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domingo, 14 de outubro de 2012

“Paris vu par Hollywood” no Hôtel de Ville e “Sabrina” (1954)


O Hôtel de Ville, bela construção a dois passos da Île de la Cité, em Paris, recebe até meados de dezembro a exposição Paris vue par Hollywood, memento num só tempo nostálgico e crítico da forma como a produção cinematográfica hollywoodiana apreendeu a cidade-luz. 
Hôtel de Ville
Na entrada, a linha do tempo dá o tom da mostra: por ela desfilará cem anos de cinema, até “A invenção de Hugo Cabret” (2011), recentíssima obra prima de Martin Scorsese em que dá o ar da graça a Paris do Méliès de 1890-1910. O corredor coberto das recordações do tempo em que o cinema dava os primeiros passos é preenchido com o som que vem do subsolo, onde um enorme telão apresenta excertos de obras produzidas quando a arte já amadurecera. 
An American in Paris
Antes de chegar ao subsolo, o público curioso pode esgueirar-se em direção às pilastras que sustentam o edifício e juntar a imagem ao som. Lá está a Garbo de “Ninotchka” (1939) a replicar, num hilário pragmatismo, a cantada do parisiense típico Leon: “Só quero saber qual a distância mais curta até a Torre Eiffel. Você acha mesmo que há a necessidade de flertar?”. Gene Kelly arrebata Leslie Caron nas margens do Sena, ao som de “Love is here to stay”, em "Sinfonia de Paris" (An American in Paris, 1951); o maravilhoso Gershwin sabe dar voz à Paris como ninguém. E Audrey, Freddy e Kay Thompson entoam um “Bonjour Paris” enquanto saltitam separados pelos pontos turísticos da cidade, encontrando-se, claro, no topo da Torre Eiffel (Cinderela em Paris/Funny Face, 1957). 
Funny Face
É no subsolo que estão as maiores preciosidades da mostra: peças do figurino usado por Greta Garbo em “Camille” (1936) e por Audrey Hepburn em "Amor na Tarde" (1957), um prato cheio para os fetichistas; fotografias de divulgação das fitas, trechos de roteiros, desenhos de produção de filmes como “An American in Paris” e “Moulin Rouge” (1952). 
Hollywood constrói Paris como a cidade do prazer e da liberdade. Paris vue par Hollywood argumenta que a cidade tornou-se, para a cinematografia norte-americana, o ponto de fuga dos cerceamentos impostos pelo Hays Code. Toda a liberalidade proibida nos filmes que tematizavam os EUA foi transferida para Paris, tornada, neste sentido, retrato enviesado de uma América do Norte ideal. 
The Merry Widow
Artífice que soube construir cabalmente uma Paris americana foi Ernst Lubitsch, que além de “Ninotchka” dirigiu pérolas como “The Love Parade” (1929) e “The Merry Widow” (1934). Nos dois últimos figura Maurice Chevalier, ator francês que, depois de décadas de carreira no vaudeville parisiense, foi escolhido pelo cinema hollywoodiano para personificar o que seria o francês típico: galanteador cujo cinismo caminhava de mãos dadas ao romantismo. Não por acaso, numa de suas últimas criações ele surge como mentor de Louis Jordain noutra típica película de Hollywood sobre Paris: “Gigi” (1958). 
O diretor de "Gigi", Vincente Minnelli, foi outro apaixonado pela cidade. É de sua lavra “An American in Paris”, filme que, segundo a mostra, é a versão mais bem acabada do modo como a “América” viu a cidade. A Hollywood clássica deixou de lado Paris como realidade empírica para se dedicar a uma criação poética da cidade. Representação mais arrematada do intuito é esta obra em que Minnelli e o ator-coreógrafo Gene Kelly reinterpretam a cidade a partir das telas dos artistas que a representaram: Monet, Renoir... A obra prima de Minnelli e Gene sintetiza o esforço americano das primeiras cinco décadas do século: Paris torna-se a tela em que um mundo cor-de-rosa se projeta. 

