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terça-feira, 27 de maio de 2025

Quando o musical de Hollywood encontra a ópera: os filmes de Jeanette MacDonald & Nelson Eddy (1935-1942)


O musical cinematográfico norte-americano emergiu praticamente com a ascensão do cinema falado em versão industrial. Nos anos da depressão econômica que se seguiu à quebra da bolsa de NY, em 1929, eles – e a magia que forneciam – serviram de alento a uma população extensivamente empobrecida. “A Rosa Púrpura do Cairo” (Woody Allen, 1985) ficcionaliza a este respeito de forma deslumbrante. A obra aborda a história de Cecília, a jovem pobre de uma cidadezinha interiorana que, casada com um brutamontes que a tiraniza, tem o seu imaginário preenchido pelas histórias de amor saídas da “capital do cinema” – sobretudo aquelas protagonizadas por Freddy Astaire e Ginger Rogers, o mais célebre entre os pares românticos produzidos nos anos 30. Sobre eles eu escrevi um texto cheio de afeto nos primórdios deste blog, 15 anos, uma vida atrás
Outro desses casais célebres é o assunto que hoje ressuscita o blog, parado há seis meses: Jeanette MacDonald & Nelson Eddy, menos lembrados que Astaire e Rogers, mas celebérrimos nas décadas de 30 e 40, quando protagonizaram oito musicais da MGM. Como os colegas da RKO Radio Pictures, MacDonald e Eddy ajudaram a dar forma ao musical de Hollywood – no caso deles, misturando a música popular e a clássica, já que ambos eram cantores líricos. É simbólico retomar o blog com esse tema, pois costuro, aqui, os meus amores da juventude e os contemporâneos. 
Quando o casal contracenou pela primeira vez, em “Naughty Marietta” (“Oh, Marietta!” (1935, dir. Robert Z. Leonard e W. S. Van Dyke), a soprano e atriz Jeanette MacDonald (1903-1965) já era uma estrela. Após 10 anos atuando na Broadway, nos coros, em jump-ins e em esporádicos papéis de destaque, a artista finalmente ascendeu a protagonista em 1929, momento em que chamou a atenção de Ernst Lubitsch, que preparava o seu primeiro filme falado. “The Love Parade” (Alvorada do Amor, 1929), em que ela contracena com o galã francês Maurice Chevalier, se transforma num exemplo bem sucedido de filme cantante, concorrendo mesmo ao Oscar. 
A parceria de MacDonald e Lubitsch seria repetida ainda em “An hour with you” (“Uma hora contigo”, 1932) e em “The Merry Widow” (“A viúva alegre”, 1934), nos quais ela também contracenou com Maurice Chevalier (com quem ainda faria “Love me tonight/Ama-me esta noite”, de Rouben Mamoulian, 1932). Para além das bilheterias, essas obras fomentaram as gravações de singles de um punhado de músicas de sucesso, a exemplo de “Dream Lover” (de Victor Schertzinger e Clifford Grey, de “The Love Parade”), “Love me Tonight” (Richard Rodgers e Lorenz Hart, de “Love me tonight”) e “Vilia” (Franz Lehár, Lorenz Hart, de “The Merry Widow”, 1934). 
Em Maytime

Já Nelson Eddy (1901-1967) atravessou a primeira metade dos anos de 1920 atuando concomitantemente como barítono (a inclinação ao canto lírico nasceu ainda na infância, em coros de igreja) e jornalista. Acabou abandonando a segunda carreira em prol da primeira, quando, depois de vencer um concurso, ingressou numa companhia operística da Filadélfia, o que lhe permitiu construir um amplo repertório, em que estavam inclusas óperas de Mozart, Verdi e Puccini. No início dos anos de 1930, cantou mesmo no Carnegie Hall, regido por Ottorino Respighi. Contudo, a guinada em sua carreira se daria em 1933, quando às pressas substituiu exitosamente a soprano alemã Lotte Lehmann num concerto em Los Angeles. Após inúmeras pontas em filmes da MGM, estúdio com quem assinou contrato em 1933, foi alçado a co-protagonista de Jeanette MacDonald no supramencionado “Naughty Marieta”. 
