveras escolar (e, portanto, aborrecido) a chegada de um band-leader no céu e os argumentos que lança aos compositores europeus (Wagner, Liszt, Strauss) para provar que sua arte é tão original (tão “celestial”, como diz o título) quanto à deles. Mas não vou: Judy e Mickey precisam voltar.
Os Garland & Rooney pictures são espaços em que a reflexão sobre a música norte-americana se dá de modo privilegiado. À medida em que vemos, nas películas, a paulatina transformação dos dois stars adolescentes em adultos, vemos também ser narrada a infância e a adolescência da arte norte-americana. A escolha da temática não é uma novidade para o gênero – filmes de bastidores explodiram desde o bem sucedido “Rua 42” (1933). Não por acaso, quem dirige os 3 primeiros filmes da série é Busby Berkeley, coreógrafo de “Rua 42”. No entanto, se há nos filmes de Garland & Rooney os exuberantes números musicais que abusam dos planos de conjunto para formarem imagens quase que caleidoscópicas, Berkeley inova ao transformar a série numa homenagem à arte americana:
“Babes in arms” (1939) começa com uma emocionante cena em que o ator de vaudeville apresenta-se enquanto que, nos bastidores, sua esposa dá à luz ao primogênito. No fim do ato, após descobrir que o parto foi bem-sucedido, compartilha sua felicidade com o público, recebendo aplausos por ambos os feitos. O teatro popular, que teve influência fundamental no desenvolvimento do cinema, ganha aqui sua justa homenagem. Uma homenagem de tons em grande medida biográficos, já que Judy e Mickey pertenciam ambos a famílias de artistas, tendo nascido e crescido entre os baús dos camarins e a agitação dos bastidores (em "Nasce uma estrela", Judy eternizaria a expressão "I was born in a trunk").
A família de artistas de “Babes in arms” é reapresentada uma dezena e meia de anos depois, depauperada pela grande Depressão e pelo desenvolvimento dos talking-pictures. Os responsáveis por salvá-la são os jovens, que injetam seiva nova à arte já datada dos pais: e exemplar nesse sentido é o “minstrel show” que apresentam ao final. Contextualizando brevemente, os “minstrels” são brancos que se pintam de negro para interpretarem canções de origem negra. Não sei historicizar o costume, mas acredito que ele descenda das restrições raciais impostas pelos Estados Unidos, que impediam negros e brancos de dividirem o palco. O costume rumou dos palcos para o cinema, sendo Al Jolson seu principal difusor. Dono de uma voz potente e perfeito domínio de palco, Jolson, que era em 1927 um dos principais artistas da Broadway, é convidado pela MGM para rodar aquele que seria o primeiro filme falado: “The Jazz Singer”. Olhem-no em cena, pintado de negro, cantando “Mammy” (Donaldson, Lewis, Young) Al Jolson repete-se depois em outras fitas menos vigorosas, que valem mais enquanto documentos históricos que por suas qualidades artísticas. Sua arte é, todavia, decantada pelos musicais de Judy e Mickey, os quais injetam nela modernidade e vida ao atualizarem a orquestração e as frases melódicas das canções. Exemplo claro é a Judy fazendo a vez de uma morena sestrosa em “I’m just wild about Harry” (1921, Sissle, Blake).
Em “Babes on Broadway” (1941) há uma sequência ainda mais sofisticada de um “minstrel show”, em que estão presentes elementos que dariam pano pra manga caso quiséssemos nos debruçar detidamente neles: um branco ocupa o centro do palco e organiza a apresentação de variedades protagonizada por negros, em que soam canções sulistas como “Oh! Susanna” (1848) e “Old Folks at Home” (1851) – essa última ganha de G. Gershwin e Caesar a maravilhosa paródia “Swanee” (1919) que dá o pontapé inicial na carreira artística do primeiro. Ainda preciso parar para pensar nas implicações racistas desse tipo de show, que reforçavam execráveis estereótipos. Canções contemporâneas também ocupam espaço de destaque nos filmes da série. Compositores de sucesso na Broadway foram recrutados para levarem a moderna música norte-americana para as telas. E não só a música. “Babes in arms” dá título a um musical de teatro de Rodgers e Hart e, embora a trilha-sonora tenha recebido sensível modificação, no filme permanecem a canção título e “Where or when” – ambas eficientes, aquela porque ganha no filme uma eficaz coreografia que serve como rito de passagem dos jovens da infância para a vida adulta; esta porque inaugura os duetos românticos da dupla. Esta última é curtinha e merece ser vista, pois exemplifica com que perícia os dois artistas conseguiam criar situações românticas verossímeis (e eles ainda conseguiam isso 25 anos depois, como fica claro pela cena que a segue, do Judy Garland Show de 1963).