Audrey em "Funny Face"

"Sabrina" (1954) 
A mostra continua no cinema Le Champo. Só nesta semana veiculam-se lá outros dois filmes com Audrey Hepburn, atriz cuja elegância cedo a identificou à cidade: “Charada” (1964) e “Sabrina” (1954). 
Vi o último, ontem, pela décima vez; a primeira em tela cheia. E ele nunca me pareceu tão bom. Gostava mais da versão de 1994, o filme que mais vi na vida... Talvez porque a versão com Julia Ormond e Harrison Ford reforce a imagem de romantismo da cidade, enquanto que o filme de Wilder a chacoalha. E é isso que acho tão fascinante, agora. 
Sabrina é a jovenzinha sensaborona (bem, nem tanto; falamos de Miss Hepburn...) arrolada, no brilhante roteiro, no quadro de posses da família Larraby: eles tem funcionários pra cuidar da piscina coberta e descoberta, do aquário do peixinho George e dos barcos, bem  como um chofer importado da Inglaterra anos atrás, junto com um Rolls Royce e uma filha. Os medalhões americanos são ridicularizados com tremenda verve neste roteiro que também tem o dedo de Wilder, como não podia deixar de ser. Não só isso: a imagem paradigmática da Paris de Hollywood é questionada. 
Ao contrário do filme de 1994, em que a cidade torna-se locação importante, no filme de Wilder ela aparece em telões, é tipificada no mais alto grau: Sabrina viaja para Paris no intuito de aprender culinária (a sala de aula dá frente para a torre Eiffel, o professor é a caricatura do francês de bigode encerado e biquinho).  Escamoteado está o desejo da moça de esquecer David, o Larraby mais jovem, seu amor platônico desde a infância. Lá ela amadurece, torna-se a mulher cosmopolita que transpira elegância pelos poros – em outras palavras, torna-se Audrey Hepburn. Volta envergando um tailleur, o chapeuzinho da moda e trazendo na coleira o french poodle “David” – metáfora do encoleiramento a que ela submeterá o David real não muito tempo depois. 
No andar da ficção, a máscara da “Paris vista por Hollywood” é esgarçada. A jovem cosmopolita só tem uma casca de maturidade; é manipulada por Linus, o Larraby mais velho, workaholic e anti-romântico. É rejeitada pela família dele e vítima até mesmo do próprio pai. No fundo, Sabrina continua a desajeitada filhinha do chofer que, no início da película, quase bota a casa abaixo ao tentar o suicídio. Novos são apenas seu stupid hat e seu stupid dress, como ela não deixará de constatar. 
É óbvio que no final tudo se ajeita, com o trivial Happy Ending hollywoodiano. Mas o percurso é que é irresistível: com o cinismo de Wilder perpassando tudo, até a escolha do par romântico da jovem atriz – o envelhecido e casmurro Humprey Bogart, que nem embebido pela "La Vie en Rose" mais doce do mundo, entoada por Audrey, consegue que a gente o enxergue por detrás de lentes rosadas... 

Audrey e Humprey no set de gravação
Paris vue Par Hollywood: Hôtel de Ville, 18 set.-15 dez. Entrada gratuita.

domingo, 30 de setembro de 2012

“Ninotchka” (1939). Ou: como fazer uma bolchevique render-se à Cidade-Luz.