A química inequívoca da dupla (o longevo blog https://maceddy.com/ dedica rios de tinta ao romance on e offscreen do casal, então, convido os curiosos a acessarem-no, pois vou me abster das fofocas de bastidores), par a par com a sua beleza clássica e o seu talento como cantores-atores, transformam a obra num sucesso não apenas cinematográfico, mas também discográfico. A obra foi alçada a melhor filme do ano de 1935 pela revista Photoplay, concorreu ao Oscar de melhor filme no ano subsequente, e a canção “Ah! Sweet mystery of life” (Victor Herbert, Rida Johnson Young), entoada pela dupla, alcançou vendas expressivas. MacDonald e Eddy tornam-se, então, The American Sweethearts
“Naughty Marietta” lança as balizas que seriam geralmente seguidas nos filmes da dupla. A obra baseia-se no musical homônimo de Victor Herbert, com letra de Rida Johnson Young, estreado na Broadway em 1910. Repercute, portanto, músicas que já eram notórias do público, senão pela assistência in loco do espetáculo, por sua escuta nas rádios. A transformação do musical nova-iorquino em filme, bem como a disseminação dessas canções em discos e no rádio retroalimentam a nascente cultura de massas. Ademais, os filmes protagonizando o casal adotam fielmente a fórmula da Hollywood clássica (especialmente em suas décadas iniciais), de associar pessoa e personagem, fazendo com que os artistas apresentassem ad nauseam tipos previamente definidos, que já haviam motivado o engajamento do público. 
Para isso colabora a repetição dos corpos artísticos dessas produções. W. S. Van Dyke, por exemplo, diretor bastante experimentado no campo tanto da comédia quanto do drama histórico (dirigiu a série cômica do Tin Man, protagonizada por William Powell e Myrna Loy, e os dramas “Maria Antonieta/Marie Antoinette”, com Norma Shearer e Tyrone Power, 1938, e “San Francisco”, de 1937, com Jeanette MacDonald e Clark Gable), também dirigiu Macdonald e Eddy em “Rose Marie” (1936), “Sweethearts (Canção de Amor, 1938), New Moon (Lua Nova, 1940) e, finalmente, em I Married an Angel (Casei-me com um anjo, 1942). Já Robert Z. Leonard, co-diretor de “Naughty Marieta” e de “New Moon”, dirige também “Maytime” (Primavera, 1937) e “The girl of the Golden West” (A princesa do Eldorado, 1938). 
Ao contrário dos musicais de Rogers e Astaire, que se passam na contemporaneidade – ainda que claramente falseada –, aqueles protagonizados por MacDonald e Eddy recuam até períodos anteriores ao século XX, aproveitando-se das habilidades dos diretores no melodrama histórico – gênero então amado pelo público no âmbito folhetinesco, teatral e cinematográfico. 
Assim, essas obras tematizam a França pré-revolucionária (como, além de “Naughty Marieta”, “New Moon”), o período do império de Louis Napoléon (como “Maytime”), a Londres elisabetana (“Divino Tormento/Bitter Sweet”, 1940) ou a época da penetração no meio oeste americano (“The girl of the Golden West”). Em todas, o desnível social entre a dupla é objeto de tensão – ela é uma princesa, aristocrata ou prima-dona, enquanto ele é pobre, seja policial, mercenário, aspirante a cantor ou bandoleiro. Consequentemente, a democrática ultrapassagem do status quo torna-se o mote dessas obras. 
Se há algum espaço para crítica social nos filmes de MacDonald e Eddy, ela recua no tempo. Criticam-se, no caso de “Naughty Marietta”, os desmandos da monarquia absolutista francesa, que obrigam a princesa prometida a um velho nobre à fuga aos Estados Unidos, terra da promissão, e o seu encontro com o oficial mercenário por quem ela se apaixonará. Os musicais da dupla seguem a tradição do gênero. Não apontam o dedo às mazelas sociais contemporâneas. Apostam, antes, na defesa do self-made man. Isso se dá mesmo no caso de “New Moon”, já que, embora a personagem de Eddy seja originalmente um duque francês (libertário, perseguido pela monarquia), ele precisa se travestir de escravo e serviçal para merecer sua ascensão numa nova ordem social democrática – fundada numa ilha remota ao mesmo tempo em que a França vivia a Revolução. Todavia, vários desses filmes não deixam de se aliar a um patriotismo rasteiro, já que os EUA estavam mergulhados na 2ª Guerra Mundial, e Hollywood se alinhou às hostes belicistas. 