Também aparecem nos filmes composições de George M. Cohan (o Yankee doodle dandy), Arthur Freed e Nacio Herb Brown (cujas canções compõem a trilha de “Cantando na chuva”), Harold Arlen e E. Y. Harburg (que compuseram a trilha inesquecível do “Mágico de Oz” e cujas carreiras em muitos momentos viriam a se cruzar com a carreira de palco e tela de Judy Garland).
Papel de destaque tem os irmãos Gershwin, que dão nome para dois dos quatro filmes da dupla, “Strike up the band” e “Girl Crazy” e são citados literalmente em “Babes on Broadway” na canção “How about you” (Burton Lane, Ralph Freed), lindo dueto romântico que só não ganhou o Oscar daquele ano porque competiu com “White Christmas”: I like New York in June. How about you?/ I like a Gershwin tune. How about you?...
No entanto, a arte dos Gershwin só foi plenamente aproveitada no último filme da série, “Girl Crazy” (1943), que leva para a tela prateada 7 números musicais da peça da Broadway acompanhados pela orquestra de Paul Whiteman - que na história se interpreta a si mesmo. A escolha dá unidade à película, que acaba também se destacando do conjunto porque deixa de lado a guerra – que àquela altura já era cantada numa infinidade de filmes. Além das músicas que rapidamente se tornariam clássicos – “I Got Rhythm”, “Fascinating Rhythm”; “But Not for Me”, “Embraceable You”, “Bidin' My Time”, “Could You Use Me?” –, o filme coloca o humor em primeiro plano, oferecendo a Judy Garland e Mickey Rooney a oportunidade de trabalharem num meio que conheciam desde a infância. Além disso, o público que viu a dupla crescer tem o prazer de encontrá-los aqui já maduros, desenvoltos no campo da música e da atuação. Judy Garland naquela altura havia perdido a "carinha de patinho feio" que cantara de modo tão tristonho anos antes, tornando-se uma bela mulher, bastante capaz de convencer na pele da moça que arrasa os corações de todos os jovens de uma universidade. E Mickey, na sua inegável versatilidade, circula com segurança pelos campos da comédia, da música e do drama.
Esse é o Garland & Rooney picture que mais se sustenta à prova do tempo, pois apela para o bom e velho humor ao invés de enxertar no roteiro a história cultural da América do Norte – história que hoje poucos conhecem e, portanto, não ganha muito sentido para o espectador. Não deixa de ser curioso que o ponto culminante da série esteja no filme que finalmente coloca em ação toda a enorme contribuição dos EUA no campo da música ao invés de discutir metalinguisticamente sobre ela: ou seja, os Gershwin e Paul Whiteman estão juntos, numa evidenciação dos caminhos que começaram a trilhar em meados dos anos 20, quando, com “Rhapsody in blue”, mostraram ao mundo que o caminho para a originalidade no campo da música estava na união entre o erudito e o popular.
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As fotografias emolduradas em branco foram retiradas do portifólio da "Ultimate Collection"; a de Judy Garland lendo o jornal no qual figura a notícia sobre o encontro entre Hitler e Mussolini faz parte do livro que acompanha os DVDs; as demais imagens foram emprestadas de sites da internet.
Quando Charlie Chaplin deu ao público seu silent "Modern Times" (1936), o cinema já tagarelava havia uma década. Todavia, o que aparentemente nascera fadado ao papel de peça de museu, revelou, naquele 1936, uma atualidade que foi sendo renovada com o passar dos anos. Prova de que o filme é obra de um gênio (que, tocado pelo dedo de Deus, conseguiu construir algo imortal), ou simplesmente reflexo do medo recôndito que a sociedade desde sempre teve do famigerado "capitalismo" - o qual movimenta riquezas com a mesma sem-cerimônia com que elimina a poesia da vivência cotidiana? Um pouco das duas coisas, talvez. O certo é que, em "Tempos Modernos", nosso querido vagabundo conseguiu dar tratamento único a uma tópica muito discutida pela produção literária e cinematográfica da época: o progresso tecnológico, que alterara o modo como as pessoas enxergavam a realidade.
A antológica imagem do homem pequenino engolido pelas gigantes engrenagens de uma máquina não pode, no entanto, nos levar a pensar no filme estritamente como uma recusa à era industrial.