O aniversário de 107 anos do nascimento de Greta Garbo, comemorado em 18 de setembro, pedia uma celebração à altura. Urgia rever algo da eterna “Divina”, da dama solitária, etérea, inatingível. “Ninotchka”, só poderia ser “Ninotchka”! Que filme mais condizente com um festejo de aniversário, mais high-spirited, mais esvoaçante do que o conto da bolchevique convertida às plumas e paetês do capitalismo pelas mãos do francês bon vivant Leon? Garbo está tão brilhante nesta comédia de Lengyel, Reisch, Brackett, Wilder e Lubitsch, encontra-se tanto nela, que pouco nos damos conta de que este é o filme no qual ela menos foi Garbo...
em "Mata Hari"
O que não se deu por acaso. O fim da década de 1930 via a saturação dos tipos criados por Hollywood a partir de meados de 1910. Pelo espaço de 10 anos a atriz experimentara sucesso inaudito pelas variantes de vamp que levou à cena: a Mata Hari (do filme homônimo de 32), a Felicitas (de “Flesh and the Devil”, 1927), a tentadora Elena (de The Temptress, 1926), a misteriosa Tânia Fedorova (de “The Mysterios Lady”, 1928). Mulheres perigosas, porque distantes léguas da criatura passiva tida naquele tempo como modelo de esposa ideal. Mulheres que misturavam androginia, liberalidade e romantismo num grau demasiado temerário para a sociedade machista onde viviam; daí a pagarem por suas escolhas desviantes com a morte ou a solidão. 
Os desenlaces dos filmes de Garbo apresentam quase que unicamente o desfile de entes infelizes. Pobre bailarina Crusinskaya, que em tão breve período descobre o amor e a perda (“Grande Hotel”, 1932). E Camille, que sucumbe após ser obrigada a deixar seu querido Armand (“A Dama das Camélias”, 1936)? E a Rainha Cristina (do filme de 1933), que abdica da coroa para imediatamente depois descobrir que o amado morrera em combate? E Elena, pobre ébria a vagar pelos botequins da vida, sem perceber que o homem que lhe dá esmola é seu grande amor, e a confundir o mendigo com Jesus Cristo!? A máxima hollywoodiana do happy ending sistematicamente poupou Greta Garbo. 

Por isso, “Ninotchka” marca uma ruptura na carreira da atriz. Por ser a primeira comédia de uma filmografia que remontava a 1924 e porque marca a redefinição da persona que a tornara notória e que deixara de apetecer o público. Sorte de Garbo – e nossa – foi que tal redefinição tenha se dado por meio de veículo tão primoroso. “Ninotchka” é uma obra-prima de comédia, brilhantemente escrita, desempenhada e dirigida. 
Quem conduz a batuta aqui é Ernst Lubitsch, alemão que nasceu artisticamente junto com o longa metragem, em meados dos anos de 1910. Foi um dos grandes artífices da sétima arte; homem de timing perfeito para o que quer que fosse: a comédia sofisticada silenciosa (“Lady Windermere’s Fan”, 1925); o musical (“Alvorada do Amor”, 1929, apresentação do eterno par romântico Jeanette MacDonald/Maurice Chevalier); a screwball comedy (“To be or not to be”, de 1942 e “A loja da esquina”, de 1940 são duas obras-primas do gênero)... 
Lubitsch, Garbo e Melvyn Douglas
No que concerne a “Ninotchka”, Lubitsch soma o trabalho de direção ao de escrita do roteiro. Segundo Mark Vieira, soluções fundamentais à história foram criadas pela pena do diretor. Soluções cinematográficas, que claramente faziam emergir o Lubitsch touch, como as cenas em que figura o chapeuzinho tipicamente parisiense, a relação de Ninotchka com o adorno servindo de metáfora à sua paulatina aceitação dos modos de vida da Cidade-Luz. Mark Vieira ainda sublinha a importância de Lubitsch no sentido de ajudar sua protagonista a encontrar o caminho da personagem – Garbo estaria insegura e amedrontada por retornar à cena numa personagem tão diversa daquelas que costumava interpretar. 
Notória por personificar mulheres cada vez mais distantes, Garbo via-se arrastada a terra. “Garbo laughs”: a expressão que surgira antes do roteiro, no departamento de marketing da MGM, deixava claro o intuito de dessacralizar a persona da “Divina”. O roteiro primoroso segue fiel o intuito, efetuando a humanização da diva por meio de um delicioso exercício metalinguístico, que todo o tempo questiona e rasga a roupagem que o star system atrelara à atriz. 
Garbo é Ninotchka, enviada especial da Rússia comunista à luminosa Paris de um tempo nostalgicamente referido no prólogo como “aqueles dias maravilhosos em que uma sirene era uma morena e não um alarme – e se um francês apagava a luz, não era por conta de alguma ameaça aérea!”. O tempo histórico da rodagem da película era, efetivamente, bem mais conturbado: em 1939, Hitler já havia anexado a Áustria, declarado Guerra aos Aliados e assinado um tratado de não-agressão com a Rússia. O filme caminha entre a história e a fantasia: saíra da máquina de fazer sonhos que, no entanto, durante a guerra aceitava cada vez mais discutir a realidade. Por isso, Ninotchka é num só tempo a bolchevique pragmática que viaja à Paris incumbida de vender as joias outrora pertencentes à Rússia czarista, e a borralheira tornada cinderela depois que a cidade a enfeitiça. 
A reconstrução da imagem de Garbo se dá desde o primeiro plano em que ela aparece. Ninotchka aporta numa estação de trem de Paris: Garbo está sem maquiagem. Aparece despida do mistério que, em filmes anteriores, lhe emprestavam o figurino, a maquiagem e a fumaça das locomotivas. Surpresos pelo fato de o enviado especial ser uma mulher, os três russos que a esperavam na estação recebem dela a resposta: “Don’t make an issue of my womanhood.” Está aí um exemplo de como funciona esta máquina de ditos certeiros que é o filme. 
Lubitsch e companhia criaram para Garbo uma personagem bastante coesa. Ela é uma tipificação anedótica da Rússia vermelha, dirão os críticos. Certamente, mas, o que é a comédia se não a restrição dos indivíduos aos tipos sociais? O que vale é que o filme diverte imenso, e Greta está tão absolutamente hilária que quem o vir se lastimará por ela ter abandonado a carreira tão cedo, dedicando-se tão pouco a este gênero. A pragmática Ninotchka, exemplar de uma Rússia que pouco tempo antes dera adeus a convenções como o casamento, repudiando o lastro burguês dele e de seus congêneres, como o amor romântico, toma a relação homem-mulher como uma atração de cunho biológico. Surpreendente é que diálogos como o abaixo tenham passado incólumes pela censura da época (Mark Vieira argumenta como isso se deu no imperdível Greta Garbo: a cinematic legacy, minha bíblia da atriz): 