Se “New Moon” aborda a questão de forma implícita (nele fazem-se ouvir os acordes de La Marseillase”, hino da Revolução), “Sweethearts” o faz mais explicitamente. Trata-se de uma das três obras do casal que se passam na contemporaneidade – as outras são “Rose Marie”, história da prima-dona canadense que se embrenha pelas matas do país em busca do irmão – um já ótimo James Stewart anterior ao estrelato – em fuga da polícia, e se apaixona pelo sargento da guarda montada que é escalado para procurar o rapaz; e “I married an angel”, conto (com interessantes laivos surrealistas e psicanalíticos) da secretária apaixonada que reforma o conde estroina, herdeiro do banco onde ela trabalha. 
Filmada em Technicolor, o que dá a dimensão da relevância da dupla na Hollywood clássica, “Sweethearts” pespega no público um conjunto de canções patrióticas entoadas pelo par romântico nas rádios nova-iorquinas. Filmes como este motivavam a venda de bônus de guerra. No entanto, o discurso patriótico não abandona a visada ao lucro. Fiel à fórmula adotada com sucesso por Hollywood, a trama faz referência ao epíteto e à relação amorosa tumultuosa vivida pelo casal protagonista, seja no título, seja no enredo (narra-se a história fictícia de um casal notório da Broadway que é seduzido por Hollywood no momento em que comemora seis anos de seu casamento e da estreia seu bem-sucedido musical). 
Outra questão importante nesses filmes é a autorreflexão da indústria do cinema sobre o seu lugar na cultura mundial. Daí ao diálogo que eles estabelecem entre o musical da Broadway e a ópera. Nos primórdios deste blog, abordei os musicais de Judy Garland e Mickey Rooney, que então me interessavam pelo esforço de defesa do musical norte-americano que eles encenavam – esforço simbólico do (desejado) deslocamento do eixo da produção artística da Europa para os Estados Unidos. 
Já os filmes de Jeanette MacDonald e Nelson Eddy aproveitam o treinamento prévio da dupla no canto lírico – Eddy era, como vimos, cantor de ópera, enquanto MacDonald se dedicaria posteriormente a essas produções –, fazendo-os cantar tanto os números musicais conhecidos pelo público mainstream quanto os operísticos apreciados pelo público mais cultivado, o que procurava elevar a estatura dessas obras. Assim, filtros do tempo que são, esses filmes permitem-nos conhecer os cânones da ópera de 90 anos atrás. 
O repertório abordado pela dupla é extenso e não tenho a intenção, aqui, de ser exaustiva. The girl of the golden West aborda o gênero de forma enviesada, já que adapta cinematograficamente a peça teatral utilizada por Giacomo Puccini para a criação de sua La Fanciulla del West” (a peça, de autoria de David Belasco, estreou em 1905, enquanto a obra do compositor italiano data de 1910). Se numa obra como “New Moon” essa presença é episódica – nela, MacDonald canta “Ombra Mai Fú” (da ópera “Xerxes”, de Georg Friedrich Händel, 1738) –, nos filmes centrados no mundo da ópera ela é contundente. 
Em “Rose Marie”, duas sequências operísticas são determinantes para a construção da curva dramática da personagem da mocinha. Na (longa) inicial, aborda-se a ópera “Romeu e Julieta”, de Charles Gounod (1867), desde a notória ária “Je veux vivre” até a morte do par romântico. Já nos estertores do filme, a personagem feminina, após se ver obrigada a deixar o homem que ama, é uma errática Tosca (da obra homônima de Giacomo Puccini, 1900) na sequência que tematiza a morte de Cavaradossi e o suicídio da protagonista. E, finalmente, o âmbito operístico é fundamental na obra-prima “Maytime” – chegando o seu diretor mesmo a compor uma longa sequência final de uma ópera romântica protagonizada por soprano e barítono, um unicórnio na grafia operística, para que o casal pudesse cantá-la. 
Vistos em conjunto, os filmes protagonizados por MacDonald e Eddy nos apresentam um microcosmo da Hollywood dos anos dourados. Assisti-los é, portanto, pedagógico para que apreendamos o que a indústria do cinema então defendia. Se valores arrevesados e preconceitos os mais variados obviamente emergem do conjunto - dado que tais filmes estão ao menos 80 anos distantes de nós -, eles se sustentam pelo talento do casal protagonista e pela artesania cinematográfica, questões que pretendo discutir oportunamente ao abordar “Maytime”, obra que merece um artigo à parte.