Ora, o progresso tecnológico foi o responsável pelo surgimento do cinematógrafo, máquina que, pelas imagens que escolheu oferecer ao espectador desde os primórdios, cooperou para que ele enxergasse o mundo moderno como um espaço veloz, dinâmico e, por que não dizer, assustador. O endosso do cinematógrafo à tecnologia fica patente na vista mais célebre de Lumière, do trem chegando à Estação: em que a câmera estática recupera o ponto de vista do passageiro que espera para embarcar, o qual parece prestes a ser colhido pela locomotiva que se aproxima veloz. Contudo, a sátira dos artefatos modernos não deixa de ser o cerne do filme. Nele, Chaplin dá vida a um operário insignificante, sem nome - e, portanto, metonímia dos milhões de trabalhadores anônimos que operavam as linhas de produção das grandes indústrias da América e da Europa.
Apenas um indivíduo entre tantos que precisava enfrentar a selva de pedras da cidade moderna para tirar dela seu sustento. O aspecto animalesco da cidade é patente não apenas na linha de montagem, que massacra a personagem, reprimindo seus anseios de indivíduo, reduzindo-o à peça de uma bem engrenada maquinaria e literalmente engolindo-o. Também notamo-lo no turbilhão das ruas, repleto de pessoas que, no seu ir e vir, parecem à deriva; e na violência com que as autoridades tratam o homem comum.
O enredo, apresentado nessas poucas palavras, poderia ser a notícia de um drama amargo igual a vários outros que Hollywood produziu sobre o assunto naqueles anos. "Tempos modernos" é, no entanto, uma das mais hilárias comédias da história do cinema. O gênero tem importância fundamental para sua atualidade. Chaplin era filho de artistas do music hall londrino. Cresceu sob as luzes da ribalta, onde estreou aos cinco anos. Conhecia, portanto, a preferência do público pela comédia pastelão, pelos enredos cheios de reviravoltas, pelos números que censuravam os costumes através do riso demolidor, pela graça irresistível que emanavam os personagens tipos. Portanto, quando jovem, sentiu-se à vontade na atmosfera mambembe dos estúdios cinematográficos dos primeiros tempos. Estreou como ator de cinema em 1914 - reportagem de uma Careta de 1920 antecipa essa data em três anos, período no qual ele teria trabalhado para a Keystone, mas o IMDB dá o ano de 14 com tanta riqueza de detalhes que temo contradizê-lo. A construção da personagem do vagabundo - que Chaplin apenas abandona em 1947, em "Monsieur Verdoux" - denota ainda uma vez a influência do teatro alegre, em que os artistas eram fadados a interpretar sempre um mesmo tipo, máscara que usualmente se colava às suas faces e por meio da qual eram reconhecidos onde quer que fossem. Mas, se a arte de Chaplin é em parte devedora do meio teatral dentro do qual ele nasceu, ela deve outro tanto às telas do cinematógrafo, medium que o artista ajudou a apurar à medida em que apurava a personagem eterna que inventara. Aquele artigo da revista Careta ao qual me referi acima oferece informações preciosas para que entendamos a construção do tipo. Nele, o então já mundialmente consagrado ator conta detalhes da criação de seu personagem e estabelece as diferenças entre cinema e teatro. Seu vagabundo teria sido, segundo ele, o resultado final de um tipo que demorou anos para construir, burilado na medida em que ele via o que agradava o público. Chaplin deixa implícito ser um constante observador de si mesmo e do público que o vê. Diz frequentar as telas de exibição para conhecer a reação dos espectadores com relação a seus filmes. Como um ator de teatro, precisava dos aplausos do público, desesperando-se quando não os recebia. A atitude denuncia a formação que Chaplin tivera como artista. Sublinha, também, características que depois serão fundamentais para o estabelecimento do cinema como uma das mais rentáveis indústrias dos EUA a partir de fins dos anos de 1910: a construção de tipos facilmente reconhecíveis, compreendidos pelos espectadores de todas as classes sociais; o aspecto popularesco do veículo, uma das diversões mais baratas das cidades daqueles tempos; o estabelecimento do star system, que traçava relação de sinonímia entre o tipo posto em cena e o artista que o representava, fomentando a venda de ingressos, fotografias de stars e produtos por eles anunciados. A consagração que Charlie Chaplin recebeu desde jovem - e durante toda sua carreira - e o fato de seus filmes se destacarem em meio aos milhões de quilômetros de películas produzidas entre os anos de 1910 e 1950, atestam, no entanto, que algo o diferenciava das centenas de estrelas da galáxia de Hollywood. Parece absurda a força que sua obra eminentemente silenciosa (apenas em “O grande ditador”, 1940, ele passou a usar o diálogo verbal em seus filmes) exerce até hoje em nossa sociedade tão faladeira e amiga das novidades. Só parece, já que as artimanhas aparentemente banais do vagabundo adorável são oriundas de uma série de escolhas cuidadosamente refletidas, de um esforço hercúleo para a transformação das experiências cotidianas em arte. Chaplin era um perfeccionista. A trivia de Hollywood oferece informações curiosas a respeito: os milhares de metros de película inutilizados até que ele tivesse estabelecido as tomadas perfeitas para a montagem da (genial) dança dos pãezinhos da "Busca do Ouro" (1925); o fato de "Uma mulher de Paris" (1923) ter sido rodado linearmente, para o bem do realismo da ação, a despeito da vultosa quantia gasta na reconstrução dos cenários. Ele era um poeta em meio aos burocratas da indústria do cinema. Este é um elemento chave que possibilitou a abrangência de sua obra e o trouxe, moderníssimo, até nós. Com o fim dos anos de 1910 terminou, para si, o tempo das produções de menor fôlego (algumas especialmente bem cuidadas, como "Vida de cachorro", de 1919). O ano de 1920 trouxe-lhe a possibilidade de se juntar a Mary Pickford, Douglas Fairbanks (ator e atriz considerados então os queridinhos da América) e ao diretor D. W. Griffith na fundação da United Artists. O capital da empresa permitiu-lhe trabalhar na produção de seu primeiro longa metragem, "O Garoto" (1921), o qual lhe tomou um tempo muito maior do que as produções de Pickford e Fairbanks, porém, consolidou sua imagem e o tornou unanimidade entre o público e a crítica da época.
Os fundadores da United Artists: Mary Pickford, Griffith, Chaplin, Douglas Fairbanks
A crítica brasileira contemporânea à exibição de "O Garoto" - que reuni por acaso, à medida em que cursava as disciplinas do semestre passado - constata que o artista ecoava o anseio dos escritores modernistas de, através de um trabalho penoso e lento, transformar a inspiração numa “obra-de-arte, coletiva e funcional, mil vezes mais importante que o indivíduo” (palavras de Mário de Andrade). "O Garoto" antecede em 15 anos "Tempos Modernos". Porém, as preocupações de Chaplin permanecem as mesmas. Por isso ele segue admirado pelo público, pelos escritores modernistas brasileiros e pelas vanguardas cinematográficas europeias. Não se trata da defesa da repetição de fórmulas velhas. O tipo construído pelo artista britânico captava a essência do homem moderno membro das classes desfavorecidas. O brasileiro Alberto Cavalcanti, pertencente ao grupo dos inovadores europeus e um dos pioneiros do documentário, diz:
O tipo que o próprio Chaplin representa de preferência é o símbolo do homem universal que viveu entre as duas grandes guerras, vítima de todas as injustiças sociais que, no entanto, não conseguiram abatê-lo. (...). O homem simples de todos os povos e de todas as raças sente-se nele retratado, porque, na sua aparente fragilidade, Chaplin simboliza a sua resistência inata e indomável às condições precárias de vida de nosso tempo.
Não é por acaso que encontramos, na produção dos vanguardistas, ecos da filmografia de Chaplin. Um exemplo saboroso desse aproveitamento está na “Voyage Imaginaire” (1925) de René Clair, obra que flerta com a psicanálise (que então começava a ser vulgarizada) ao postular o caráter liberador do sonho. Nela, o mocinho tímido apenas se descobre capaz de lutar pela jovem que ama depois de passar por uma série de aventuras que culminam num museu de cera onde ele é ajudado pelos bonecos de cera de Chaplin e do Garoto, que magicamente ganham vida à meia noite (alguém está se lembrando de “Uma noite no Museu”? “Voyage imaginaire" é infinitamente melhor).
Chaplin e o Garoto, ainda figuras de cera
O caráter catártico da obra de Chaplin está patente no filme de Clair, cujo final recupera uma tópica das fitas do vagabundo: a partida do personagem, captado por uma câmera estática à medida em que ele se afasta da audiência, emocionada mas convencida de que ele voltaria outra vez porque, mais do que um homem, ele é um símbolo.