Ninotchka: Love is a romantic designation for a most ordinary biological... or shall we say “chemical” process. A lot of nonsense is talked and written about it. 
Leon: I see. What do you use instead? 
Ninotchka: I acknowledge the existence of a natural impulse common to all. 
Leon: What can I possibly do to encourage such an impulse in you? 
Ninotchka: You don't have to do a thing. Chemically, we are already quite sympathetic.
Leon: You are the most incredible creature I’ve ever met. Ninotchka. 
Ninotchka: You repeat yourself. 
Leon: Yes, I’d like to say it 1,000 times. You must forgive me if I seem a little old-fashioned. After all, I’m just a poor bourgeois. 
Ninotchka: It's never too late to change. I used to belong to the petite bourgeoisie myself.

Aliás, as declarações de amor de Ninotchka a Leon são das minhas all time favourites... 

Leon: Ninotchka... do you like me just a little bit? 
Ninotchka: Your general appearance is not distasteful. 
Leon: Thank you. 
Ninotchka: The whites of your eyes are clear. Your cornea is excellent. 
Leon: Your cornea is terrific; 

ou 

Ninotchka: As basic material, you may not be bad. But you are the unfortunate product of a doomed culture. I feel very sorry for you; 

ou 

Ninotchka: And what do you do for mankind? 
Leon: For mankind? 
Ninotchka: Yes. 
Leon: Not so much for mankind. But for womankind, my record isn’t quite so bleak.
Ninotchka: You are something we do not have in Russia. 
Leon: Thank you. Glad you told me. 
Ninotchka: That’s why I believe in the future of my country. 