quinta-feira, 21 de abril de 2016

A ópera ilumina o teatro: “Adriana Lecouvreur” (1902) no São Pedro (SP, abr. 2016)

O Theatro São Pedro encenou, durante o mês de abril, esta ópera de Francesco Cilea, raríssima na cena paulistana, cuja première mundial deu-se em Milão em 1902. O acaso feliz levou-me até ela no justo dia em que o país fervia numa encenação de teatro do absurdo digna de Ionesco. Antes, muito antes os derradeiros passos da vacilante Adriana pelos sendeiros da vida que a má pantomima que nos fizeram representar longamente os nossos digníssimos parlamentares... 
Na plateia do São Pedro, meu tête-à-tête com “Adriana Lecouvreur” proporcionou-me um daqueles encontros raros comigo mesma. Em minha doce ilusão de eterna estudante, sonho encontrar o elo perdido que une as artes. Francesco Cilea e o libretista Arturo Colautti apontaram-me o caminho, ao tecerem o manto bordado com que Adriana sonharia nos palcos da arte e da vida. 
Poster da produção original 
Esta ópera baseia-se, como tantas, numa obra teatral, a peça de Scribe e Legouvé “Adrienne Lecouvreur”, de 1849. Trata-se de um melodrama típico, repleto das intrigas, corações partidos, peripécias, sangue e lágrimas comuns ao gênero. Não por acaso, entrou para o repertório de Sarah Bernhardt, tornando-se um prato cheio para os malabarismos de sua voix d’or, não sem deixar de agradar uma personalidade artística notável do fim do XIX como Eleonora Duse, que revolucionou a cena de então ao despi-la dos seus tradicionais ouropéis para imprimir uma inusual naturalidade às suas personagens. 
A Adrienne histórica era feita da mesma cepa que Duse e Sarah, como elas, a principal atriz de seu tempo: foi a grande diva da Comédie Française no princípio do século XVIII, outra revolucionadora da cena, da qual procurou eliminar a declamação em prol de uma elocução menos alambicada. 
Sarah Bernhardt em
Adrianne Lecouvreur (1896)
A adaptação da cena teatral para a operística era, então, moeda corrente. Duas óperas célebres no repertório ocidental saíram de originais da lavra de Scribe: L’elisir d’amore, de Donizetti e La sonnambula, de Bellini, adaptação de uma peça teatral e de um balé-pantomima, respectivamente. O próprio Scribe fora libretista, autor de Robert le diable, ópera com música de Meyerbeer. Quanto mais remontamos no tempo, mais percebemos o constante entremear das artes, que joga por terra a segmentação clássica, segundo a qual a ópera e a tragédia eram os exemplos maiores de manifestações artísticas, cabendo a gêneros como o melodrama, a opereta ou a pantomima o rês-do-chão da arte. Prova incontestável disso é “Adriana Lecouvreur”, que além de tomar como fonte uma obra teatral, presta uma bela homenagem à ribalta. 
“Adriana...” é contemporânea da “Tosca” de Puccini, ópera de 1900 baseada no melodrama escrito anos antes por Sardou. Ambas inscrevem-se no esforço de deslindamento de novos percursos para o gênero que acabara de perder dois de seus grandes mestres, Wagner e Verdi. 
No final do XIX, Puccini e Leoncavallo reverberavam renovações estilísticas e sociais, trazendo para o cerne da cena operística tipos até então desdenhados, como a boemia francesa, as classes populares italianas e a classe teatral. O povão demoraria até os Românticos para ganhar foros de heroicidade. Já os profissionais da cena, malgrado a grande relevância que tinham numa sociedade para a qual o teatro era um dos principais divertimentos, traziam sobre os ombros séculos de estigmas sociais –basta dizer que Sarah Bernhardt, uma das maiores de então, era observada de perto pela polícia responsável pelo controle da prostituição (como nos comprovam os registros policiais que integram a recente exposição Splendeurs et misères des courtisanes, do francês Musée d'Orsay).  