Última cena de “Voyage Imaginaire”
O trecho em itálico não é meu, mas de Alberto Cavalcanti, e ele não se refere especificamente ao vagabundo de “Tempos Modernos” – o qual deixa a cena de braços dados com Paulette Goddard enquanto soa “Smile” (canção que também é obra sua) - mas sim a "Monsieur Verdoux" (1947). Vê-se, portanto, que Chaplin fez dessa partida uma constante do seu personagem, que àquela altura era tão simbólico para a cultura ocidental quanto o Pierrot da Commedia del Arte (apenas para repetir a constatação da crítica). Ao tomá-la, Clair retoma pelo menos outras duas produções anteriores de Chaplin, “O Vagabundo” (1915) , "The Pilgrim (1923) e “O circo” (1928), traçando uma ponte entre a supostamente hermética vanguarda e o popular cinema de Hollywood. A influência, todavia, foi de mão dupla, já que “Tempos Modernos” claramente recebeu influência de uma película de Clair denominada “A nous la liberté” (1931) – ao ponto de ter sido considerado por alguns uma paródia ao filme! Aliás, preciso aqui agradecer à minha orientadora Miriam Gárate, sem a qual eu nada saberia desse desdobramento da história. Para quem tiver interesse, o filme é facilmente baixado pelo Torrent. Eu obviamente que tive. Vendo-o, qual não foi a minha surpresa ao encontrar uma comédia musical que deslizava de modo adorável da canção para a declamação rimada, tocando raramente o diálogo prosaico. O enredo trabalha o mesmo tema: a desumanização que a tecnologia fomenta. Porém, por um viés diferente: aqui é contada a história de um ex-presidiário que incidentemente é envolvido na massa que principiará a trabalhar numa empresa de fonógrafos, tornando-se também ele um funcionário. A música que costura o filme surge como uma exigência bem humorada do roteiro, que brinca com o paradoxo da situação: um homem se vê destituído de sua liberdade enquanto cria diversão para os outros.
À nous la liberté (1931)
Modern Times (1936)
A tão desejada liberté é alcançada no final do filme, quando o homem deixa de ser joguete da máquina e passa a dominá-la, podendo, enfim, desfrutar do seu tempo livre. E mais, apaga-se o fosso que separa patrão e empregado: ambos dão as mãos e cantam felizes a canção título depois de a empresa ser dividida entre os trabalhadores, que passam assim a dominar plenamente sua força de trabalho. O fecho de “Tempos Modernos” não repousa nessa questão. Nele, o “capitalismo selvagem” da sociedade industrial é tomado como um caminho sem volta. Às personagens que desejavam a liberdade restava a fuga.
O patrão e o empregado de “À nous la liberté”, agora unidos, seguirão por aquele mesmo caminho eternizado por Chaplin.
O trabalho diferenciado com a banda sonora é outra característica que aproxima Clair e Chaplin. Disse no início que o cineasta apenas começou a se utilizar sistematicamente dos diálogos em prosa no começo dos anos 40. Isso porque, como bem aponta Cavalcanti, Chaplin sabia que o uso dramático do som não devia se reduzir à palavra falada. A prosa foi o último elemento que o artista levou para seus filmes. Contudo, o desenvolvimento do som, que possibilitou a gravação do mesmo na película, foi fundamental para sua arte, pois permitiu que ele sincronizasse os efeitos sonoros à ação de forma a potencializá-la. Charlie Chaplin era um artista completo – isso é chavão, mas não custa insistir. Basta uma vista d’olhos nos seus longas-metragens para notar que seu nome invariavelmente domina os créditos: ele dirigia, atuava, roteirizava, compunha a trilha sonora e produzia. Isso o torna único na indústria dos primeiros tempos, quando o trabalho era diluído, nunca se sabendo ao certo quem fazia o quê. Esse controle total sem dúvida foi o responsável por ele criar uma obra incrivelmente densa que, apesar da inovação tecnológica, permanece ainda hoje como o que de melhor se produziu no campo cinematográfico. O sucesso que esse genial criador conseguiu desde logo entre público e crítica vem de sua habilidade de trabalhar cinematograficamente com os elementos que dominava desde que atuava nos palcos londrinos. A pantomima, o melodrama e o vaudeville, gêneros populares, são por ele destilados para que surjam, diante das câmeras, numa pureza desconcertante que apenas transmite o essencial. Chaplin emprestou aos seus longas-metragens a estrutura do gênero melodramático e do vaudeville, misturando cenas dramáticas e cômicas. Todavia, nunca em seus filmes uma cena cômica interrompe abruptamente a ação, aparecendo apenas para distender o público. Ao contrário, o artista sabia transitar com maestria da comédia para o drama, levando o espectador pela mão até gerar nele a emoção estética - estou me lembrando que, meses atrás, falei algo muito semelhante da Judy Garland, tão feiticeira quanto Carlitos por esse mesmo motivo. Um exemplo perfeito disso encontramos nos minutos finais de "Tempos Modernos", quando a personagem de Chaplin e a de Paulette veem-se obrigadas a interromper sua entusiasmada apresentação no café-concerto para empreenderem uma dramática fuga da polícia. Eles escapam, no entanto, aparentemente apenas para despencarem na existência de penúria da qual haviam acabado de sair. Porém, os símbolos apresentados imediatamente após o fade out apontam que a esperança subsiste ao desespero: amanhece o dia e descortina-se o horizonte, imagem substituída pelo plano do casal de fugitivos e por um primeiro plano da jovem que chora, seguida do plano do rapaz que se arruma, assobiando. Enquanto isso, a banda sonora reconstrói, no plano musical, a atmosfera agridoce apresentada pelo plano visual. A jovem, que havia desistido de lutar, é contagiada pela alegria de viver do amigo e segue com ele rumo ao desconhecido.