O roteiro genial é sublinhado por uma obra-prima de interpretação. Com sua voz profunda, seu sotaque estrangeiro e seu cabedal de vamps, Garbo torna único um papel que, malgrado a tipificação, é originalíssimo. Impossível vermos “Ninotchka” sem colocá-lo em contraponto com tudo o que ela fizera antes. O próprio roteiro não deixa: “Go to bed, little father. We want to be alone.”, diz Ninotchka ao velho mordomo de Leon, claramente dialogando com a expressão que até então a definia em Hollywood. 
“Ninotchka” faz mofa do comunismo, mas não poupa o capitalismo. A jovem irrita-se com a injustiça social presentificada pelo carregador de malas da estação. “Injustiça? Depende da gorjeta.”, o moço replica. “Repilo O Capital como repilo a poeira.”, diz o papaizinho mordomo de Leon. “Mas você não está interessado na igualdade? Você é um reacionário!”, Leon lhe diz. “Tudo bem que não sou pago faz dois meses. Mas ter de dividir com o senhor as economias de minha vida inteira já é demais.”, responde o velho... Por outro lado, essa definição que Leon dá para o rádio cairia como uma luva ainda hoje como explicação da sanha de consumo capitalista: “Rádio é uma caixinha que você compra no plano de instalação, e antes de ligá-lo descobre que há um novo modelo no mercado.”... 
Aliás, a personagem impagável de Garbo só funciona porque tem um leading man à altura. Melvyn Douglas já contracenara com ela no ótimo “As you desire me” (1932) e ainda seria seu galã no malfadado “The two faced woman” (1942), filme com que ela se despede das telas. Aqui ele é o parisiense arquetípico, que Maurice Chevalier tão bem apresentara anos antes: galanteador, charmoso. Este perfeito exemplar da luminosa sociedade capitalista acabará por encantar a bolchevique obstinada, claro. No entanto, embora eu prefira a Garbo borralheira da primeira parte do filme, não consigo negar seu charme quando ela se deixa impregnar do romantismo daquela sociedade “brilhante e condenada” – como tão bem a define Leon. 
Porém, mesmo os chavões românticos são envoltos pelo roteiro numa aura de eternidade: observem-se a reação de Ninotchka quando recebe as flores e o leite de cabra que Leon lhe mandara, sabendo já naquele momento que deveria deixá-lo; o fuzilamento simbólico da bolchevique em honra das “massas”; ou toda a sequência em que Ninotchka e os companheiros, já em Moscou, decantam nostálgicos sua temporada parisiense. 
“Ninotchka” é, efetivamente, um ótimo modo de se celebrar Greta Garbo. Porque, pensando bem, o filme nem rompe tanto assim com a imagem que consolidara no écran esta mulher que, mesmo terrena, soube como continuar divina.