Como Tosca, Adriana ganha altas doses de humanidade. Já falei de Tosca ao vê-la pelo espelho de Greta Garbo (em The Mysterious Lady, de 1928). Assim como a obra de Puccini, a de Cilea coloca em cena a autorreferência em busca do realismo, moeda corrente na arte do período. A obrigatoriedade dos cantores líricos ao antirrealismo, a se chegarem ao proscênio e cantarem, ganha em verossimilhança quando os enredos os colocam a representar efetivamente os papéis de outros. Se “Tosca” atinge isto no primeiro ato, deslizando-se posteriormente para o comentário político, “Adriana Lecouvreur” é atravessada por tal intuito. 
O jogo cênico principia a colocar o público diante do camarim da grande diva, que se prepara para adentrar a cena. Ali, à reprodução de trechos do papel se segue a visita do amado Maurizio, o suposto soldado (na verdade, um nobre galanteador, sucessor direto ao trono francês) a quem a atriz entregara seu coração. Dali por diante, vida e arte se misturam e se iluminam: 
Adriana é a plebeia com porte de rainha. Naquela sociedade estamental de princípios de 1700, ela ouvirá do amigo Michonnet que a única nobreza que lhe cabe é aquela emprestada pela cena do teatro: “Deixe os grandes homens com seus grandes problemas.” A rainha de mentira jamais poderia ascender à realeza. No entanto, a história da jovem atriz é lida pelo espelho do século XX, crescentemente libertário, no qual uma “mera atriz, obra da Musa” valia tanto ou mais que uma nobre. O teatro era o palco da nova aristocracia, daí a Michonnet pedir que Adriana não abandonasse sua carreira, a única verdade num mundo que ruía. Mas aí já era tarde. 
Ao se ver traída por Maurizio, amante da Princesa de Bouillon, Adriana denuncia-os publicamente por meio do monólogo da Ariadne Abandonada – Scribe e Legouvé chegam aqui às alturas de Shakespeare. O resultado é trágico: Adriana é envenenada pela rival, esvaindo-se vagarosa como Violetta Valery fizera cinquenta anos antes, nos braços do homem que ela mais tarde descobrirá que verdadeiramente a ama. 
O saldo da ópera – cabalmente reproduzido pela montagem paulistana – é o convencional alçado às alturas do sublime. O dramalhão que é característica fundamental do enredo de “Adriana Lecouvreur” fica em segundo plano, diante da sinceridade que pauta a construção da heroína, homenagem às grandes divas do teatro ocidental, vistas por tanto tempo com reservas. A música de Cilea, repleta de belíssimas melodias, definitivamente contribui para a elevação do enredo comezinho a alturas desusadas. Uma ária como Io son l’umile ancella não deve nada à celebérrima Vissi d’arte, vissi d’amore, da “Tosca”, duas delicadas profissões de fé: 

Eu sou a serva humilde/ do gênio criativo./ Ele me dá voz,/ Eu a envio ao coração.../ Sou a voz da poesia,/ o eco do drama humano,/ o instrumento frágil,/ escrava nas mãos do criador.../ Suave, alegre, terrifiante/ meu nome é Fidelidade/ Minha voz é um suspiro/ que morre com o amanhecer... 

Ao alinharem ópera e teatro, homens como Cilea e Puccini prenunciaram a profunda influência que a cena lírica teria da teatral. Se tenho uma admiração quase que religiosa pelos grandes atores – que são meu ideal inatingível, já que, além de tímida, não tenho talento algum para os palcos –, dobro-me de joelhos diante de um bom cantor lírico: o poder de deslizar entre a contenção dramática do teatro e o arroubo sentimental da ópera é algo que para mim tem foros de magia. O Teatro São Pedro apresentou, no domingo, um bom exemplo disso, dispondo em cena um elenco (dirigido por André Heller-Lopes) disposto a viver com fúria as peripécias – de um gosto por vezes duvidoso – inventadas duzentos anos atrás. 
A sinceridade artística supera o que há de perecível nos enredos. Minha objetiva mental terá para sempre registrado o ódio tragicômico que Denise de Freitas imprimiu à sua Princesa de Bouillon, a delicadeza do Michonett de Johnny França, a suavidade com que Eric Herrero conduziu seu Maurizio, nos derradeiros momentos da vida de Adriana, e a heráldica e, não obstante, a doçura que Daniella Carvalho emprestou à protagonista, das glórias da ribalta até a crua realidade da morte. Temos entre nós grandes vozes, que ainda agora enchem meu coração, erguendo-me a dez metros do chão, para além das tristuras da vida.