“Smile...”
A letra e a música de "Smile" metaforizam cabalmente a persona artística de Chaplin. Ninguém como ele entendeu como dor e alegria se misturam na vivência cotidiana: como se uma gota de sofrimento estivesse sempre guardada no final do riso. Por isso, "Smile" aproveita-se dos violinos e de um tempo lento e torturado para cantar a necessidade de se buscar a alegria na dor: Smile, though your heart is aching. (...). Light up your face with gladness. Hide every trace of sadness. Although a tear maybe ever so near. That's the time you must keep on trying. Smile, what's the use of crying. You'll find that life is still worthwhile. If you just smile.
Queria terminar o texto com um vídeo de Judy Garland cantando "Smile". Judy sabia bem o que era rir das desditas - talvez seja por isso que ela interpreta a canção de modo tão maravilhoso, com um riso no rosto e lágrimas na voz.
*
Meus agradecimentos àqueles que votaram na enquete. O resultado, como supus, foi apertado: todos os filmes de Chaplin receberam votos, sendo que "Luzes da Ribalta" e "Tempos Modernos" ficaram, respectivamente, com 27% e 47% da preferência dos leitores.
Judy Garland é uma dasestrelas de cinema que mais me atraem. Mais que admirar seu trabalho sempre competente como atriz e cair siderada quando a ouço cantar, fico fascinada com a relação de amor e ódio que ela desde sempre travou com o show biss.
Filha mais nova de um casal de artistas de vaudeville de Minnesota, Judy praticamente nasceu nos palcos, nos quais ingressou profissionalmente aos dois anos, quando, reza a lenda, arrebatou o público com sua interpretação de "Jingle Bells"... Sua voz lhe abriu as portas da poderosa MGM, que a rebatizou - até então ela era era Frances Ethel Gumm - e tomou para si a tarefa de transformar a adolescente gorducha numa jovem longilínea que fosse desejada pelas plateias de todo o mundo.
O movimento, comum à Hollywood do star system, deixou na moça marcas tão profundas quanto deixara anos antes em Greta Garbo. Em 1939, ano em que Garbo emplacou seu último grande sucesso de bilheteria e de crítica (o imperdível "Ninotchka"), Judy despontou para a fama no "Mágico de Oz". A ele se seguiu uma série de filmes que rodou com outro queridinho de Hollywood nos anos dourados do cinema, Mickey Rooney (com quem já havia trabalhado num filme da série "Andy Hardy", protagonizada pelo ator). O sucesso dos filmes da dupla tornou-a uma das principais estrelas da galáxia da MGM, porém, também foi o deflagrador da dependência química que acabaria por levá-la à morte em 1969, quando ela tinha apenas 47 anos. Em quantas histórias reais e ficcionais como essa a indústria do cinema não desempenhou papel análogo de mãe que se revelou madrasta?...
O passeio pela biografia da nossa Frances Gumm não aparece aqui por acaso. Os tropeços da jovem atriz na trajetória pela estrada pedregosa da fama estão impressos em sua obra, e é isso que a torna tão notável. Selecionei aqui duas de suas produções que me agradam muito - e por motivos diferentes. A primeira é "Strike up the band" (1940), segunda das quatro películas que ela rodou com Mickey Rooney; a segunda é o "Judy Garland Show", série televisiva veiculada pela CBS entre 1963 e 1964.
"Strike up the band" é um daqueles descontraídos musicais que Hollywood rodou desde que começou a falar, em torno de 1929. A fórmula de sucesso do gênero é seguida quase que religiosamente. Nele estão presentes artistas conhecidos, bom humor, romantismo, canções de compositores queridos pelo público e números musicais de tirar o fôlego. No entanto, o filme se destaca pela deliciosa sequência "Nell of New Rochelle", interessante não apenas pela leitura crítica que faz da tradição teatral, como porque alude ao próprio passado artístico de Judy, que cresceu nos populares palcos do vaudeville dos anos 20.