sexta-feira, 11 de setembro de 2009

Um filme antigo, um livro antigo e uma emoção sempre nova

Tenho nas mãos as duas mais deliciosas descobertas que fiz nesses últimos tempos: um livro de António Ferro, um filme de Ernst Lubitsch. Os dois me permitiram casar deleite e vida profissional - melhor que isso, impossível. O livro, na verdade, são dois. Hollywood, capital das imagens e Novo mundo, mundo novo, compilação das crônicas sobre os Estados Unidos que o escritor português publicou numa das folhas de seu país. No título, referi-me ao segundo, que me proporcionou o prazer de recortar suas folhas antes de iniciar a leitura - prazer do qual só podemos usufruir, hoje, ao termos a sorte de comprar um livro antigo cuja cópia nunca tenha sido lida.
Minha viagem pelo Mundo Novo desfraldado por António Ferro já começou empolgante, empolgação que só fez crescer à medida em o escritor, jornalista do Diário de Notícias, se aproximava de seu destino principal: a Hollywood dos anos 20... Difícil um cinéfilo não invejar a aventura do intelectual, que, além de publicar seu encontro com Mary Pickford e outras "estrelas" e "astros" do "écran" (como essa palavra é repetida por ele...), ainda estampa, no primeiro livro, sua fotografia com Douglas Fairbanks. Difícil um analista crítico da Hollywood dos anos dourados não se surpreender com a empolgação, a paixão, o abandono com que o escritor olhava as ruas, hotéis, cenários e artistas que povoavam aquela terra de sonhos.
Olhava para deslindar aos seus patrícios a verdadeira capital do cinema, aquela em que uma rua deserta do far-west dava numa rua gelada de Nova Iorque, em que as cabines de passageiros de um navio ficavam a quilômetros de distância de sua proa. Mas, mesmo depois de conhecer a realidade, e de insistir para que a "pequenina luz que sonha com as estrelas" não deixasse Portugal imaginando uma vida de celebridade em Hollywood, mesmo assim o cronista não deixava de olhar com fascínio para a ficção que surgia dessa realidade tão disparatada. Seu enamoramento por Mary Pickford é prova disso: "Basta dizer Mary... Mary Pickford, casada com Douglas, está casadinha, também, com os olhos de todos, olhos amorosos, olhos que a beijam... Amor respeitoso, amor cristão... Mary Pickford é a Nossa Senhora da Luz Branca!...".
Que bonitinho!... Fascinante conhecer uma opinião tão apaixonada vinda do tão ajuizado escritor modernista. Porque, afinal de contas, quem não se sente mais ou menos assim ao assistir a um filme favorito? Mesmo que os extras do DVD divulguem os detalhes que se escondem por detrás das lentes da câmera, continuamos rindo e nos emocionando com as histórias por ela contadas.
Por exemplo, com "Alvorada do amor" (The love parade), o primeiro filme sonoro dirigido por Ernst Lubitsch, ainda em 1929 (na alvorada do som) dois anos depois da visita de Ferro a Hollywood. Embora Ferro tenha dito não gostar "de fitas faladas", é bem provável que tenha visto esta, pois deixa claro a admiração que sentia por Maurice Chevalier - na película, o namorador de Silvânia que é convocado de volta a seu país depois de escandalizar a já escandalosa Paris. Sobre ele, Antonio Ferro diz: "O êxito de Maurice Chevalier é a sua completa adaptação ao espírito da época. Maurice é o tipo-símbolo, a soma de muitas parcelas: dandismo do faubourg, perfume de boîte-à-chansons, sabor de garçonnière, passos da Broadway, sugestão cinegráfica no claro-escuro do chapéu de palha e do negro do smoking, graça enfant terrible e máscara de Bébé Cadum, Place Pigalle e Times Square, ginástica das oito às nove e amor das cinco às sete, cartazes nos tapumes avec le sourire e bilhetes postais emoldurados nas tapeiras, Sour les toits de Paris uma elegância de apache disfarçado (...)".
Depois de ver Maurice em um de seus filmes, é impossível discordar do escritor. Que dirá, então, depois de vê-lo nesse filme, anterior à censura que os estúdios cinematográficos se impuseram, filme que dosa tão bem o romance, o sexo, a ironia e a comédia, amarrando-os tão bem - porque, na verdade, o mundo não passa de uma longuíssima comédia dos sexos... Exemplo cabal da aptidão do conde Alfred Renard pelas mulheres é aquela cena inicial, em que ele tenta administrar duas amantes, enfrenta o marido de uma delas e, imperdíveis reviravoltas depois, abotoa o vestido da moça sob os olhos do agradecido e apaixonado marido dela. E, então, a cena em que o conde, já convocado de volta à Silvânia, canta a rainha (e para a rainha): "Loves I've known are buried in the past/ They could last with you/ None of them could ever hold me fast/ In the way you do. (...)/ Eyes of Lisette, smile of Mignonette/ The sweetness of Suzette/ In you displayed/ Grace of Delphine, charm of Joséphine/ The cuteness of Pauline/ In you, arrayed.". Essa cantada debochada, bem ao estilo de Chevalier, é uma delícia e merece ser vista:



Esta estudante de literatura e teatro teve, ainda, uma grata surpresa ao encontrar neste filme
tantos elementos do teatro cômico-musicado: o par romântico, a comédia física, os trocadilhos sexuais, números musicais atados mais ou menos frouxamente à ação - e neles, os duetos românticos. Estrutura usada nos palcos da França, de Portugal, do Brasil, e depois tão bem aproveitados por esse mestre da comédia ligeira que é Lubitsch. Infelizmente, Hollywood não o deixou ser tão alegre e saltitante por tanto tempo... Então, vale a pena aproveitar esse filme, imperdível para quem quer conhecer uma das mais bem acabadas matrizes dos musicais da capital do cinema. E também para quem quer ver a bela Jeanette MacDonald no primeiro e mais livre papel de sua carreira.

segunda-feira, 13 de abril de 2009

Quando a música contagia: "Ama-me esta noite" (Love me tonight, 1932)



Em 1927 Hollywood começou a falar e a cantar, especialmente, que o diga "The Jazz singer", primeiro filme no qual houve introdução extensiva do som, exatamente nos números musicais. O deslumbre pelo som da voz humana em todas as suas nuances - único elemento do qual o cinema até então não podia se utilizar - foi intenso e se revelou, no final dos anos 20 e primeiros anos dos 30, nos musicais produzidos pelo maior pólo da indústria do cinema.