*
Salvo indicação ao contrário, todas as fotografias da montagem paulistana - levantada em coprodução com o Festival de Ópera de Manaus - eu retirei da página de Facebook de Heller-Lopes (sem pedir licença, do que me desculpo...). Elas dão a ver as belezas do figurino (de Fábio Namatame) e da cenografia (de Renato Theobaldo).

domingo, 17 de agosto de 2014

A diva vai à ópera: autorreferência em “A Dama Misteriosa” (1928), com Greta Garbo

Curioso esse The Mysterious Lady, segundo filme de Garbo dirigido por Fred Niblo (o primeiro, The Temptress, de 1926, é uma obra-prima). A história, numa primeira vista d’olhos parece não passar de “veículo” à exibição da atriz, mercadoria valiosa na época – os stars valiam, então, mais que as histórias; estas importando, sobretudo, enquanto meios de veiculação das imagens deles ao redor do globo. O plot: Karl (Conrad Nagel), jovem militar austríaco em ascensão, apaixona-se por uma bela jovem apenas para descobri-la uma espiã russa. 
A descoberta, tardia (ela enreda o rapaz para apoderar-se dos documentos secretos que estavam em posse dele), fá-lo ser degradado e preso, e patrioticamente desejar vingança. É, portanto, uma história de ranço belicoso, a porejar repúdio pelo incompreendido elemento estrangeiro, como tantas já rodadas (e que ainda o seriam) na América vinda da primeira Grande Guerra. 
Não é neste enredo mais epidérmico que encontraremos alento, mas sim na imagem etérea que ele constrói de Garbo, imagem para a qual concorrem, além da fotogenia da atriz (aliada a uma inteligência de expressão oriunda de um talento inato – a jovenzinha de vinte e dois anos exibe, aqui, a eternidade dos deuses, coisa que espantosamente fizera desde sua primeira produção, The Gosta Berling Saga, rodada quando ela tinha dezessete); a excelência dos novos processos de fotografia; e, finalmente, o subtexto, que dá carnadura à trama. 
Em Greta Garbo: a cinematic legacy (nunca é demais recomendá-lo aos admiradores da atriz, de fotografia e da Hollywood dos anos 20 e 30), Mark Vieira informa-nos que a obra beneficiou-se de uma então recente transição técnica da fotografia: a adoção do filme “panchromatic” (em substituição ao “ortho”) e das luzes “Mole”, que suavizavam e iluminavam as imagens. Sublinha-se, assim, o etéreo da persona criada por Garbo. 
Mas, The Mysterious Lady não seria um veículo tão apropriado à atriz não tratasse ele, também tematicamente, de retirá-la do rés do chão onde transitam os reles mortais, elevando-a a um intangível céu estrelado. 
Garbo (tímida e antissocial, segundo aqueles que a conheceram nos seus anos de MGM) nunca foi, em cena, a típica girl norte-americana. Nunca trabalhou em loja de departamento, em casas de família. Nunca privou com garotas de sua idade. Seu rosto parecia talhado às grandes tragédias: às vicissitudes amorosas, à solidão, à fome, ao silêncio. Daí sua Dama das Camélias (1936), suas Annas Kareninas (além da versão de 1935, ela rodou uma silenciosa: Love, de 27), sua Anna Christie (1930). E Queen Christina (1933), Romance (1930) – a rainha e a prima-dona, rainha em microcosmo. Sua única “ingênua” stricto sensu foi, até onde me lembro, a Marianne de The Divine Lady (1928), ironicamente seu único filme perdido, e mesmo nele, a mística que não se encontra no conteúdo revela-se no título. 
Em A Dama Misteriosa, a prima-dona se junta à movie queen. Atrelam-se implicitamente os caracteres da diva de ópera e da diva do cinema. Há autorreferência a rodo nessa obra, além de um humor ferino subjazendo à básica historinha de amor entre a espiã (arrependida) e o soldado. Garbo, com aquela face superlativa que a natureza e a Max Factor lhe deram, desenha a personagem com sutileza desusada – ressaltada pelo poder do filme pancromático –, revelando, na mesma medida, a passionalidade preponderante do papel, e a graça metalinguística que jaz no subtexto da obra. 