O fio que liga a ação desse musical é tênue: As personagens de Judy e Mickey são dois jovens do interior que sonham com a fama. No intuito de conseguirem dinheiro para levarem a Nova York seu grupo musical, os jovens colocam em cena "Nell of New Rochelle", melodrama "cheio de palavras antigas" que haviam escrito.
A bem humorada sequência dá uma aula de história do teatro. O enredo encenado é totalmente tributário dos melodramas que eram sucesso de público na Europa e na América desde 1800.
Nela estão presentes as personagens tipificadas - Nelly é uma pobre moça que vive de esmolas, é perseguida por um vilão bigodudo que tem voz cavernosa e risada macabra, e é salva por um belo cavalheiro; a moral burguesa é defendida de modo escolar pelas personagens, quer por meio de discursos, quer de canções; e todos terminam felizes para sempre, depois da destruição do vilão pelo mocinho.
O melodrama constantemente visita esse blog. Não é um acaso. O gênero surpreendentemente nos persegue a todos, por meio dos enlatados cinematográficos e das telenovelas que ainda insistem em nos fazer engolir essa visão religiosa de que o mundo é justo, o casamento e a procriação são a finalidade maior da existência, and so on...
Portanto, não podemos deixar passar uma produção que zomba desses lugares comuns como esse filme (de 1940!) o faz. Recomendo fortemente a sequência aos leitores. Recostem-se com calma (ela tem 15 minutos). Certamente vão se divertir:
A sequência é fascinante pela recriação que faz do gênero.
Recriação cômica, bem entendido, pois embora os artistas melodramáticos precisassem exagerar nos gestos para imprimirem em suas fisionomias o que se passava nas suas cacholas, é certo que aqui tal exagero é elevado ao cubo. Porém, a maquiagem carregada do elenco, a voz sibilante da mocinha (e a voz rouca do bandido) e os diálogos verborrágicos não devem em nada aos melodramas protagonizados por artistas como Sarah Bernhardt. Não conheço a fundo a biografia de Judy Garland, mas é bastante provável que ela tivesse dado vida, nos palcos populares pelos quais passou, à personagens da estirpe de Nell of New Rochelle. A atriz sublinha de modo formidável o que de patético há em canções como "Heaven Will Protect the Working Girl" ("O céu protegerá a moça trabalhadora", de 1909) e "Come home, father" ("Volte para casa, papai", 1864), as quais levavam os espectadores de fins do século XIX e começo do XX às lágrimas, canções cuja pobreza conceitual salta aos olhos quando vistas com algum senso crítico. "Strike up the band" mostra de modo cabal que enredos e personagens frágeis como esses apenas podem ser ressuscitados pelo viés do humor. Escolha de mestre a do diretor Busby Berkeley, cuja contribuição à história do cinema não se resume aos estravagantes números de caleidoscópio, como pensam muitos.
E nesse filme Judy ainda dava os primeiros passos rumo àquele espantoso domínio de cena que ela demonstrará anos mais tarde, e que está todo contido no "Judy Garland Show".
Mickey Rooney, já então um mocinho de 20 anos e com impressionantes 14 anos de experiência nas telas (e - pasmem - hoje, aos 90 anos, ele ainda continua na ativa), parece ter exercido papel de destaque no desabrochar da atriz como profissional. Sua participação na série televisiva de Judy prova-nos que a química do casal era fruto da afeição genuína que sentiam um pelo outro - e essa afeição foi fundamental para a sustentação da atriz que desde bem jovem vivia sob o efeito de calmantes e estimulantes.
Porém, se Mickey Rooney naqueles anos 60 ainda conseguia fazer Judy reviver a cômica que ela havia sido no teatro de vaudeville, os anos de consumo de drogas e o desdém com que a indústria cinematográfica passara a tratá-la deixaram-lhe marcas profundas. A soma desses fatores deu-nos, no entanto, uma atriz madura, complexa e completa. Por isso, a visita ao "Judy Garland Show" é programa obrigatório aos seus fãs.