Exemplo disso é "Ama-me esta noite", veículo que revelava um novo par romântico das telas, Jeanette Mac Donald e Maurice Chevalier - contratados quando a emergência do som pegou de calças curtas uma série de divas e galãs cujas vozes não se equiparavam aos belos rostos que possuíam (John Gilbert e Clara Bow, apenas para citar alguns).

Adaptação de peça de teatro, "Love me tonight" mostra um percurso usual em Hollywood ainda no tempo dos "silent pictures", quando Erich von Strohein rodou "The merry widow" (1924), estrondoso sucesso da Broadway. Não é um acaso, portanto, que uma das uniões do par Jeanette/Maurice tenha ocorrido para a filmagem de uma nova versão de "Merry Widow" (1934), desta vez com a direção de Lubish.

A temática de "Ama-me esta noite" serve bem ao intuito principal da "fábrica de sonhos", daí a apropriação de uma das variantes da estrutura dos contos de fadas, aquela em que o mocinho enfrenta inúmeros percalços para salvar a donzela em perigo. O divertido é que, no filme, o esquema é subvertido. A mocinha - a princesa Jeanette - que já não é donzela, uma vez que fora casada, está efetivamente em perigo, mas por um um mal muito menos palpável que os vilões convencionais: ela sofre constantes desmaios. A profilaxia é apresentada por um médico cuja formação bastante provavelmente é tributária do pseudo-cientificismo dos anos de 1870: o casamento. É aí que aparece o salvador, não um príncipe encantado, mas o alfaiate Maurice, que vai para o castelo no intuito de cobrar o conde pilantra a quem vendeu fiado, e, devido à galanteria que é típica das personagens interpretadas pelo ator, dá algum colorido àquele ambiente centenário (habitado por pessoas não tão mais jovens do que isso) e acaba, por meio de um beijo, acordando a Bela Adormecida hollywoodiana.

Outra graça de "Ama-me esta noite" é que a apropriação dúbia dos contos de fadas é acompanhada por uma linguagem verbal e cinematográfica que muito se aproveita da censura frouxa e pouco sistemática em voga na época (a cena em que Maurice tira a medida do busto da princesa é o exemplo que primeiro me ocorre).


E isso não raras vezes é feito através de canções muito atraentes e por isso, acredito, tão cativantes. O delicioso número inicial, da canção "Isn't it romantic", é o exemplo mais claro, e acredito que é o primeiro número a palmilhar um percurso que depois será comum nos musicais de Hollywood, o da introdução de um longo número musical que, neste caso, aos poucos é compartilhado por todos os personagens que participam da ação, responsável por unir os planos - e, simbolicamente, o personagem do mocinho ao da mocinha - e, consequentemente, o ator à atriz, a qual verbaliza seus anseios amorosos através de lindos versos de Lorenz Hart e música de Richard Rogers (dos quais depois Billy Wilder se apropriará no clássico Sabrina, de 1954, numa clara referência ao filme):

"Isn't it romantic
Music in the night, a dream that can be heard.
Isn't it romantic
That a hero might appear and say the words
brought by a secret charm or by my heart's command
My prince will come just to kiss my hand..."



A assertiva de Walter Benjamin, segundo o qual para o cinema é menos importante o ator representar diante do público um outro personagem do que ele representar-se a si próprio, encaixa-se como uma luva nesta produção - sintomático é o fato de os nomes dos personagens serem iguais aos dos artistas.
O efeito disso é claro e bem conhecido pelos empresários dessa fábrica de sonhos, que nada tinham de tolos: convidar o espectador a participar da ação, a compartilhar dos sentimentos daqueles personagens aos quais poder-se-ia atribuir os rótulos de "pessoas". O curioso é que ainda hoje aceitamos o convite, por mais que saibamos que tudo isso não passa de ilusão...