Ela é primeiramente tomada num camarote de ópera. Ela observa a prima-dona; o galã a vê. Nós a vemos pela reflexão dos olhos dele: aquele ser sublime, imponente, intangível. Isso o perde – e a nós, míseros iludidos, incapazes de perceber a encenação que se superpõe à essência daquela mulher. Mas disso, da encenação, nós (ele e o espectador) apenas nos daremos conta mais tarde. A graça dessa sequência é que a personagem está a representar tomando o palco como espelho. A prima-dona que se dilacera em cena é Tosca, da ópera homônima (de 1900, de Puccini, libreto de Illica e Giacosa) igualmente autorreferencial.
Parênteses: embirrei com o gênero operístico durante muito tempo (burrice minha, nem preciso dizer) pelo over dos enredos, como se tudo precisasse obrigatoriamente seguir a cartilha realista para que valesse alguma coisa. Mas acontece também que Puccini era, como seus libretistas, contemporâneo da busca do teatro pelo realismo cênico. Vem daí, possivelmente, seu desejo, nesta ópera, de colar a personagem à ação, narrando a história da prima-dona - personagem de natural grandiloquência - que se vê obrigada a se entregar a um rico e influente pulha para ter em troca a liberdade do amado, pego em atos políticos contestáveis. 
Tania (Greta Garbo) observa o encontro entre Tosca e o barão Scarpia, chefe de polícia romano. No palco, a diva, contrita, canta possivelmente a celebérrima Vissi d’arte, vissi d’amore (Vivi de arte, vivi de amor), ária se tornará leitmotiv do filme – escolha sui generis, uma vez que, sublinhemos, estamos falando de um filme rodado ainda durante a voga do cinema silencioso. Há aí uma flagrante tomada de posição da MGM em favor do filme silencioso, em detrimento do falado – The Jazz Singer, da Warner, lançado havia poucos meses, virava a indústria do cinema de ponta cabeça. 
A música, elemento-chave da ópera, se tornará, no filme, imagem. Vissi d’arte reaparece primeiro na casa de Tania, tocada pelas mãos do jovem militar já semienredado pela espiã. Ela a canta: “Vivi de arte, vivi de amor/ Nunca fiz mal a ninguém/(...) Sempre com fé/ Adornei com flores os altares/ Dei joias ao manto de Nossa Senhora”, etc. etc. Impossível que o público da época, tão contemporâneo a esse sucesso de Puccini, não percebesse a referência, ainda que implícita, silenciosa. Possivelmente, mesmo as orquestras das salas de exibição reproduziam musicalmente o tema, nos momentos cabíveis. A versão de The Mysterious Lady recentemente lançada nos EUA (num box imperdível, com Flesh and the Devil e The Temptress) infelizmente não o percebeu – sua trilha original não remete em nenhum momento à ária, ou à Tosca de modo geral. 
O uso que o filme faz da canção é, claro, sardônico. Tania vivia de fazer mal aos outros. Mas a mise-en-scène criada pela mulher ardilosa prepondera. A câmera alia-se a ela, e então veremos um prodígio de fotografia – o cinema silencioso atingia as culminâncias da técnica ironicamente em seus estertores – narrar, paulatinamente, a evolução do caso amoroso: jogos de luzes e sombras sobre o casal, na mansão de Tania, enquanto ele está ao piano e ela canta; delicadeza de fábula à sequência de ambos no campo: as flores, o riacho, a cascata, as árvores, suavemente apreendidos, contribuem na consecução do quadro pitoresco. O que o filme busca é bem isso: o pitoresco da paisagem e as cambiâncias sedutoras do cinza para construir-se explicitamente como ficção. 
Uma vez na Rússia, os dois personagens continuarão a fingir – desta vez, estando Karl já cônscio do verdadeiro papel de Tania. Quando ele penetra no covil dos agentes russos e se vê novamente diante da mulher responsável por sua degradação (a cena do rebaixamento do militar é igualmente notável), decide denunciar-se em público. Ela intervém. No intertítulo, lê-se: “Nós temos um público perigoso, músico./ Devemos desempenhar bem.” 
O reencontro do casal faz emergirem umas necessárias convenções do cinema dos anos 20. Tania percebe que ama o militar, que sempre o amou. Após um último – inesquecível – número de Vissi d’arte, reverberado pela diva muda, o casal roubará, com quiproquós dignos da Tosca (com direito mesmo a um assassinato, cometido pelas mãos da moça), certos documentos que redimirão Karl. E, ironia final com a malograda prima-dona de Puccini: na película, os pombinhos ameaçados viverão felizes para sempre...