Se Judy Garland já brilha como atriz, como cantora ela é incomparável. O domínio de palco e câmera que revela, a escolha do repertório e a incrível afinação oferecem ao público uma experiência estética de um nível poucas vezes suscitado por um intérprete num palco. Ao interpretar as canções que marcaram sua infância e adolescência, sua vida pessoal e profissional, Judy Garland consegue o casamento perfeito da mulher, da atriz e da cantora. Toda a complexidade da mulher está impressa no modo como ela interpreta canções como "A foggy day in London Town" (Gershwin), "San Francisco" (Kahn); "Old Devil Moon" (E.Y. Harburg e Burton Lane) e tantos outros clássicos. Em "A Foggy Day", seu desempenho começa contido e se intensifica conforme os olhos do eu-lírico da canção veem o amor iluminar o caminho onde antes havia uma neblina espessa. O mise-en-scène intimista e os primeiros planos por meio dos quais Judy é tomada dão relevo apenas à canção (demorei muito tempo para reencontrar essa gravação, que tanto me impactou quando a vi pela primeira vez no blog do Ricardo).
A voz de Judy Garland e seus gestos potencializam os sentidos das canções que ela escolhe. A especificidade do veículo onde essas pérolas foram veiculadas não é em nenhum momento negligenciada. Sobejam os primeiros planos da artista - a subjetiva direta, profundamente expressiva, aproxima-se mais e mais de seu rosto, parecendo captar o alvoroço de sua alma nas canções melancólicas ou sensuais. E quando invade a tela o rosto já macerado da atriz e seus grandes olhos inquirem o espectador, ela se torna muito humana e lindíssima.
Nunca imaginei que alguém pudesse superar a interpretação de Petula Clark de "Old Devil Moon". Judy consegue, pois injeta uma dose de desvario romântico na leitura desses versos, glosando assim a crescente intensificação do arrebatamento amoroso que eles suscitam:
You've got me flyin' high and wide
On a magic carpet ride
Full of butterflies inside.
Wanna cry, wanna croon,
Wanna laugh like a loon.
It's that old devil moon
In your eyes.
E nos momentos descontraídos, a atriz mostra-se tão senhora de si como quando dera vida a Nell of New Rochelle, em 1940. Exemplo disso é sua interpretação de "San Francisco", canção que ganhara as telas em 1936 no filme homônimo (denominado no Brasil "São Francisco, cidade do pecado") protagonizado por Jeanette Mac Donald e Clark Gable.
A canção era uma das preferidas de Judy, como nos atestam os vários registros que há da mesma nos álbuns da artista gravados a partir de seus shows. Em comum nessas gravações há a introdução de uma estrofe cômico-laudatória que parece ter sido composta pela própria Judy, na qual ela dizia que nunca se esqueceria como a "Brava Jeanette" cantava em meio das ruínas da cidade: "A-a-a-and saaaang", enfatiza ela, reproduzindo a interpretação que Jeanette fizera da canção - interpretação tão ao gosto dos anos 30, quando a performance das operetas teatrais ainda dava as cartas no cinema. E Judy leva o mimetismo às últimas consequências, numa apresentação que paga claro tributo ao número musical de sua antecessora. Trinta anos depois de Jeanette, Judy traz à canção o mesmo entusiasmo quase infantil que tomara a mocinha de "São Francisco, a cidade do pecado" enquanto ela entoava o hino da cidade que estava prestes a ser varrida por um furacão. Um misto de homenagem e bom humor bem Judy Garland que leva o público à loucura. Abaixo, a cena do filme "São Francisco" (colorizada, pois não encontrei a versão original) e, em seguida, Judy.
Meu primeiro ímpeto é acabar isso aqui lastimando a fatalidade que a levou tão cedo. Mas aí entro no You Tube e assisto aos excertos do "Judy Garland Show" nos quais ela arrasa cantando as canções que tanto amava; pego meu DVD do "Desfile de Páscoa" e revejo aquela cena incrível em que ela canta "Easter Parade" para Fred Astaire, uma de minhas preferidas dos dois artistas; volto ao You Tube e vejo mais uma vez sua interpretação de "Old Devil Moon" (canção que me persegue faz alguns meses); e acabo me decidindo pela manjada - porém, não menos sincera - conclusão de que Judy continua por aqui, vivíssima.
Nos comentários à postagem, os amigos trouxeram não apenas a Dorothy - que aqui apareceu apenas de passagem, largadinha sobre as flores do Mágico de Oz - como a Liza Minelli. Como agradecimento pelas leituras carinhosas que o post recebeu, divido com todos o número de "Over the rainbow" do qual tomam parte a mãe e a filha - bela sequência do show que ambas realizaramno London Palladium em fins de 64. Depois de afirmar "Oh, I sang this song for so many years", Judy pede ajuda da plateia. Olhem...